segunda-feira, 26 de março de 2012

Ausente


Francisco estava decorando a casa para que Beatriz a encontrasse exatamente do jeito que sempre sonhara. Passava grande parte do tempo percorrendo-a e fazendo listas dos desejos que ela havia manifestado antes de partir. E depois buscava colocá-los em prática. Tinha, por exemplo, replantado todas as flores que eram de seu gosto e retirado os quadros que ela não achava especialmente bonitos e substituído por novos, comprados numa galeria modernista no centro da cidade e que haviam custado mais que um mês de seu salário. Emoldurou cartazes com imagens que certamente a alegrariam imensamente quando os visse. Pensava em como ela diria: “Francisco, que coisa mais maravilhosa a nossa casa, vamos ser muito felizes aqui de agora em diante”.

Aqueles pequenos defeitos das paredes e do teto, que nunca o incomodaram, resolveu eliminá-los e contratou alguém para que não sobrasse mais sinal daquelas falhas e rachaduras que haviam lhe causado tantas perturbações. Tinham tido azar, realmente, mas o que importava agora é que tudo já estava superado. Os vazamentos da cozinha, as manchas no móvel da sala,  as janelas que rangiam, tudo havia sumido e não havia mais algo que não estivesse em perfeito estado. E se, ainda assim, Beatriz não quisesse mais ficar lá, não se importava: se mudaria de apartamento, construiria uma casa, passaria anos arrumando tudo de novo, desde que com ela.

Francisco queria aumentar ainda mais a surpresa que Beatriz teria em sua chegada. Deixou suas leituras usuais e seus programas de televisão e começou a ler livros sobre os assuntos que a interessavam, com o objetivo de impressioná-la quando ela viesse falar que era uma pena que eles não tinham os mesmos interesses para conversar por horas e horas sobre as coisas que mais a apaixonavam. Começou pesquisando na internet, leu alguns textos mais longos, assistira alguns filmes, frequentara cursos e até se pode dizer que passara a ser quase um especialista em alguns assuntos. Já tinha escutado inúmeras vezes todos os discos que ela deixara, sabia de memória a letra de todas as músicas. Assoviava algumas enquanto passeava a pé pela cidade.

Adotou uma gata siamesa e a chamou de Amélie, pensando que a agradaria. Sempre que Francisco sentia-se sozinho, Amélie ficava ao seu lado, ronronando e consolando-o.

Às vezes, porém, Francisco se sentia triste por Beatriz demorar tanto. Via que, pouco a pouco, as marcas que deixara nele iam se apagando da memória. Não conseguia mais lembrar-se exatamente da sua voz, por mais que a tenha escutado diariamente por anos.  Concentrava-se intensamente, mas não estava mais seguro de que o tom recordado tinha exatamente aquele seu timbre tão particular. As feições gerais do rosto se mantinham intactas em sua cabeça, mas os detalhes também feneciam gradativamente. Adorava as pintas no rosto dela, espargidas entre umas rugas tão superficiais que só de bem perto era possível perceber. Nesses momentos de consciência do inevitável esquecimento, abria os álbuns de fotografia e constatava que o rosto que havia reconstituído mentalmente não era exatamente aquele que constava dos retratos.  Reparava que nem ele próprio era agora o mesmo daquelas fotos tiradas pouco antes de deixar de conviver com a mulher que amava tão apaixonadamente. Não podia mais reviver a sensação de percorrer com os dedos a pele de seu braço tão delicado. Sentia uma nostalgia inacreditável de seu cheiro. De vez em quando, imerso em todas essas frustrações,  respirava com dificuldade, tentava tomar um banho e chorava embaixo do chuveiro.

Nesse incessante pensamento em Beatriz, Francisco foi progressivamente afastando-se das pessoas de seu convívio diário. Negava-se a conversar com os amigos de Beatriz, porque isso trazia ainda mais recordações e mais angústias. Por outro lado, não tinha alegria em encontrar seus próprios amigos, que buscavam fazê-lo pensar em outras coisas que não Beatriz. E só Beatriz importava. Havia que se preparar para seu retorno iminente.

Contudo, o tempo passava. Francisco buscava evitar este pensamento e se entregava a alguns atos desesperados. Um dia, encontrou uma escova para pentear que continha alguns fios de cabelo dela, e com medo de que a limpeza periódica de sua casa acabasse com os últimos resquícios do corpo de sua mulher, guardou este tesouro onde faxineira alguma pudesse matar o que havia sobrado dela. Outras vezes, Francisco ia ao guarda-roupa, onde tinha mantido todas as peças de Beatriz, e tentava obstinadamente sentir seu cheiro. Mas tudo o que vinha dos tecidos era um olor de mofo misturado com resquícios de amaciante.

Pensava sempre no que Beatriz estaria fazendo naquele momento. Estaria ela num parque, alimentando pássaros? Estaria ela arquitetando planos para o futuro? Estaria dançando alegremente em alguma festa? Estaria bêbada e soluçando em uma mesa de bar? Estaria cantando no meio da rua atraindo os sorrisos interessados de todos? Estaria se divertindo com seus novos ou velhos amigos? Teria um novo amor? Teria se esquecido dele? Estaria sofrendo de saudades? Estaria desenhando prédios num banco de praça? Estaria tendo reuniões com seus novos colegas de trabalho e clientes? Estaria chorando? Estaria sorrindo? Francisco variava entre as infinitas possibilidades e não cansava de imaginá-la sempre, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo, cada fração de tempo que lhe foi concedida viver.

A verdade, porém, é que Beatriz não estava fazendo nada do que Francisco imaginava. Ela jazia no lote 272 do Cemitério da Saudade, na periferia da cidade. Saíra perturbada de casa, dois anos antes, por conta de uma discussão que tivera com ele. Distraída, atravessou a rua em prantos e foi atropelada por um caminhão da prefeitura que percorria a rua a toda velocidade. Francisco, que correra atrás dela, vira tudo. Acompanhara-a na ambulância até o hospital e recebera a notícia de sua morte poucas horas depois. Durante seu funeral, parecia catatônico: não dizia nada, parecia não ver nada, entender nada. As pessoas, ao cumprimentá-lo, o viam desconsolado para além de qualquer cura. Depois de um tempo, passou a agir como se nada tivesse acontecido, e a anunciar e ansiar por sua volta.

Muitas vezes, Francisco se sentia tão pequeno, tão pequeno, tão pequeno. Não tinha mais vontade de trabalhar. Não conseguia comer nem dormir. Desejava punir-se. Presumia que tinha sido abandonado por ser uma pessoa ruim. Por ser fraco, por ser ignorante, por ser feio, por ser egoísta, por ser patético, por ser desprezível.

Periodicamente, saía de casa para escrever uns poemas curtos e desenhar paisagens urbanas, sempre com carvão ou grafite. Para ele, o mundo passara a ser em preto e branco.