sexta-feira, 27 de julho de 2007

Mais citações

Citação a propósito de uma conversa que tive com uma pessoa muito legal:

"We all want to be told stories, and we listen to them in the same way we did when we were young. We imagine the real story inside the words, and to do this we substitute ourselves for the person in the story, pretending that we can understand him because we understand ourselves. This is a deception. We exist for ourselves, perhaps, and at times we even have a glimmer of who we are, but in the end we can never be sure, and as our lives go on, we become more and more aware of our own incoherence. No one can cross the boundary into another – for the simple reason that no one can gain access to himself".

(Paul Auster, em "The New York Trilogy")

Numa noite parisiense...

Eu estava em Paris, em fevereiro deste ano, num quarto de hotel, com preguiça de sair, com ressaca. E é nesses momentos em que eu sinto como a poesia é importante na minha vida. Eu, como sempre, já havia gastado todo o dinheiro que não tinha em livros, e um deles era uma antologia de poemas franceses do século XX. Quando li esse poema do Blaise Cendrars, naquela noite, não sei bem a razão, chorei. Eu achei maravilhoso. Logo depois, gastei mais do meu limite do crédito do banco com sua obra completa. Eu realmente o recomendo. Simplesmente maravilhoso...

Quand tu aimes il faut partir
Quitte ta femme quitte ton enfant
Quitte ton ami quitte ton amie
Quitte ton amante quitte ton amant
Quand tu aimes il faut partir

Le monde est plein de nègres et de négresses
Des femmes des hommes des hommes des femmes
Regarde les beaux magasins
Ce fiacre cet homme cette femme ce fiacre
Et toutes les belles marchandises

II y a l'air il y a le vent
Les montagnes l'eau le ciel la terre
Les enfants les animaux
Les plantes et le charbon de terre

Apprends à vendre à acheter à revendre
Donne prends donne prends

Quand tu aimes il faut savoir
Chanter courir manger boire
Siffler
Et apprendre à travailler

Quand tu aimes il faut partir
Ne larmoie pas en souriant
Ne te niche pas entre deux seins
Respire marche pars va-t'en

Je prends mon bain et je regarde
Je vois la bouche que je connais
La main la jambe l'œil
Je prends mon bain et je regarde

Le monde entier est toujours là
La vie pleine de choses surprenantes
Je sors de la pharmacie
Je descends juste de la bascule
Je pèse mes 80 kilos
Je t'aime

(Blaise Cendrars)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

"Minha filhinha querida,

Você foi de um egoísmo monstruoso. Acho que é em parte culpa minha que você tenha se tornado o que é. Gostaria de não te amar, mas, das duas filhas que nós tivemos, sua mãe e eu, você era a mais linda. E você precisava me seduzir. E eu preciso ser seduzido. Eu estava muito só, sua mãe vivia no hospital, e isso facilitou as coisas pra você.

Amei você loucamente todos esses anos. Sua irmã se fechou e, você, você desabrochou. Cada dia mais agressiva, mais insolente, acre, fria, superficial. Mas não pude evitar de amar você. Agora, sinto um ódio por você que não some nem estando meu corpo em frangalhos. Eu fervo de ódio, diante de sua rebelião cruel.

Sou culpado, pois fui eu que tornei minha filhinha arrogante. Eu realmente amei o seu orgulho. Como a coalhada, sua arrogância virou uma vaidade azeda. Seu orgulho tornou-se uma afetação estúpida. Hoje, você é uma pessoa amarga. É mesmo minha filha. Por trás do seu riso seco, acha que não vejo como se diverte? Diverte-se, porque o orgulho te enfraquece, mas sua amargura lhe dá uma força terrível. Você era toda submissa. Até que descobri, por trás de sua submissão, uma vontade e uma inveja que me encheram de terror.

Tenho medo de você. Odeio você, minha filhinha. Estou morrendo, e acho injusto que eu morra e que você viva. Queria que você tivesse o meu câncer, que sofresse. Ter tempo de perdoar você após a sua morte. Então, morro cheio de ódio. Não suporto que você sobreviva a mim. Eu queria que você morresse no meu lugar, e isso não é possível.

Ma petite fille cherie,

Tu étais d’un egoïsme monstrueux. Je pense que c’était un peu de ma faute si tu es devenue ce que tu es. Je voudrais ne pas t’aimer. Mais des deux filles que nous avons eues, ta mère et moi, tu étais la plus jolie. Et tu avais besoin de me séduire. Et j’ai besoin d’être séduit. J’étais très seul, ta mère était souvent à l’hôpital, et cela t’est rendu la partie facile.

Je t’ai follement aimé, toutes ces années. Ta soeur s’est renfermé, et toi, tu t’es epanouie. Chaque jour plus agressive, plus insolente, âcre, froide, superficiel. Mais je n’ai pu m’empêcher de te chérir. Maintenant, j’ai une colère contre toi que je n’arrive pas à arrêter alor que mon corps est devasté. Je brûle de colére, en avant ta rébellion mauvaise.

Je suis coupable, parce que c’est moi qui a poussé ma petite fille à ètre fière. J’avais tellement aimé ton orgueil. Comme le caillé, ta fierté a tourné une vanité aigre. Ton orgueil est devenu une coqueterie stupide. Aujourd’hui, tu es une autre d’une amertume, mon enfant, comme moi. Tu es bien ma fille. Derriére ton rire sec, crois-tu que je n’entends pas comme tu jouis? Tu jouis parce que l’orgueil t’enfaible mais ta amertume te donne une force terrible. Toi, tu étais toute soumise. Mais que je decouvre, derrière ta soumission, une volonté et une envie qui me plonge dans la terreur.

Je te crains. Je te hais, ma petite fille. Je suis en train de mourir et j’estime injuste que je meure et que, toi, tu vives. Je voudrais que tu aie mon cancer et que tu soufres. Avoir du temps pour te pardonner après ta mort. Alors, je meurs dans la colère. Je ne supporte pas que tu me survives. Je voudrais que tu meures en ma place, et ce n’est pas possible.

(do filme « Reis e Rainhas », de Arnaud Desplechin)

terça-feira, 10 de julho de 2007

A propósito de meu aniversário. A propósito do livro que estou lendo no meu aniversário.

O. to A. in conversation, describing what it felt like to have become an old man. O., now in his seventies, his memory failing, his face as wrinkled as a half-closed palm. Looking at A. and shaking his head with deadpan wit: "What a strange thing to happen to a little boy."

Yes, it is possible that we do not grow up, that even as we grow old, we remain the children we always were. We remember ourselves as we were then, and we feel ourselves to be the same. We made ourselves into what we are now then, and we remain what we were, in spite of the years. We do not change for ourselves. Time makes us grow old, but we do not change.

(Paul Auster, The invention of solitude, p. 145).

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Identidade na obra de Bernardo Carvalho

O presente artigo busca analisar a questão da identidade na obra do escritor brasileiro contemporâneo Bernardo Carvalho. Para efeitos de síntese, centrar-se-á a análise às quatro obras de maior repercussão junto à crítica literária: Teatro, Nove Noites, Mongólia e O Sol se Põe em São Paulo[1]. Serão estudados três aspectos relacionados à formação da identidade: produção do espaço, sexualidade e nome. Observar-se-á que o estilo do autor, ao colocar em questão o dualismo ficção/história, discute identidade sob a ótica dita pós-moderna, por meio da desconstrução de oposições típicas do pensamento racional, similar ao procedimento de Jacques Derrida, na filosofia.
A questão da identidade nacional deixou de ser o centro de debate pelos literatos, desde a década de 1960. O pós-modernismo colocou em questão a própria noção de identidade, e enfatizou sua faceta normativa (em detrimento da puramente interpretativa) como um dos totalitarismos dos discursos. No entanto, o paradoxo criado foi que a discussão sobre a pertinência do conceito de identidade levou a discussão ainda mais intensa sobre o conceito[2].
Os romances de Bernardo Carvalho, especialmente os últimos, funcionam muitas vezes como alegorias para a colocação de questões discutidas por autores contemporâneos. E uma dessas questões é a (possibilidade de) identidade. Nas tramas do autor, os personagens possuem uma posição muito questionável, frágil. Essa fragilidade advém de diversos aspectos indefinidos, que são relacionados diretamente à formação da identidade. Pretende-se trabalhar a identidade em relação a três aspectos relacionados à formação da identidade: o espaço, a sexualidade e o nome.
A estabilidade em termos de espaço, a noção de que se tem um lugar, é simbolizada pelo lar. Segundo Doreen Massey[3], o lugar a que se chama de “lar” é um refúgio que provê tanto a estabilidade espacial, uma estrutura geográfica ou arquitetônica fixa para a qual se pode sempre retornar, assim como uma fonte de identidade que não pode ser contestada.
Essa estabilidade espacial não existe para a maioria dos personagens de Carvalho. Embora se possa dizer que a instabilidade, o estranhamento do lugar, no Brasil, foi trabalhada pela literatura sobre migrantes (especialmente o nordestino), na obra em questão há uma radicalização do movimento e uma problematização maior da questão da possibilidade de um lar. Em Teatro, nas duas histórias paralelas que dialogam, se confrontam e se desmentem, os protagonistas saíram de seu país de origem, pobre, para aventurar-se no país “dos sãos”, após uma árdua caminhada para atravessar a fronteira clandestinamente. E há também o caminho de volta, sendo realizado pelo que cruzou a fronteira ou pelo filho daqueles que emigraram. A alusão aos imigrantes latinos nos Estados Unidos é evidente. Em Nove Noites, a história se passa no Brasil e nos Estados Unidos, mas a parte que se passa no Brasil tem como protagonista um norte-americano, Buell Quain, antropólogo que veio ao Brasil para estudar os índios krahô no Xingu e que, sem razão aparente, suicida-se de maneira brutal. O narrador é um jornalista que busca, décadas depois, a explicação para o suicídio do antropólogo, que percorre seu caminho e acaba indo também aos Estados Unidos em busca de mais evidências em sua investigação. Em Mongólia, dos três narradores da história, dois são diplomatas brasileiros, sendo um deles um velho diplomata removido para a China, que envia um inferior hierárquico, o segundo narrador, para a Mongólia, com a missão de encontrar um fotógrafo (o terceiro narrador), também brasileiro e filho de influente empresário, que desapareceu nesse país. Em O Sol se Põe em São Paulo, o narrador, brasileiro filho de imigrantes japoneses, resolve escrever a história de uma imigrante japones; para descobrir toda a história, acaba indo ao Japão, relutantemente. Este último romance é todo preenchido por pessoas cuja história não se dá inteiramente nem no Japão, nem no Brasil, mas na passagem entre os dois.
Os personagens, portanto, não migram dentro do espaço nacional, que definiria a mais discutida das identidades: a nacional. Eles transitam entre países, quase nunca estão dentro daquele território que poderia defini-los como parte de um todo cultural. Há um estranhamento, uma barreira evidente à comunicação e ao entendimento (sendo a língua o aspecto mais evidente), que leva à sensação de se estar fora do lugar.
O mero movimento, no entanto, não implicaria a eliminação do lar, de um lugar para onde se poderia voltar: um brasileiro poderia definir-se como brasileiro sempre que estivesse fora do país. E eis a radicalização da problemática da formação da identidade na obra analisada: a maioria dos personagens vive em transição, não possuem um lugar exato para onde podem voltar, ou que podem definir como “de onde sou”. Quanto mais transitam, mais a noção de lar é colocada em questão: a falta de estabilidade impossibilidade a fixidez do lar. Nesse aspecto, duas figuras trabalhadas pelo autor são exemplares nesse quesito: o migrante e o diplomata. A identidade espacial, nos dois casos, é claramente problemática.
O migrante internacional é aquele que, mesmo que se movimente contra suas expectativas iniciais, resolve abandonar o seu lugar de origem e começar a vida em outro lugar. Eis a diferença dele para o viajante ou o turista: a adoção de um novo referencial, nacional e cultural, em termos definitivos. O migrante não é considerado, nem por si nem pelo outro, nem nacional de seu país, que abandonou, nem nacional do país que habita. O migrante é aquele que habita o entre-lugar, tal como trabalhado por Homi K. Bhaba, é aquele que se encontra na passagem, no não-lugar[4]. A situação chega ao limite no caso do migrante de segunda geração. Na obra de Carvalho, ele continua a ser tratado como imigrante pelo outro e não pensa possuir um referencial absoluto no país onde nasceu: é estrangeiro. Por outro lado, o referencial que poderia adotar, de seus ascendentes, sequer é por ele conhecido. O migrante de segunda geração é o nacional-estrangeiro, aquele cujo referencial não é legitimado. Por isso, ressente de seu passado imaginado, na figura de seus ascendentes e de sua origem, e com o país onde nasceu, por ser por ele rejeitado, ou não totalmente acolhido.
O diplomata é outra figura sem referencial espacial claro. Embora o diplomata esteja sempre a serviço do mesmo país, o seu “lar”, e até o represente, sua vida é marcada pelo nomadismo. O diplomata sequer vive num mesmo país, ou procura adotar um referencial como definitivo, como faz o migrante. O diplomata é aquele que veio de outro lugar, e que está indo para outro. Seu espaço é a própria transição entre espaços, é a passagem, a travessia. Bernardo Carvalho, em Mongólia, menciona que, “num país de nômades, por definição, as pessoas nunca estão no mesmo lugar. Mudam conforme as estações. Os lugares são as pessoas. Você não está procurando um lugar. Está procurando uma pessoa. Pois é atrás dela que estou indo”[5]. O referencial espacial do diplomata é muito frágil, pois o lugar que representa não é aquele que habita e, ao mesmo tempo, o lugar que habita jamais é definitivo, mas passageiro (uma mera passagem).
Nos livros analisados, mesmo os personagens que não se definem como migrantes ou diplomatas possuem um referencial espacial muito frágil. O antropólogo norte-americano que vem ao Brasil já se sentia um estrangeiro em seu próprio país, e sua vinda ao Brasil era vista como um meio de fuga do lugar onde não se sentia em casa. O mesmo é o caso do jornalista que investiga as razões de seu suicídio, para quem o Xingu, que visitava quando pequeno (assim como o próprio Bernardo Carvalho), era detestável. O diplomata que parte em busca do fotógrafo, em Mongólia, é chamado de “Ocidental” pelos mongóis. Porém, sua própria concepção a respeito tanto do Ocidente quanto do Oriente é tão problemática que passamos a nos perguntar sobre a pertinência da classificação. A formação da identidade, em suma, possui relação com a produção do espaço e, no caso daqueles que não possuem um espaço definido, aqueles que habitam o entre-lugar ou o não-lugar, sua identidade é problematizada, é fragilizada, por causa de sua instabilidade.
Outro meio de definição de identidade é a sexualidade. Antes mesmo do nascimento, a primeira pergunta formulada é: “menino ou menina?”. A sexualidade é geralmente definida em termos de oposição: o homem é aquele que não é mulher, e vice-versa. O gênero é aspecto importante na definição de quem uma pessoa é, ou de como ela se diferencia do outro (o sexo oposto): em suma, o gênero é definidor de identidade. A definição de gênero implica a expectativa de certo padrão comportamental. Em outras palavras, o gênero possui também aspecto normativo.
A frustração das expectativas provocadas pela definição de gênero, na obra de Bernardo Carvalho, ocorre por meio de assunto recorrente em sua obra: a homossexualidade. Em Teatro, o protagonista da segunda história é astro de filmes pornográficos homossexuais. Em Nove Noites, o antropólogo norte-americano, que é caracterizado como “casado” no início da investigação, tem sua sexualidade colocada cada vez mais em cheque, até o ponto em que, talvez, a própria indefinição quanto à sua sexualidade é uma das causas possíveis de seu suicídio. Em Mongólia, o fotógrafo desaparecido não possui nome, mas é chamado pelos locais de “Buruu Nomton”, que significa “desajustado”. Em certo momento da narrativa, certa declaração homofóbica deixar entrever a falta de credibilidade dos personagens e, consequentemente, ilumina passagens cuja única evidência era seu testemunho[6]. O nome “Buruu Nomton”, então, passa a ter uma conotação homossexual, mesmo que indiretamente, visto que “desajustado” é alguém que “não segue as regras”. No mesmo livro, são retratadas práticas homossexuais de monges budistas. Em O Sol se Põe em São Paulo, um dos protagonistas da história, que até então fazia o papel de marido traído, começa a exercer o papel oposto, tendo um caso com o ex-amante da esposa, ora desprezada por ambos.
A divisão clássica de gêneros é feita segundo maneira de pensar típica do racionalismo, que contrapõe, em termos absolutos, um gênero a outro. A homossexualidade, ao comprometer a divisão absoluta dos papéis atribuídos ao gênero, segundo a divisão clássica e não-problemática, implica formação de uma identidade que não se baseia no papel antes atribuído. A homossexualidade, e todas as diversas orientações sexuais agora reconhecidas, questiona a identidade baseada nos papéis clássicos atribuídos aos dois gêneros, assim como o “heterossexualismo compulsório” imposto pela antiga sociedade patriarcal.
Ainda que todos os referenciais de identidade individual pudessem ser atacados, restaria sempre o nome. O nome tem função essencial de identidade. O prenome é o que caracteriza a individualidade. O sobrenome indica o grupo familiar ao qual se pertence, a comunidade de sangue. Desde a mitologia grega, dá-se poder especial ao nome: personagens davam seu verdadeiro nome a pessoas em quem confiavam. E não há dúvidas de que a definição gramática, de “nome próprio”, assim como sua figuração em letra maiúscula, indica a importância social do nome dado a uma pessoa.
O questionamento do nome é maneira de problematizar a identidade dos personagens. Em Teatro, ao narrador só é atribuído prenome ao final: Daniel. Seu grande amor chama-se Ana C., e personagens paralelos possuem apenas letras como designação: N. e V. Na segunda história, N. e V. desaparecem, Ana C. é agora um astro de filmes pornográficos homossexuais, e o narrador continua a se chamar Daniel, mas agora outro Daniel, fotógrafo contratado para encontrar Ana C., que está foragido da polícia. Ana C., segundo Daniel da segunda história, é, na verdade, o autor da primeira, após ter fingido sua morte e voltado a seu país de origem. Em Mongólia, os personagens são chamados por apelidos dados pelos mongóis: não há estabilidade, visto que os nomes mudariam assim que saíssem de lá. Os apelidos dados durante a viagem são provisórios e, portanto, igualmente o é a identidade nominal. Em O Sol se Põe em São Paulo, Setsuko é uma idosa que propõe ao narrador contar a história de sua vida. Porém, em certa parte do livro, descobre-se que ela é, em verdade, a pessoa de quem se dizia amiga, Michiyo: não havia Setsuko alguma. O nome “Setsuko” perde sua denotação, perde seu referencial. Era nome sem dono, identidade criada que evapora-se. Há personagens que assumem novas identidades, novos nomes, para assumir o papel do outro no restante, ou em parte, da vida. Os nomes são distribuídos, portanto, de forma transitória. Os nomes podem desaparecer quando se descobre que a pessoa não existe, ou podem permanecer, mas agora referindo-se a outra pessoa.
A função do nome, na literatura de Carvalho, é colocada em jogo. Discute-se o valor e a função referencial da linguagem. Os referenciais dos nomes nem sempre são claros, e a radicalização do processo se dá quando se discute até mesmo o nome próprio, o nome que é dado para discernir um único ser. Os personagens não têm função clara ou identidade única: assumem novas identidades, as perdem, ou simplesmente desaparecem.
Aspectos duradouros no estilo de Bernardo Carvalho são essenciais para a problematização da identidade, como a narração em primeira pessoa. Deste tipo de narrador decorrem: desconfiança do leitor; impossibilidade de onisciência e, logo, a probabilidade do engano; possibilidade de perceber a escrita como algo em construção, em detrimento de algo perfeito ou acabado: a escrita é vista como processo, com tentativa e erro. O narrador, geralmente, é autodiegético ou homodiegético (protagoniza ou participa da história), geralmente um investigador, que procura encontrar a verdade sobre algum evento ou sobre outra pessoa. Os livros de Bernardo Carvalho, portanto, assemelham-se ao escritor estadunidense Paul Auster. Ambos utilizam-se da alegoria da busca da verdade para fazer questionamentos típicos de autores pós-modernos e, particularmente, de autores pós-estruturalistas.
A linguagem ao estilo realista faz com que o leitor recepcione as obras à maneira de um artigo jornalístico (e aqui nota-se a influência da profissão do escritor, jornalista que domina o estilo dos periódicos). O autor diz, em entrevistas e artigos, querer seguir o escritor austríaco Thomas Bernhard, que utiliza estilo semelhante ao realismo para contar histórias que, pouco a pouco, vão revelando-se contraditórias, quase absurdas.
Em Nove Noites, o efeito é justamente esse: a investigação em torno do suicídio do antropólogo norte-americano parece seguir raciocínio indutivo perfeito: análise de documentos, especialmente cartas, coleta de depoimentos, busca de indícios. Porém, à medida em que a pesquisa prossegue, o narrador revela motivos que o levaram a interessar-se pelo assunto. Nota-se que suas impressões, antes vistas como verdade, decorrem de seu passado, de sua visão de mundo. Os documentos não são interpretados de forma imparcial. Além disso, documentos e depoimentos contradizem-se, fontes da pesquisa revelam-se frágeis, por virem de pessoas cujos preconceitos são expostos: tudo é interpretação. As contradições entre todos e as lacunas são eliminadas pela imaginação do narrador. A escassez de informações que possam esclarecer dúvidas, que aumentam ao invés de diminuir, leva o narrador a confessar sua impotência diante da realidade, a admitir que está criando uma versão, uma nova realidade. Mesmo que a linguagem clara, com pretensão de realismo, siga ocorrendo, o leitor já a recepciona inversamente ao início: como paranóia, como criação de lógica ou sentido para o ilógico e para o sem sentido.
A obra, assim, coloca em questão outras duas oposições clássicas: a diferenciação entre sujeito e objeto na teoria do conhecimento, e a oposição história/ficção. Em Nove Noites, o narrador chega a suplicar por ter um campo de visão onde ele não seja visível; busca ocupar um lugar impossível. No entanto, cada movimento na pesquisa é uma prova de que seu conhecimento é obtido segundo a posição que ocupa. O estilo da obra, evidenciando o processo da pesquisa, em detrimento do texto já pronto e acabado, revela que a versão final é um conjunto de criações do narrador para preencher um sentido que não existe, que jamais é apreendido. O choque é maior ao se saber, de antemão, que o antropólogo, Buell Quain, realmente existiu e suicidou-se violentamente sem maiores explicações; quando se sabe que Carvalho fez pesquisa de campo para esclarecer as circunstâncias de sua morte, mas que a construção final, baseada na investigação, não passe de obra ficcional. Admite-se a impossibilidade de escrever livro sobre eventos reais que não seja ficção.
Outro procedimento adotado pelo autor que apaga ainda mais as fronteiras entre sujeito e objeto, e entre ficção e história, é a inserção de crônicas inteiras publicadas no jornal Folha de S. Paulo, em que relata experiências pessoais, dentro de suas obras de ficção, como se fossem experiências do personagem, geralmente o narrador. Sempre há, ainda, personagens reais que participam das narrativas, supostamente ficcionais, como, no caso de O Sol se Põe em São Paulo, o escritor japonês Junichiro Tanizaki.
A comparação com os temas tipicamente classificados como pós-moderno, particularmente ao procedimento de Derrida, conhecido como desconstrução (termo evitado, no entanto, pelo filósofo), é inevitável. A necessidade de síntese leva a eleger excelente resumo de Terry Eagleton sobre pós-estruturalismo, em especial sobre a obra de Derrida[7]:
A desconstrução, portanto, compreendeu que as oposições binárias, com as quais o estruturalismo clássico de trabalhar, representam uma maneira de ver típica das ideologias. Estas tendem a traçar fronteiras rígidas entre o que é aceitável e o que não é, entre o eu e o não-eu, a verdade e a falsidade, o sentido e o absurdo, a razão e a loucura, o central e o marginal, a superfície e a profundidade. Esse pensamento metafísico não pode ser simplesmente evitado. Não podemos nos lançar, para além desse hábito binário de pensamento, a uma esfera ultrametafísica. Mas através de uma determinada maneira de operar sobre os textos – sejam “literários” ou “filosóficos” – podemos começar a revelar um pouco dessas oposições, a demonstrar como um termo de uma antítese está secretamente presente no outro. De modo geral, o estruturalismo contentou-se em separar de um texto as oposições binárias e expor a lógica dessa análise. A desconstrução tenta mostrar como tais oposições, para se manterem como tais, por vezes traem-se a si mesmas invertendo-se ou desaparecendo, ou precisam colocar à margem do texto certos detalhamentos insignificantes que podem voltar e perturbá-las. A leitura típica habitual de Derrida consiste em tomar um fragmento aparentemente periférico da obra – uma nota de rodapé, um termo ou imagem menor e repetido, uma alusão casual – e nele trabalhar tenazmente até o ponto em que ele ameace desmantelar as aposições que governam o texto como um todo. A tática de crítica desconstrutiva é, em outras palavras, demonstrar como os textos podem embaraçar seus próprios sistemas lógicos dominantes. E a desconstrução mostra isso tomando os pontos “sintomáticos”, os aporia ou impasses de significado, nos quais o texto enfrenta problemas, perde a coesão, e se abre a contradições.
Não se trata apenas de uma observação empírica sobre certos tipos de escrita; trata-se de uma proposição universal sobre a própria natureza da escrita. Se a teoria da significação tem alguma validade, então há, na própria escrita, alguma coisa que finalmente pode escapar a todos os sistemas e lógicas. Há um oscilar constante, uma contínua difusão e derramamento de significados – o que Derrida chama de “disseminação” – que não pode ser facilmente contida nas categorias estruturais do texto, ou nas categorias de uma abordagem crítica convencional do texto. Escrever, como qualquer processo de linguagem, funciona pela diferenciação; mas a diferenciação é, em si mesma, um conceito, não alguma coisa que possa ser pensada. Um texto pode “mostrar-nos” alguma coisa sobre a natureza da significação que ele não é capaz de formular como proposição. Toda a linguagem, para Derrida, encerra esse “excedente” em relação ao significado exato, está sempre ameaçando ultrapassar e escapar do sentido que tenta limitá-la. É no discurso “literário” que isto se torna mais evidente, embora ocorra também em outros tipos de escrita: a desconstrução rejeita qualquer distinção absoluta. O advento do conceito escrita, portanto, é um desafio à própria idéia da estrutura: pois a estrutura presume sempre um centro, um princípio fixo, uma hierarquia de significados e uma base sólida, e são exatamente essas noções que a incessante diferenciação e preterição questionam. Em outras palavras, passamos da era do estruturalismo ao reino do pós-estruturalismo (...).[8]
Na obra de Bernardo Carvalho, as operações das ideologias, que consistem em tais oposições binárias, são colocadas em evidência, jamais são escamoteadas. Assim, o autor constrói textos que correspondem à operação filosófica de procurar as contradições, graças ao estilo do texto, que evidencia o processo de produção do conhecimento, em detrimento da aparência de perfeito ou acabado. Tais contradições são melhor expostas pelo estilo aparentemente realista do autor, que dá a impressão de tentativa, contra todas as evidências, de construção da verdade.
O conceito de identidade - aqui trabalhado por meio de suas relações com o espaço, sexualidade e nome – é privilegiado como meio de demonstrar as deficiências do pensamento racionalista (ou metafísico clássico), justamente por depender de operação binária duradoura: a igualdade e a diferença (ou alteridade). Ao problematizar tais relações, o autor coloca em cheque toda a noção que se tinha, habitualmente, da identidade.


[1] Todos publicados pela editora Companhia das Letras.
[2] Vide, por exemplo, as obras que tratam do assunto por Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade), Renato Ortiz (Cultura brasileira e identidade nacional), Manuel Castells (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. O poder da Identidade), entre outras.
[3] MASSEY, Doreen. Space, Place, and Gender. Minneapolis: University of Minnesota, 1994, p. 135.
[4] Bhaba, Homi D. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
[5] CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 115
[6] A respeito dessa interpretação: VIEIRA, Yara Frateschi. Refração e Iluminação em Bernardo Carvalho. Campinas: Revista Novos Estudos, n.º 70, Novembro 2004, pp. 195-206.
[7] Deixa-se de citar trechos do próprio Derrida em virtude da difícil exposição de seu pensamento em um único fragmento, devido a seu estilo fragmentado, cheio de exemplos, que é avesso à síntese. Grande parte de conceitos relativos a identidade encontra-se em: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
[8] EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 200-202.

domingo, 1 de julho de 2007

On Paul Auster: "City of Glass"

The story of a man hired to do a tail job is not particularly creative. It is, indeed, very similar to many detective stories throughout literature. However, the first part of Paul Auster’s The New York Trilogy is a text with many layers. The story brings questions about identity, the role of chance, the search for meaning and understanding, the production of space, the relation between literature and the world, among many others. There is a controversial classification of this work: detective fiction, metaantidetective fiction, mysteries about mysteries, and so on. It is most commonly seen as postmodern detective fiction.
City of Glass is considered to be Auster’s first novel. He had previously published a book, Squeeze Play, under pseudonym Paul Benjamin (his middle name), and had also spent many years devoted to poetry, which led to the publication of his Selected Poems. But it was only after the appearance of City of Glass that Auster attracted critical attention, which could be considered quite surprising, since the novel had collected seventeen rejections, due to the fact that Auster would steadfastly refuse to make any changes in the manuscript.
The purpose of the presentation performed in class, as well as of this text, is to point out a few characteristics of Auster’s novel which make it different from the classical detective novel. The detective fiction followed a usual pattern: a certain order is broken, and someone must play the role of restoring it by solving a mystery. The investigator has an ambiguous role: on the one hand, he is responsible for maintaining the petit bourgeois security (thus, he is its representative); on the other hand, he is the person who goes through the unknown, the threat to the petit bourgeois order. This is the reason why the investigator, generally unmarried, has some pleasing eccentricities or striking characteristics: he is, in many ways, an outsider.
The usual means of obtaining the truth is through a complex and mysterious process combining intuitive logic, astute observation, and perspicacious inference (Arthur Conan Doyle’s Sherlock Holmes could be the paradigm). The crime, normally a murder, is committed in a closed environment: narrowing the space also narrows down the list of possible suspects and the search for clues and evidence. In other words, the social space is subject to Western metaphysics and its impulse to rationally order and control.
The main character of City of Glass, Daniel Quinn, is passionate for detective fiction: he writes mystery novels. The senselessness of his life (no relatives, friends, nor connections) incites his belief in reason, in revelation of the sense: he is in a quest for stable identity. When his routine of walking aimlessly through the streets of New York is suddenly broken by a wrong number call, the possibility of assuming someone else’s identity (a certain private eye named Paul Auster) seems to him an interesting opportunity of change. Peter Stillman wants Quinn/Auster to follow his father (also Peter Stillman) in order to ensure that he will not try to harm him. Stillman had locked his son in a dark room for many years, trying to make him speak God’s language, the one spoken before the episode of the Tower of Babel.
Quinn accepts the job, but, no matter how hard he tries, he does not see any sense in the wanderings of Stillman senior, until the old man suddenly disappears. Then, Quinn decides to watch the doorway of Stillman’s son for months, living like a homeless person with almost no time to sleep nor money to eat, so that his father would not be able to come into the building without Quinn’s foreknowledge. In this process, Quinn loses all the signs of his self: his rented apartment, his outward appearance, his reason to live. When he finds out that everything he had been trying to make sense is out of his grip, he goes to a dark room himself, and keeps writing in a red notebook, and he eventually disappears from the sight of the narrator, a friend of Auster (who was, in turn, a writer living in Brooklyn).
The world does not behave according to the detective logic Quinn so admires. The more he tries to find a meaning in the episode, the more he loses himself. He does not know what Stilmann’s intentions are, what should be considered a clue, neither of whom is telling the truth. The space in which the crime could occur is unlimited: he tries to read the space in which Stillman walks, but has only an illusion of understanding. In fact, Quinn does not know if there is even a crime. And the identity of the characters is not precise or stable at all; Quinn already starts the story with his place very much in question. The title of the story itself uses the metaphor of glass, a symbol of transparency, light and rationality, to explore other qualities of that material, its reflectivity and obscurity, thus giving a new meaning to the story (the confrontation between these characteristics, between modern and postmodern).
Paul Auster uses the old techniques of classical detective fiction, but only to raise issues connected to poststructuralism: mysteries of his own interpretation and his own identity. The Magazine Littéraire was not mistaken when it called him “the most French of American writers”, in its December, 1995 edition. Although the influence of American writers like Poe, Hawthorne, and Melville is evident in his fiction, other influences range from Montaigne, and Pascal to Wittgenstein, Merleau-Ponty, and Beckett. The particular influence of contemporary French postmodern philosophy is plain. City of Glass is the book which showed that Paul Auster is one of the most intelligent and interesting American writers nowadays.