segunda-feira, 25 de março de 2013

Um conto de faz de conta


Era uma vez um comboio que chegava a um lugar muito distante, um lugar diferente de todos os outros lugares que tinham existido. Aquele comboio aproximava-se lentamente de uma rampa que indicava o final do percurso da estrada de ferro. Os vagões do comboio eram destinados ao transporte de animais, mas estavam cheios, repletos mesmo, de pessoas. As pessoas eram bem magrinhas, tinham a pele bastante ressecada e pareciam exaustas.

A paisagem daquela terra era admirável. Parecia um reino encantado. Havia algumas construções de madeira espalhadas e, no centro, um edifício em alvenaria com uma grande chaminé. Seus arredores eram cobertos de vegetação natural. Era um campo típico de clima temperado, com suas árvores e caminhos forrados de pedras. Era uma noite de inverno e fazia muito frio. A temperatura era de 15 graus negativos. Nevava. Apesar do friagem, os anfitriões estavam todos do lado de fora, diligentemente preparados para a chegada daquele comboio. Diversos funcionários aguardavam junto ao trem a abertura das portas por onde sairiam as pessoas.

Então, enquanto a neve caía lentamente sobre os chapéus dos oficiais, as portas se abriram e os visitantes foram ordenados, aos gritos, a sair dos vagões. Para que não se demorassem, começaram a receber cassetadas na cabeça, nas costas, nas pernas. Logo saíram todos muito apressados, tentando desajeitadamente desviar-se das investidas, que pareciam vir de todos os lados. Os vagões, então, foram esvaziando-se. Algumas pessoas, todavia, permaneceram dentro do comboio, apesar do grande incentivo oferecido pelos golpes. Estavam prostradas pelo chão. Foram, então, retiradas pelos empregados e levadas para um canto.

Aqueles que estavam em fila foram instruídos a deixar seus pertences do lado direito. Uma montanha de malas, caixas, sacolas e outros objetos formou-se instantaneamente. Os oficiais explicaram que os artigos deveriam ser amontoados cuidadosamente, para que chegassem ilesos ao local onde todos estariam hospedados. E eles obedeceram. Depois, voltaram à fila, onde havia uma pessoa que inspecionava os recém-chegados. Era um médico. O doutor separava aqueles que estavam mais saudáveis e fortes daqueles que estavam menos saudáveis e fortes. Os primeiros eram instruídos a retirar-se da fila. A grande maioria seguia em frente.

Seguindo em frente, havia um barracão de madeira onde deveriam entrar as mulheres. Os homens eram orientados a rumar para o flanco exterior da construção. Todos os entes do gênero feminino, do lado de dentro, e todos os entes do gênero masculino, do lado de fora, eram orientados a tirar a roupa ali mesmo, apesar de não haver nenhum sistema de calefação.

Naquele momento, o medo começou a apoderar-se dos visitantes. Muitos começaram nervosamente a pedir explicações. Os empregados locais, porém, permaneciam impassíveis. Existiam muitos boatos, boatos terríveis, boatos inimagináveis, sobre o que acontecia com as pessoas que eram encaminhadas até o final das linhas de trem. E todos os homens e mulheres começaram a exasperar-se, a falar cada vez mais alto, até que a situação culminou em um alvoroço de gritos de desespero. Sem hesitar, os oficiais e seus auxiliares iniciaram um regime de pesados golpes e pontapés para convencer os mais indisciplinados. Mas eles permaneceram imóveis, petrificados. Redobraram-se, pois, os esforços de persuasão. Os gritos de dor confundiam-se com os gritos de desespero. Esta desordem deve ter perdurado por alguns minutos.

A neve do piso tinha adquirido uma coloração vermelho-escura quando surgiram os oficiais que dirigiam aquele empreendimento. Diante do caos que encontraram, pediram a todos que se posicionassem organizadamente para ouvir o que tinham a dizer. Mandaram os homens que estavam do lado de fora a entrar no barracão para ouvir o discurso. Quando já estavam todos reunidos, o Comandante, que tinha o aspecto de um príncipe em uniforme de gala, enunciou sua fala com a eloquência de um grande retórico:

- Sei que muitos de vocês fizeram uma viagem de dois a três dias continuamente em pé e que estão bastante cansados. Talvez, por isto, estejam com o pensamento confuso. Entendo que muitos estejam reclamando de sede, pois foi impossível oferecer-lhes água no caminho. No entanto, não consigo compreender os temores que alguns aqui possuem sobre como vamos tratá-los. Por isso, vim aqui esclarecer de uma vez por todas nosso cronograma. Como todos sabem, estamos em um momento muito aflitivo (não são só vocês que estão em dificuldades, nós também estamos). Por isso, absolutamente todos os recursos com que possamos contar serão apreciados. Esta é a razão de vocês terem sido transferidos para cá. Podem estar seguros disso. Tenho certeza de que todos aqui podem ser úteis. Vejamos. Você, por exemplo, na segunda fila, qual o seu ofício?

- Sou alfaiate, Senhor.

- Pois estão, precisamos de sua ajuda para confeccionar e reparar os uniformes de nossos soldados.

O alfaiate sorri, satisfeito. O Comandante continua sua inquirição:

- Você, de cabelo negro ao fundo, o que você faz?

- Sou enfermeira, Comandante.

- Pois você é mais necessária do que nunca. Necessária agora mesmo, para ajudar na recuperação dos incontáveis feridos e doentes, e para dar conforto aos que sofrem. – O Comandante passa os olhos pela multidão, aponta outro homem, baixo e de barba espessa, e pergunta: - E você, à direita?

- Eu era contador, Senhor.

- Pois você pode nos ajudar na organização deste campo. Precisamos de todos vocês. Peço que abandonem estes temores que não têm sentido algum. Reflitam melhor. Ainda que vocês suponham que não tenhamos nenhum apreço por vocês, por que não aproveitaríamos sua capacidade de trabalhar? Está na hora de parar de acreditar em contos de fadas, em estórias onde todos, reis e súditos, não passam necessidades. Aqui, no mundo real, as pessoas sofrem e necessitam de cuidados. Não podemos desperdiçar força de trabalho. E vocês estão chamados a participar destes esforços. Eu insisto: nosso tempo, de grandes necessidades, exige a participação de vocês, e não vamos deixar que ninguém se esquive de suas tarefas. Ao trabalho!

A enfermeira e o contador gracejam, confortados.

O Comandante acrescenta:

- Mais uma coisa: as crianças e idosos podem ficar sob a tutela de seus responsáveis. Agora, por favor, exijo a colaboração de vocês, ou serei obrigado a tomar medidas disciplinares.

Os avós, as mães e os filhos respiram aliviados.

O Comandante adverte, em seguida:

- Há uma grande epidemia de tifo. É bem provável que vocês tenham piolhos pela cabeça e pelo corpo, especialmente após esta viagem. Para evitar que se contaminem os demais ocupantes, que estão sadios, todos vocês precisam passar por um processo de desinfeccção. Somente assim poderão ser acomodados e iniciar o trabalho.

O Comandante faz um sinal para seus companheiros. Imediatamente, alguns sabonetes e toalhas são distribuídos aos presentes.

- Vocês terão que compartilhar os poucos recursos de que dispomos. Agora, repito: colaborem. Para que sigamos corretamente o procedimento e vocês possam tomar seus banhos, tirem a roupa imediatamente. Disponibilizamos água e café para vocês naquele barracão ali, após a área de limpeza. Vocês estão tornando tudo mais lento do que o previsto e vão ter que, lamentavelmente, tomar seu café frio.

Todos começam a despir-se. Os mais fortes ajudam as crianças e os idosos a despojar-se de suas roupas. As pessoas, agora nuas, tiritam de frio (a temperatura agora havia baixado para 17 graus negativos com o avançar da madrugada). As roupas se acumularam em um canto da área de recepção e foram retiradas pelos funcionários. O Comandante agradece:

- Agora, sim. Apressem-se para tomar o café. Acabam de avisar-me que os galões de água foram reabastecidos. Vocês serão agora escoltados para a área de desinfecção.

Os homens e mulheres são conduzidos à área de limpeza. Há placas indicando banheiros. Há sinais com instruções sobre como limpar-se devidamente. Advertências sobre o perigo de contaminação por terríveis moléstias. Algumas cadeiras também são disponibilizadas para descansar enquanto os empregados terminam de limpar o banheiro. Depois de alguns minutos, todos são orientados a entrar pela porta de metal. As pessoas vão ocupando o cômodo, preenchido por diversas duchas. Com o fim de economizar tempo e recursos, é preciso sempre lotar a câmara para que todos os presentes passem pelo processo ao mesmo tempo. 

 Já dentro das câmaras, entram novos servidores locais para aparar os longos fios de cabelo de parte dos visitantes, especialmente das mulheres. Explicam que aquilo faz parte do trâmite de eliminação dos piolhos. Algumas mulheres, muito apegadas a suas madeixas, assentem com lágrimas nos olhos. Todos temem destacarem-se, de alguma maneira, por uma particular falta de asseio. Os cabeleireiros recolhem rapidamente as mechas que se espalharam pelo piso e abandonam a sala.

Os funcionários que os haviam escoltado à câmara diligentemente fecham a porta de metal antes de iniciar o processo de desinfecção. Naquele momento, era perceptível o absoluto silêncio dentro da câmara em que estavam trancados. Todos olharam para cima, esperando que a água começasse a correr pelas chuveiros logo acima de suas cabeças.

Subitamente, todas as luzes são apagadas. Naquele breu abrupto, começam a ser escutados gritos de terror, cada vez mais altos. Ouve-se, então, alguns ruídos de latas batendo no chão, que indicam o início do procedimento anunciado. As pessoas começam a debater-se umas contra as outras no escuro, em desespero. Algumas começam a pedir ajuda. Os gritos aumentam. Havia um grande tumulto de ruídos de corpos contra o chão. Os gritos aumentam ainda mais. Alguns, porém, são abafados.  Depois, começam a diminuir. O barulho reduz-se cada vez mais, até cessar completamente.

Então, depois de cerca de vinte minutos de imenso alvoroço, as pessoas sossegam completamente. Uma serena paz finalmente voltava a governar aquele lugar, um lugar diferente de todos os outros, que mais parecia um reino encantado. Todos os funcionários aguardavam em seus lugares a retirada dos calmos visitantes. Suas atribulações estavam finalmente extintas. Todos estavam sossegados. Eles seriam dirigidos em seguida para um local muito mais aquecido, para descansar em companhia dos visitantes que haviam chegado antes e dos que chegariam depois.   

E foram felizes para sempre.


                                                             Fim

sexta-feira, 15 de março de 2013

O Grande Líder



Em estado de total imobilidade, cinco homens em terno e gravata estão postados ao redor do cadáver de uma mulher luxuosamente vestida. Sua pele pálida contrasta vivamente com seu vestido cor de púrpura. Os traços finos, intactos, marcam a beleza de uma pessoa muito jovem, ainda que morta. Seu vestido harmoniza-se perfeitamente com a suntuosidade da sala. O ambiente é todo iluminado por um grande lustre de cristais italianos azuis e brancos, que transmitia seus tons ao piso em jacarandá forrado com tapetes persas e às paredes em estilo francês cobertas parcialmente por tapeçarias exóticas. O cômodo é conhecido como Salão Azul do Palácio da Nação.

O mais alto dos presentes, o Grande Líder, faz um sinal e três deles se retiram. Durante alguns minutos, o Grande Líder fita intensamente o corpo de sua falecida esposa como que para ordená-la que se levantasse. O Correligionário, então, após limpar a garganta, toma a palavra:

- Peço perdão pela insistência, Grande Líder, mas o Povo espera sua decisão a respeito das cerimônias fúnebres. Há uma multidão fora do Palácio ansiosa pela oportunidade de despedir-se de Nossa Guia.

O Grande Líder senta-se em uma das poltronas próximas ao ataúde. Permanece calado. Levanta-se novamente e olha para seu assessor:

- O Povo sofre, eu sei, mas eu também sofro. Testemunhei de perto a deterioração do estado de saúde da minha esposa, tão nova, tão jovem, recusando-me a acreditar que uma enfermidade que parecia de início uma febre pudesse chegar ao que agora é irremediável. Ela era 15 anos mais jovem do que eu. Há apenas seis meses, eu pensava que o amor que do Povo por ela era tão intenso que ela seria minha sucessora. Deus sabe o quanto ela amava o Povo de volta. Quantas vezes, desafiando ordens médicas, ela não se postou na janela do hospital para saudá-los e acalmá-los. Eu sempre lhe propunha ir em seu lugar para oferecer-lhes uma palavra de alento, mas ela insistia que ela própria deveria fazê-lo, por consideração a eles. Eu, desgraçadamente, por amor a ela, assentia. Até o dia em que ela não pôde mais levantar-se, e perdesse a razão, depois os sentidos, até expirar na cama ao lado da qual estava sentado há dois dias. Apesar de não entender até hoje por que levaram-na tão cedo, de não aceitar o que me parece ainda uma injustiça, de não compreender nada dos desígnios divinos, tenho agora que tomar uma decisão imediata sobre sua despedida. Não obstante o farei, uma vez mais, em nome de meu amor por ela e do amor dela pelo Povo.

O Correligionário assiste com pesar a exposição do Grande Líder. Junta suas mãos à frente da cintura, depois atrás das costas, exasperadamente. Quando concluída a fala, olha mudo para o assoalho. O Grande Líder continua:

- Você está somente fazendo o seu trabalho. Não tem que ouvir lamúrias minhas. Desejo apenas ter mais algumas horas a sós com ela. Quero velá-la esta noite. O Povo compreenderá. Faça todos saberem que o corpo dela poderá ser visitado a partir de amanhã, por três dias, após os quais será realizado seu enterro, segundo as formalidades do protocolo oficial.

Mesmo após assegurar-se de que o Grande Líder havia terminado, o Correligionário ainda hesitou por alguns segundos. Em seguida, limpou novamente a garganta e balbuciou:

- Senhor, há rumores, rumores que provavelmente indicam um anseio do Povo, de que o Grande Líder mandará embalsamar o corpo de Nossa Guia para que possa visitá-la em momentos de grande nostalgia ou de sérias incertezas sobre sobre o destino da Nação. Ainda segundo estas esperanças, Nossa Guia jazeria no Salão Adjunto do Palácio da Nação, para permitir o acesso de visitas e, sempre que o Senhor julgasse conveniente, ele seria reservado exclusivamente para Vossa Excelência.

- Estou ciente destes murmúrios. Não é a primeira vez que me informam sobre este ruído incessante. Nem mesmo é a primeira vez que você me traz este assunto. Sou obrigado a concluir que nesta obstinação está subentendido um conselho: Vossas Senhorias pensam que seria mais conveniente mandar embalsamar o corpo de minha mulher. Muito bem. Pois eu lhe convido a contemplar o cadáver dela. Ela está ainda mais bela, depois de ser cuidadosamente maquiada e vestida por ordens de vocês, do que momentos antes de falecer, quando seu organismo ainda resistia, quando respirava com dificuldade, quando gemia de dor, quando ainda tinha o rosto todo crispado pelo sofrimento. Olhe para ela. Eu te asseguro: ela não possui agora sequer a metade da beleza que tinha antes de eu descobrir que andava ocultando os sintomas daquela moléstia. Olhe para ela, eu te ordeno. O Povo irá adorá-la ainda mais depois de conferir a sua beleza insuportável, que não passa de um sopro da era quando eu a conheci. Sua beleza só podia ser comparada à sua generosidade. Ninguém tem mais consciência da perda que todos sofremos do que eu. E é justamente esta consciência que me impele a dizer que, apesar da aflição que inunda meu coração, é preciso esquecer para seguir em frente. Se o corpo de minha mulher seguir indefinidamente em exibição no prédio vizinho, de onde tirarei forças para liderar o Povo, consciente do vazio de minha vida sem ela? Não. Por mais que eu me martirize agora, evitando o contato com quem mais amei nesta vida, creio que somente a aceitação desta perda me permitirá seguir vivendo neste mundo da qual ela se ausentou tão prematuramente. Minha decisão, portanto, está tomada.

O Correligionário pede permissão para retirar-se do cômodo. O Grande Líder assente e dá-lhe as costas para novamente fitar o corpo iluminado e imóvel de sua consorte.

*

Após o encerramento de uma reunião ministerial, o Grande Líder regressa a seu gabinete, acompanhado do Correligionário. Assina alguns papeis que este lhe entrega enquanto vai também tomando nota de alguns assuntos pendentes mencionados há pouco. O Grande Líder percebe que o Correligionário tem um ar apreensivo. Apanha uma pasta e pergunta:

- Algo lhe preocupa, meu caro?

- Senhor, por dever de ofício e pela confiança em mim depositada, sinto-me na obrigação de informá-lo sobre algumas inquietações que pairam no espírito do Povo. Já faz algum tempo que passaram a comentar sobre sua proximidade cada vez maior com a Secretária de Assuntos Privados.

- Você se refere à Martha?

- Receio que sim. Circulam fotos do Senhor sorrindo para ela após o café da manhã oficial com o Líder do País Vizinho, correm testemunhos sobre caminhadas pelo jardim da Residência Oficial, e crescem agora boatos sobre a presença dela no Retiro da Nação durante as férias do Senhor.

- Não tinha conhecimento de que o Povo estava tão preocupado com minhas amizades.

- Na verdade, os rumores são de que sua relação com a Secretária de Assuntos Privados ultrapassa os limites de uma mera amizade. Alguns consideram até que o Senhor estaria apaixonado por ela. Eu próprio - e peço antecipadamente perdão se estiver cometendo alguma indiscrição – reparei que o Senhor tem passado mais tempo com a Secretária, e que ultimamente o Senhor tem andado menos sério, mais sorridente. Ouso dizer, se o Senhor não considera meu comentário inoportuno, até mesmo mais jovial. Tendo em conta sua alta exposição pública, suponho que estas mudanças sejam perceptíveis até mesmo para pessoas de fora do círculo mais íntimo do Senhor. Senhor, insisto que eu não quero intrometer-me em seus assuntos privados. Minha intenção é apenas informá-lo sobre quaisquer desdobramentos políticos e sociais que possam ocorrer.

- Entendo. E quais seriam, então, seus pensamentos sobre o assunto? O Senhor acha que eu tenho o direito de me apaixonar, caso estas suposições estejam corretas?

- Desculpe-me... Quer dizer, o Senhor, claro que... Todos têm direito a sua vida privada.... Bem, todo mundo tem o direito de se apaixonar. É impossível dominar completamente as paixões. É algo humano. Ultrapassa a mera vontade.

O Correligionário toma um momento para refletir. Depois, limpa a garganta e avança:

- Muitos filósofos, no entanto, nos aconselham a refletir antes de deixar-nos dominar pelas paixões. Mas o Senhor, nosso Grande Líder de nossa grande Nação, certamente possui a sabedoria necessária para ponderar sobre esta questão. Meus pensamentos poderiam parecer-lhe muito simplórios.

- Caro Correligionário, peço-lhe humildemente que seja sincero comigo. O Senhor estava do meu lado durante o funeral da minha esposa, há nove anos. Desde então, acompanhou-me em quase todas as minhas atividades oficiais. Trocamos impressões sobre inumeráveis assuntos, inclusive pessoais. O que o Senhor pensa sobre a possibilidade do Grande Viúvo da Nação apaixonar-se quase dez anos depois da morte de sua esposa? O Senhor acha que eu estaria traindo a memória dela?  

- Não, claro que não, Senhor. Quer dizer que o Senhor confirma que está apaixonado? Perdão pela intromissão. Não me concerne, não me concerne em absoluto. Senhor, eu me preocupo com as reações do Povo a esta notícia, caso haja mesmo uma notícia. Enfim, o Senhor compreende que, depois que o corpo de sua esposa foi embalsamado e passou a ser exibido no Salão Adjunto do Palácio da Nação, a adoração a ela aumentou extraordinariamente. Nunca esteve, aliás, tão forte. Tivemos que mudar todo o esquema de segurança para permitir que uma multidão crescente entre diariamente para contemplá-la, reverenciá-la e até mesmo chorar e suplicar diante dela. O Senhor tem acompanhado o alvoroço em torno dos rumores sobre o atendimento de orações e a realização de milagres. O Povo agora divide-se entre as designações Nossa Guia, Santa Guia e Santa do Povo. Ademais, depois que ela faleceu, tornaram-se célebres várias imagens do Senhor chorando diante de seu mausoléu. O Povo passou a admirá-lo também por sua devoção e por sua lealdade a ela. Todos sabem o quanto o Senhor padeceu pela morte dela.

- E o Povo acha que eu devo seguir de luto? Seguir padecendo? 

- Eu acho que, diante destas circunstâncias, o Povo poderia ter dificuldades de conceber que o Senhor possa amar alguém de novo. Quer dizer, se o Senhor amou a Nossa Guia, idolatrada como nunca pelo Povo, porque trocaria a memória dela por uma relação com outra pessoa? O Povo pode ter dificuldades para assimilar. Pode ter interpretações equivocadas. Minha avaliação é a de algo desta natureza poderia colocar em risco as conquistas alcançadas até o momento e as esperanças depositadas no Senhor durante todo este tempo. Poderia haver algum tipo de comoção pública ou até mesmo casos de violência.

- Obrigado por suas importantes palavras, Correligionário. Após ouvi-las, estou convencido de que você se equivoca ao considerar-me um sábio. Não havia considerado nada do que você agora me revela.

- Peço desculpas por ter ultrapassado minha competência, Senhor. No entanto, peço sua permissão para fazer uma última ponderação. Independentemente da decisão que o Senhor tomar, cabe considerar desde logo a segurança da Secretária de Assuntos Privados. Desde o início destas especulações, as opiniões do Povo sobre ela estão cada dia mais severas. Muitos reclamam, quando pouco, sua demissão do cargo. Julgo que, persistindo estas insinuações, será necessário  armar um esquema de segurança para ela.

- Vou refletir sobre suas observações. Agradeço-lhe a sinceridade.

*

Ao redor da cama do Grande Líder encontram-se o Médico Oficial, o Correligionário e o Secretário de Assuntos Privados. O Grande Líder pede que o Secretário tome nota de tudo. Dirige-se então ao Correligionário - agora conhecido como Novo Líder da Nação – para mencionar importantes decisões sobre assuntos de Estado. Em seguida, o Grande Líder, com olhos trêmulos, dá suas últimas instruções:

- Eu quero ser enterrado após a minha morte. Não quero que meu corpo seja embalsamado para ficar exposto em algum prédio público. Tenho, além disso, outro pedido. Rogo encarecidamente que retirem o corpo embalsamado de minha esposa do Salão Adjunto para que eu seja sepultado ao lado dela. Ainda poderão peregrinar para vê-la, apenas deverão dirigir-se a partir de agora ao seu túmulo. Mas eu suplico: por favor, nos deixem descansar em paz. Diga ao Povo que o espírito dela e o meu estarão sempre com eles. Prometa-me que fará isso.

Dois dias depois, o Novo Líder anuncia ao Povo os desígnios do Grande Líder.

O enterro do Grande Líder acontece quatro dias depois e é acompanhado por uma multidão inédita na história desta grande Nação. A cerimônia conta com todas as homenagens dignas de um grande herói. Incontáveis cidadãos optam por assistir ao Ato Oficial ao lado do Salão Adjunto do Palácio da Nação, pois havia rumores – que todos queriam conferir de perto - de que os olhos embalsamados de Nossa Guia poderiam derramar lágrimas em razão de sua morte.

Após a cerimônia, o turbilhão de gente foi pouco a pouco deixando o Cemitério dos Patronos da Nação. O ruído cada vez mais distante dos passos foi sendo substituído pelo silêncio ao redor de seu túmulo. O Grande Líder, porém, não descansa sozinho. O Grande Líder está no coração do Povo.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Como ser você mesmo agora

Eu sei que você não costuma ler textos com mais de um parágrafo ou, pior, que se estendem por mais de uma página. Eu te entendo. Para ler qualquer coisa até o fim, não consigo deixar de alternar janelas ou abas e seguir por fragmentos. Tudo é entediante. Mas quero te pedir, por favor, que tente ir em frente.

Sabe aquela coisa de “é preciso viver como se não houvesse amanhã”? Aquela coisa repetida eternamente em músicas pop, em poemas sem inspiração, “sinceros”, “confessionais” (argh), aquele clichê ambulante saindo de todas as bocas e (pânico) entrando em nossos ouvidos, diariamente? Aquela coisa hippie do “vamos amar como se o mundo fosse se acabar”, aquela coisa irritante da auto-ajuda, do “poder do agora”, do “viver o momento”, que tem séculos e até agora repetem como se fosse uma novidade? Por mais que eu tenha ânsia de vômito ao afirmar isto, por mais ridículo que isto possa parecer ou soar, a verdade é que estou passando por isto agora. Não terei amanhã.
Você não me conhece. Talvez tenha ouvido falar de mim. Contudo, você é possivelmente a única pessoa que pode realmente entender minha história. Decidi passar este último momento livre escrevendo esta carta para você. Isto é um teste.

Eu tenho um vício hediondo. Tudo o que posto no facebook, no instagram, no twitter ou outras redes sociais é medido pelo número de likes, de shares e de comments. É a única coisa que faz sentido para mim. Certas fotos, certas frases, certos objetos e certas pessoas simplesmente não têm o que é necessário para serem curtidos. E tudo o que não é “curtível” foi sendo eliminado de minha existência: roupas doadas, livros no lixo, músicas deletadas, amigos sem ligações de volta, imagens escondidas no fundo do armário, amores que não são fotogênicos. Se não há reação do público, era chato.

Não foi fácil perceber isso. Quando a gente conta algo para alguém, e aquela pessoa gosta daquilo, aquilo reafirma o nosso gosto. Pensava que tinha uma sensibilidade apurada. Também tinha o fato de que eu descobria as novidades antes da maioria das pessoas. A gente descobre em que lugares procurar. Se a reação àquilo é positiva, adota aquilo como parte de nossa identidade. Do contrário, dispensa e esquece. Se ela fica extremamente popular num segundo momento, a gente despreza igualmente. E parte para a próxima descoberta. Tudo natural.

Eu não nasci assim, nem você. Você devia ser uma pessoa sem graça. Ninguém devia olhar para você. Mas você nunca pensou que este menosprezo fosse justificado. Pressentia que era especial. Sentia que podia usar seu próprio fracasso como ferramenta para o êxito. Só um completo fracassado, um fracassado ressentido, entende a dinâmica da popularidade. Você encontrou eventualmente um lugar a que foi transplantada a dinâmica social: a internet. Eu te entendo.

Existe um lugar onde todos são felizes, habitado por milhões de pessoas do mundo inteiro. A banalidade da coisa, entretanto, não impede que cada habitante deste planeta se sinta especial (único), com sua própria personalidade e características que o tornam diferente, digno de ser amado. Faz-se amigos por lá com uma facilidade impressionante. Amigos ambém únicos. E felizes. Esta moderna Babilônia tem nome: rede social.

É possível contar uma história inteira? Eu vivia em uma cidade pequena. Como em toda cidade pequena, as pessoas todas se conhecem e importunam uns aos outros. Mas eu não tinha muitos amigos. Em outras palavras, eu passava o dia inteiro na frente do computador. Mal conhecia gente, conversava pouco. Achava ruim até sair para a rua. Testemunhar aos demais convivendo em grupos dos quais eu era excluído. Não tinha a mínima ideia do que eles falavam e temia ser ridículo e que zombassem de mim nas minhas costas. Tinha vergonha das minhas roupas. Vergonha do meu corpo. De existir. Eu era triste antes de ser considerado legal.

Só interagia pela internet. Primeiro, pelas salas de bate papo. As pessoas conversavam com quem não conheciam e os papos eram sempre truncados - começavam com um “oi-tudo-bem”, seguiam por um “quem-é-você-de-onde-você-é-o-que-você-faz” e terminavam com um “até-a-próxima” quando não havia próxima vez. Depois, por ferramentas sociais nas quais você adicionava outras pessoas, seus amigos virtuais.

Tudo o que houve antes foi uma preparação para chegar até aqui. Antigamente, era muito pouco sutil. Não penso que a natureza das coisas mudou, mas existe um limite que não pode ser ultrapassado. Aquelas fotos de gente expondo seus corpos em fotos de perfil, a impossibilidade de se escrever coisas privadamente, a sinceridade açucarada causando seguidas ânsias de vômito. Tudo era direto demais, honesto demais. Além disso, não havia câmeras, smartphones, tablets e outros gadgets conectados todos com fio, sem fio, por 3G, por 4G, por 37G. Foi preciso sofisticar tudo. Não era chegado o momento. Já estou me perdendo.

Eu vivia numa cidade pequena e era solitário. Já disse isso antes, né? Vivia na internet. Primeiramente, nos videogames. Depois, os videogames, os celulares, as câmeras, as televisões, tudo conectava-se entre si e com a internet. Um dia, li uma notícia sobre uma rede social nova, diferente do orkut. Era preciso um “convite” para entrar. Como tinha amigos estrangeiros, rapidamente recebi o tal convite. Fui um pioneiro, como você deve ter sido.

Quando começaram a entrar pessoas conhecidas, eu já vivia ali há algum tempo. Pobres diabos... Chegaram com aqueles mesmos hábitos toscos de sempre: fotos em poses patéticas e “sensuais”, frases sobre seus próprios umbigos, constantes elogios mútuos, discussões abertas sobre a vida alheia. Uma lástima. Porém, me adicionaram.

Eu era nerd antes de ser considerado legal (21 likes). Não sei precisar o que ocorreu primeiro, se a remissão dos nerds (dos papéis ridículos em filmes dos anos 80 para o protagonismo “cool” em séries dos anos 90 e 2000), se a disseminação das redes sociais. Foram complementares, de qualquer maneira. Meus amigos passaram a informar-se do que era hype pelo que eu dizia e aparecia em seus respectivos murais (a ideia do feed, aliás, é genial). O problema é que, quando comecei a ditar modas a pessoas que eu via na escola, elas começaram a reparar em mim (no meu eu físico, não-virtual). Isso exigiu mudanças repentinas. Foi preciso adaptar meu perfil offline ao meu perfil online. Passei a vestir roupas que condiziam com minha atitude virtual. Não podia mais falar qualquer coisa, escutar qualquer coisa, comer qualquer coisa, ir a qualquer lugar. Não podia haver contradição. Ao seguir à risca a nutrição “cool”, a ter o corpo “cool”, a praticar somente atividades “cool”, a ir exclusivamente a lugares “cool” e exclusivos, a carregar livros e revistas importadas “cool”, eu me tornei uma pessoa “cool”. Eu era o “cool”.

Passei a ser convidado para festinhas das pessoas da minha classe. Depois, para festinhas de pessoas de fora da minha classe. Depois, para festinhas de pessoas de outras escolas. Festas de pessoas mais novas e mais velhas. Depois, eu próprio passei a dar festinhas e havia passado para o lado das pessoas que diziam quem eram os convidados (isto é, quem era “cool”) e os excluídos ( “not cool”). Eu vejo a contradição. Sei que, como antigo pária social, deveria ter horror a esse tipo de prática, ter calafrios com o atual louvor a camarotes e áreas VIP. Mas não funcionou assim. Era divertido demais fazer listas. Era uma espécie de vingança da minha infância.  

Fui feliz por um tempo. Mas algo passou a me incomodar. Havia um vazio, uma falta que eu não podia explicar. Compreendi que, embora fosse vanguarda na minha cidade, a vanguarda de verdade estava longe dali, nas grandes cidades. E eu morava numa pequena cidade. Era um indie jeca. Não podia seguir assim.

Se você é “cool”, tem que gostar de viajar. Uma pessoa legal não se limita às atividades cotidianas de uma província. Não basta ler websites e revistas da moda. Não basta citar em outras línguas. É preciso acompanhar os acontecimentos in loco. Especialmente quando outras pessoas da sua cidade o faziam com certa frequência.

Então, passei a ir à capital. Eu tinha primos por lá e, progressivamente, fui tendo mais contato com membros das comunidades virtuais que frequentava. Fui me sentindo cada vez mais à vontade, a ponto de sentir-me mais em casa do que me sentia onde vivia. Frequentava shows, festas, saraus, restaurantes, happenings cada vez mais exclusivos.

E o povo da minha cidade natal nem sabia o que era mainstream (naquela época em que mainstream ainda não era tão mainstream).

Quase sem perceber, fui adotando uma vida dupla. Por um lado, eu fazia parte do círculo de produção de eventos e passei a ganhar dinheiro discotecando. Por outro, conseguia arrebanhar muitos “curtidas” sendo sarcástico com um número crescente de características da vida naquela mesma cidade. Como se eu estivesse acima daquilo tudo, quando aquilo era tudo o que eu tinha. Eu era uma fraude. Refugiava-me cada vez mais na capital do estado, passei a viajar com eles para São Paulo e Rio.

“Primeira noite no meu apartamento no Rio” (97 likes). Tudo voltou a ser legal: pessoas, lugares recém-descobertos. Tudo tão como deveria ter sido sempre. Meu instagram começou a ter cada vez mais seguidores, meu número de amigos do facebook triplicou. Percebi que a melhor maneira de acumular amigos é viajar muito. Parar de ver pessoas repetidas, e adicionar todos que conheceu na noite. Deixar de perder tempo. Sua rede vai crescendo. O número de likes em cada atualização aumenta exponencialmente.

Além de ingressar na faculdade (graduação em publicidade), fazia um sem-número de cursos paralelos: fotografia, cinema, discotecagem (acredite: existem cursos para DJs), piano (violão era muito mainstream), tipografia, desenho industrial (design), história da arte, oficinas literárias, de composição musical e de pintura e de qualquer coisa que pudesse estimular minha criatividade, arquitetura, cinema, degustação de vinhos, fabricação de cervejas artesanais, culinária japonesa, gastronomia orgânica. Mal sobrava tempo para dormir (minhas olheiras bombando com minhas roupas negras). Saía cada vez mais, conhecia gente, ficava ou namorava ou tinha rolos ou uma coisa assim do tipo meio complicada.

As coisas acontecem com você e você nem nota quando está acontecendo. Comecei a escutar Radiohead na casa de um amigo, depois tomei contato com Arcade Fire, Cat Power, Animal Collective, Neutral Milk Hotel, Belle & Sebastian, Kings of Convenience, The Strokes. Canções obscuras de Bob Dylan, de Leonard Cohen. As pessoas que eu admirava estavam escutando. Comecei a baixar álbuns avidamente. A ir a festivais de cinema independente (Michel Gondry, Spike Jonze, Wes Anderson, Jim Jarmusch, clássicos redescobertos, documentários obscuros). Seguia para cafés onde comentávamos (meus amigos hipsters e eu) sobre os filmes que estávamos assistindo e as bandas que estávamos escutando. E conferindo, ao mesmo tempo, em websites especializados em nossos celulares e tablets, se havia a aprovação dos críticos cujos blogs acompanhávamos. Havia, claro, alguma competição, mas nada que passasse do ambiente saudável. Estávamos todos tentando descobrir artistas antes que os demais conhecessem e desprezávamos como coisa do século passado alguns artistas de que gostávamos um mês antes mas passavam a ser escutados por pessoas que também desprezávamos. Havia uma vontade genuína e mesmo desesperada de assimilar tudo. Então, depois das audições de álbuns recém-lançados (no antigo formato mp3 e, agora, em vinis de 180 gramas), depois das perambulações em lojas virtuais de ebooks ou sebos onde podíamos comprar livros antigos em raras edições (para ler os mesmos autores: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, J. R. Tolkien e, sejamos sinceros, J. K. Rowling), íamos tomar cafés, cervejas artesanais ou vinhos para comentar o que todos nós estávamos escutando, lendo e assistindo. Todos com insights memoráveis e cortantes, entre alguns cigarros de maconha ou tabaco orgânico.

Esta vontade de ser autêntico foi invadindo tudo. Era absolutamente proibido sequer tomar contato com algo que fosse extremamente popular. Tínhamos horror a palavras como “sucesso”, “blockbuster”, “best-seller”, “Oscar”, “disco de ouro” (argh). Um desdém por quem que só acompanhasse programas da televisão aberta, que comesse no McDonalds, que gostasse de “cozinha internacional”, que não assistisse a filmes em preto e branco, que escutasse somente o que tocasse em rádios, que comprasse livros do Paulo Coelho (argh). Nós, que adorávamos a Apple quando simbolizava resistência contra o domínio do Windows, passamos a achar depois que o iPod e o iPhone eram muito mainstream e adotamos celulares com o sistema operacional Android. Alguns eram radicais. Não fôssemos contra a violência, haveria gente capaz de bater em quem não conhecesse Daft Punk ou, pelo amor de deus, que ousasse caminhar na rua calçando Crocs.

Quando fui fazer meu mestrado (requisito indispensável e ademais divertido, por permitir postar constantes reclamações sobre o sofrimento de escrever a dissertação e, depois, a tese), entre Paris e Nova York, já tinha um aspecto irreconhecível. Era magro, tinha barba, gostava de roupas antigas ou camisetas com motivos irônicos, levava óculos de aro grosso, tênis baixos, jeans skinny, tinha um corte de cabelo completamente assimétrico. Praticava ioga, caminhava bastante por parques, meditava. Tornei-me vegetariano (depois, vegano) e passei a comer apenas alimentos orgânicos. Era comum discutir o grau de asco que cada um tinha ao testemunhar alguém mastigando carne na mesma mesa em que ingeríamos um yakisoba orgânico.

Pode parecer superficial, mas havia uma filosofia. Você não é melhor do que nós. Defendemos causas: a sustentabilidade, a diversidade cultural, o fim do consumismo desenfreado. Lemos Nietzsche, Freud, Foucault. Eu estava convicto de que estávamos do lado certo da sociedade e da história.

Talvez, meu incômodo tenha se iniciado com o rumo que nossas conversas foram tomando. Pouco a pouco, todo mundo que eu conhecia passou a comunicar-se por uma única língua: a da ironia (e de seus subprodutos: sarcasmo, desdém, ambiguidade). Mudei-me para a galáxia anti-literal. A ironia contaminou tudo o que tinha a ver conosco: nossas opiniões, roupas, fotos, as conversas por cima das mesas de cafés e de bares, a música, a literatura, a publicidade e até mesmo as tatuagens. A ironia tornou-se regra universal.

A ironia tem a vantagem de permitir que tudo seja levemente engraçado, que tudo seja levemente crítico (e, portanto, levemente inteligente) e, ao mesmo tempo, funciona como escudo contra qualquer crítica. Quando ninguém sabe mais o sentido real de nada, ninguém sabe o que cada um de fato pensa. Tudo é refratário, e tudo é permitido. Pode-se elogiar qualquer coisa (dos Muppets ao suicídio), pode-se falar mal de qualquer coisa (de Gandhi aos Beatles). O que importa é somente manter a estabilidade das referências. Aliás, quanto mais referências, melhor. Daí, basta elaborar alguma frase com efeito. Passamos a ter um riso eterno no canto dos lábios.

Por isso me dói escrever esta carta. Uma carta de verdade não permite uma ironia generalizada, não me permite saber como você vai reagir a ela (não tem como você “curti-la” e eu receber uma notificação). Parece uma foto que só pode ser vista depois de revelado o negativo.

O mecanismo da ironia é simples e imperioso. É preciso ironizar o que parece estar por cima. Todo o hype deve ser objeto de sarcasmo depois de um certo (e cada vez mais curto) tempo. Não há nada mais eficiente que atacar o que ainda é idolatrado pela maioria, profanar os templos dos old-fashioned (“this is so last week”) e considerar cool o que ninguém conhece. Porém, depois de envolver em ironia tudo o que era da minha cidade de origem e das posteriores, depois destruir em sarcasmos antigos amigos e novos inimigos, depois de tornar dúbio qualquer obra de arte de que tinha gostado no mês anterior, não sobrou quase nada a ser desprezado além de eu próprio.  

Além de declarar tudo desprezível, eu nem mesmo sei se gosto do que eu acho que gosto. Meus amigos são perfeitos em redes sociais, assim como eu sou. Tenho uma namorada por quem estou apaixonado, mas ela fica tão linda em fotos, tem frases tão geniais, que não sei mais se sou apaixonado por ela ou pelo efeito que ela causa em outras pessoas. Só consigo apreciar o que é digno de apreciação dos outros. Melhor: só consigo gostar de pessoas que outras pessoas consideram que seriam as pessoas de quem eu deveria ou poderia gostar. Só gosto do que ou de quem atraia o número máximo de likes alheios. Fiquei tão absorto em obter likes de outros que esqueci de pensar do que eu mesmo gosto.

Às vezes, quando começo a gostar de algo, publico em alguma rede social e ela não tem a repercussão que seria necessária. Antes, eu a dispensaria sem hesitação. Agora, não consigo mais fazer isso. Sinto que estou abandonando algo que poderia ser aquilo de que eu gosto. Além disso, a própria busca está me cansando. Mas meu vício de ser “curtido” é mais forte. Não consigo parar, por mais que odeie tudo. Por mais que sinta agora um tédio enorme de tudo e de todos.

Agora está tudo preparado. Foi fácil fixar os aparelhos necessários na rua. Ninguém percebeu nada. Hoje em dia pode-se instalar uma bomba nuclear no meio da rua e passar despercebido. A comunicação de massa mudou a maneira de as pessoas andarem na rua. As calçadas parecem povoadas pelos zumbis das séries que você e eu acompanhamos, com seus fones de ouvidos e seus olhos fixos nos celulares. Andam em ziguezague, devagar, sem olhar para a frente. Trombam uns com os outros. Às vezes, até param, sem qualquer obstáculo no caminho. Quando era criança, tinha essa impressão em shopping centers. Agora é a regra absoluta de todos os lugares. Eu tampouco sou diferente. Só olhava o mundo para tirar fotografias no instagram. Estou me perdendo de novo e já não tenho mais tempo.

É por isso que não havia outra saída. Eu não podia mais continuar nem seria capaz de retirar-me sem a repercussão, que é a única coisa que dá sentido a tudo o que faço. Precisava sair pela porta da frente. A solução era óbvia. Sei que você me entende.

Estou consciente de que maneira pela qual resolvi despedir-me será chocante demais para contar com muitos “curtidas”. Mas os iniciados sabem que a variável mais importante entre todas não é o número de likes, e sim o de shares.

Se virar moda, lembre-se que eu terei feito isto antes de ser considerado legal.

Adeus.