segunda-feira, 9 de julho de 2007

Identidade na obra de Bernardo Carvalho

O presente artigo busca analisar a questão da identidade na obra do escritor brasileiro contemporâneo Bernardo Carvalho. Para efeitos de síntese, centrar-se-á a análise às quatro obras de maior repercussão junto à crítica literária: Teatro, Nove Noites, Mongólia e O Sol se Põe em São Paulo[1]. Serão estudados três aspectos relacionados à formação da identidade: produção do espaço, sexualidade e nome. Observar-se-á que o estilo do autor, ao colocar em questão o dualismo ficção/história, discute identidade sob a ótica dita pós-moderna, por meio da desconstrução de oposições típicas do pensamento racional, similar ao procedimento de Jacques Derrida, na filosofia.
A questão da identidade nacional deixou de ser o centro de debate pelos literatos, desde a década de 1960. O pós-modernismo colocou em questão a própria noção de identidade, e enfatizou sua faceta normativa (em detrimento da puramente interpretativa) como um dos totalitarismos dos discursos. No entanto, o paradoxo criado foi que a discussão sobre a pertinência do conceito de identidade levou a discussão ainda mais intensa sobre o conceito[2].
Os romances de Bernardo Carvalho, especialmente os últimos, funcionam muitas vezes como alegorias para a colocação de questões discutidas por autores contemporâneos. E uma dessas questões é a (possibilidade de) identidade. Nas tramas do autor, os personagens possuem uma posição muito questionável, frágil. Essa fragilidade advém de diversos aspectos indefinidos, que são relacionados diretamente à formação da identidade. Pretende-se trabalhar a identidade em relação a três aspectos relacionados à formação da identidade: o espaço, a sexualidade e o nome.
A estabilidade em termos de espaço, a noção de que se tem um lugar, é simbolizada pelo lar. Segundo Doreen Massey[3], o lugar a que se chama de “lar” é um refúgio que provê tanto a estabilidade espacial, uma estrutura geográfica ou arquitetônica fixa para a qual se pode sempre retornar, assim como uma fonte de identidade que não pode ser contestada.
Essa estabilidade espacial não existe para a maioria dos personagens de Carvalho. Embora se possa dizer que a instabilidade, o estranhamento do lugar, no Brasil, foi trabalhada pela literatura sobre migrantes (especialmente o nordestino), na obra em questão há uma radicalização do movimento e uma problematização maior da questão da possibilidade de um lar. Em Teatro, nas duas histórias paralelas que dialogam, se confrontam e se desmentem, os protagonistas saíram de seu país de origem, pobre, para aventurar-se no país “dos sãos”, após uma árdua caminhada para atravessar a fronteira clandestinamente. E há também o caminho de volta, sendo realizado pelo que cruzou a fronteira ou pelo filho daqueles que emigraram. A alusão aos imigrantes latinos nos Estados Unidos é evidente. Em Nove Noites, a história se passa no Brasil e nos Estados Unidos, mas a parte que se passa no Brasil tem como protagonista um norte-americano, Buell Quain, antropólogo que veio ao Brasil para estudar os índios krahô no Xingu e que, sem razão aparente, suicida-se de maneira brutal. O narrador é um jornalista que busca, décadas depois, a explicação para o suicídio do antropólogo, que percorre seu caminho e acaba indo também aos Estados Unidos em busca de mais evidências em sua investigação. Em Mongólia, dos três narradores da história, dois são diplomatas brasileiros, sendo um deles um velho diplomata removido para a China, que envia um inferior hierárquico, o segundo narrador, para a Mongólia, com a missão de encontrar um fotógrafo (o terceiro narrador), também brasileiro e filho de influente empresário, que desapareceu nesse país. Em O Sol se Põe em São Paulo, o narrador, brasileiro filho de imigrantes japoneses, resolve escrever a história de uma imigrante japones; para descobrir toda a história, acaba indo ao Japão, relutantemente. Este último romance é todo preenchido por pessoas cuja história não se dá inteiramente nem no Japão, nem no Brasil, mas na passagem entre os dois.
Os personagens, portanto, não migram dentro do espaço nacional, que definiria a mais discutida das identidades: a nacional. Eles transitam entre países, quase nunca estão dentro daquele território que poderia defini-los como parte de um todo cultural. Há um estranhamento, uma barreira evidente à comunicação e ao entendimento (sendo a língua o aspecto mais evidente), que leva à sensação de se estar fora do lugar.
O mero movimento, no entanto, não implicaria a eliminação do lar, de um lugar para onde se poderia voltar: um brasileiro poderia definir-se como brasileiro sempre que estivesse fora do país. E eis a radicalização da problemática da formação da identidade na obra analisada: a maioria dos personagens vive em transição, não possuem um lugar exato para onde podem voltar, ou que podem definir como “de onde sou”. Quanto mais transitam, mais a noção de lar é colocada em questão: a falta de estabilidade impossibilidade a fixidez do lar. Nesse aspecto, duas figuras trabalhadas pelo autor são exemplares nesse quesito: o migrante e o diplomata. A identidade espacial, nos dois casos, é claramente problemática.
O migrante internacional é aquele que, mesmo que se movimente contra suas expectativas iniciais, resolve abandonar o seu lugar de origem e começar a vida em outro lugar. Eis a diferença dele para o viajante ou o turista: a adoção de um novo referencial, nacional e cultural, em termos definitivos. O migrante não é considerado, nem por si nem pelo outro, nem nacional de seu país, que abandonou, nem nacional do país que habita. O migrante é aquele que habita o entre-lugar, tal como trabalhado por Homi K. Bhaba, é aquele que se encontra na passagem, no não-lugar[4]. A situação chega ao limite no caso do migrante de segunda geração. Na obra de Carvalho, ele continua a ser tratado como imigrante pelo outro e não pensa possuir um referencial absoluto no país onde nasceu: é estrangeiro. Por outro lado, o referencial que poderia adotar, de seus ascendentes, sequer é por ele conhecido. O migrante de segunda geração é o nacional-estrangeiro, aquele cujo referencial não é legitimado. Por isso, ressente de seu passado imaginado, na figura de seus ascendentes e de sua origem, e com o país onde nasceu, por ser por ele rejeitado, ou não totalmente acolhido.
O diplomata é outra figura sem referencial espacial claro. Embora o diplomata esteja sempre a serviço do mesmo país, o seu “lar”, e até o represente, sua vida é marcada pelo nomadismo. O diplomata sequer vive num mesmo país, ou procura adotar um referencial como definitivo, como faz o migrante. O diplomata é aquele que veio de outro lugar, e que está indo para outro. Seu espaço é a própria transição entre espaços, é a passagem, a travessia. Bernardo Carvalho, em Mongólia, menciona que, “num país de nômades, por definição, as pessoas nunca estão no mesmo lugar. Mudam conforme as estações. Os lugares são as pessoas. Você não está procurando um lugar. Está procurando uma pessoa. Pois é atrás dela que estou indo”[5]. O referencial espacial do diplomata é muito frágil, pois o lugar que representa não é aquele que habita e, ao mesmo tempo, o lugar que habita jamais é definitivo, mas passageiro (uma mera passagem).
Nos livros analisados, mesmo os personagens que não se definem como migrantes ou diplomatas possuem um referencial espacial muito frágil. O antropólogo norte-americano que vem ao Brasil já se sentia um estrangeiro em seu próprio país, e sua vinda ao Brasil era vista como um meio de fuga do lugar onde não se sentia em casa. O mesmo é o caso do jornalista que investiga as razões de seu suicídio, para quem o Xingu, que visitava quando pequeno (assim como o próprio Bernardo Carvalho), era detestável. O diplomata que parte em busca do fotógrafo, em Mongólia, é chamado de “Ocidental” pelos mongóis. Porém, sua própria concepção a respeito tanto do Ocidente quanto do Oriente é tão problemática que passamos a nos perguntar sobre a pertinência da classificação. A formação da identidade, em suma, possui relação com a produção do espaço e, no caso daqueles que não possuem um espaço definido, aqueles que habitam o entre-lugar ou o não-lugar, sua identidade é problematizada, é fragilizada, por causa de sua instabilidade.
Outro meio de definição de identidade é a sexualidade. Antes mesmo do nascimento, a primeira pergunta formulada é: “menino ou menina?”. A sexualidade é geralmente definida em termos de oposição: o homem é aquele que não é mulher, e vice-versa. O gênero é aspecto importante na definição de quem uma pessoa é, ou de como ela se diferencia do outro (o sexo oposto): em suma, o gênero é definidor de identidade. A definição de gênero implica a expectativa de certo padrão comportamental. Em outras palavras, o gênero possui também aspecto normativo.
A frustração das expectativas provocadas pela definição de gênero, na obra de Bernardo Carvalho, ocorre por meio de assunto recorrente em sua obra: a homossexualidade. Em Teatro, o protagonista da segunda história é astro de filmes pornográficos homossexuais. Em Nove Noites, o antropólogo norte-americano, que é caracterizado como “casado” no início da investigação, tem sua sexualidade colocada cada vez mais em cheque, até o ponto em que, talvez, a própria indefinição quanto à sua sexualidade é uma das causas possíveis de seu suicídio. Em Mongólia, o fotógrafo desaparecido não possui nome, mas é chamado pelos locais de “Buruu Nomton”, que significa “desajustado”. Em certo momento da narrativa, certa declaração homofóbica deixar entrever a falta de credibilidade dos personagens e, consequentemente, ilumina passagens cuja única evidência era seu testemunho[6]. O nome “Buruu Nomton”, então, passa a ter uma conotação homossexual, mesmo que indiretamente, visto que “desajustado” é alguém que “não segue as regras”. No mesmo livro, são retratadas práticas homossexuais de monges budistas. Em O Sol se Põe em São Paulo, um dos protagonistas da história, que até então fazia o papel de marido traído, começa a exercer o papel oposto, tendo um caso com o ex-amante da esposa, ora desprezada por ambos.
A divisão clássica de gêneros é feita segundo maneira de pensar típica do racionalismo, que contrapõe, em termos absolutos, um gênero a outro. A homossexualidade, ao comprometer a divisão absoluta dos papéis atribuídos ao gênero, segundo a divisão clássica e não-problemática, implica formação de uma identidade que não se baseia no papel antes atribuído. A homossexualidade, e todas as diversas orientações sexuais agora reconhecidas, questiona a identidade baseada nos papéis clássicos atribuídos aos dois gêneros, assim como o “heterossexualismo compulsório” imposto pela antiga sociedade patriarcal.
Ainda que todos os referenciais de identidade individual pudessem ser atacados, restaria sempre o nome. O nome tem função essencial de identidade. O prenome é o que caracteriza a individualidade. O sobrenome indica o grupo familiar ao qual se pertence, a comunidade de sangue. Desde a mitologia grega, dá-se poder especial ao nome: personagens davam seu verdadeiro nome a pessoas em quem confiavam. E não há dúvidas de que a definição gramática, de “nome próprio”, assim como sua figuração em letra maiúscula, indica a importância social do nome dado a uma pessoa.
O questionamento do nome é maneira de problematizar a identidade dos personagens. Em Teatro, ao narrador só é atribuído prenome ao final: Daniel. Seu grande amor chama-se Ana C., e personagens paralelos possuem apenas letras como designação: N. e V. Na segunda história, N. e V. desaparecem, Ana C. é agora um astro de filmes pornográficos homossexuais, e o narrador continua a se chamar Daniel, mas agora outro Daniel, fotógrafo contratado para encontrar Ana C., que está foragido da polícia. Ana C., segundo Daniel da segunda história, é, na verdade, o autor da primeira, após ter fingido sua morte e voltado a seu país de origem. Em Mongólia, os personagens são chamados por apelidos dados pelos mongóis: não há estabilidade, visto que os nomes mudariam assim que saíssem de lá. Os apelidos dados durante a viagem são provisórios e, portanto, igualmente o é a identidade nominal. Em O Sol se Põe em São Paulo, Setsuko é uma idosa que propõe ao narrador contar a história de sua vida. Porém, em certa parte do livro, descobre-se que ela é, em verdade, a pessoa de quem se dizia amiga, Michiyo: não havia Setsuko alguma. O nome “Setsuko” perde sua denotação, perde seu referencial. Era nome sem dono, identidade criada que evapora-se. Há personagens que assumem novas identidades, novos nomes, para assumir o papel do outro no restante, ou em parte, da vida. Os nomes são distribuídos, portanto, de forma transitória. Os nomes podem desaparecer quando se descobre que a pessoa não existe, ou podem permanecer, mas agora referindo-se a outra pessoa.
A função do nome, na literatura de Carvalho, é colocada em jogo. Discute-se o valor e a função referencial da linguagem. Os referenciais dos nomes nem sempre são claros, e a radicalização do processo se dá quando se discute até mesmo o nome próprio, o nome que é dado para discernir um único ser. Os personagens não têm função clara ou identidade única: assumem novas identidades, as perdem, ou simplesmente desaparecem.
Aspectos duradouros no estilo de Bernardo Carvalho são essenciais para a problematização da identidade, como a narração em primeira pessoa. Deste tipo de narrador decorrem: desconfiança do leitor; impossibilidade de onisciência e, logo, a probabilidade do engano; possibilidade de perceber a escrita como algo em construção, em detrimento de algo perfeito ou acabado: a escrita é vista como processo, com tentativa e erro. O narrador, geralmente, é autodiegético ou homodiegético (protagoniza ou participa da história), geralmente um investigador, que procura encontrar a verdade sobre algum evento ou sobre outra pessoa. Os livros de Bernardo Carvalho, portanto, assemelham-se ao escritor estadunidense Paul Auster. Ambos utilizam-se da alegoria da busca da verdade para fazer questionamentos típicos de autores pós-modernos e, particularmente, de autores pós-estruturalistas.
A linguagem ao estilo realista faz com que o leitor recepcione as obras à maneira de um artigo jornalístico (e aqui nota-se a influência da profissão do escritor, jornalista que domina o estilo dos periódicos). O autor diz, em entrevistas e artigos, querer seguir o escritor austríaco Thomas Bernhard, que utiliza estilo semelhante ao realismo para contar histórias que, pouco a pouco, vão revelando-se contraditórias, quase absurdas.
Em Nove Noites, o efeito é justamente esse: a investigação em torno do suicídio do antropólogo norte-americano parece seguir raciocínio indutivo perfeito: análise de documentos, especialmente cartas, coleta de depoimentos, busca de indícios. Porém, à medida em que a pesquisa prossegue, o narrador revela motivos que o levaram a interessar-se pelo assunto. Nota-se que suas impressões, antes vistas como verdade, decorrem de seu passado, de sua visão de mundo. Os documentos não são interpretados de forma imparcial. Além disso, documentos e depoimentos contradizem-se, fontes da pesquisa revelam-se frágeis, por virem de pessoas cujos preconceitos são expostos: tudo é interpretação. As contradições entre todos e as lacunas são eliminadas pela imaginação do narrador. A escassez de informações que possam esclarecer dúvidas, que aumentam ao invés de diminuir, leva o narrador a confessar sua impotência diante da realidade, a admitir que está criando uma versão, uma nova realidade. Mesmo que a linguagem clara, com pretensão de realismo, siga ocorrendo, o leitor já a recepciona inversamente ao início: como paranóia, como criação de lógica ou sentido para o ilógico e para o sem sentido.
A obra, assim, coloca em questão outras duas oposições clássicas: a diferenciação entre sujeito e objeto na teoria do conhecimento, e a oposição história/ficção. Em Nove Noites, o narrador chega a suplicar por ter um campo de visão onde ele não seja visível; busca ocupar um lugar impossível. No entanto, cada movimento na pesquisa é uma prova de que seu conhecimento é obtido segundo a posição que ocupa. O estilo da obra, evidenciando o processo da pesquisa, em detrimento do texto já pronto e acabado, revela que a versão final é um conjunto de criações do narrador para preencher um sentido que não existe, que jamais é apreendido. O choque é maior ao se saber, de antemão, que o antropólogo, Buell Quain, realmente existiu e suicidou-se violentamente sem maiores explicações; quando se sabe que Carvalho fez pesquisa de campo para esclarecer as circunstâncias de sua morte, mas que a construção final, baseada na investigação, não passe de obra ficcional. Admite-se a impossibilidade de escrever livro sobre eventos reais que não seja ficção.
Outro procedimento adotado pelo autor que apaga ainda mais as fronteiras entre sujeito e objeto, e entre ficção e história, é a inserção de crônicas inteiras publicadas no jornal Folha de S. Paulo, em que relata experiências pessoais, dentro de suas obras de ficção, como se fossem experiências do personagem, geralmente o narrador. Sempre há, ainda, personagens reais que participam das narrativas, supostamente ficcionais, como, no caso de O Sol se Põe em São Paulo, o escritor japonês Junichiro Tanizaki.
A comparação com os temas tipicamente classificados como pós-moderno, particularmente ao procedimento de Derrida, conhecido como desconstrução (termo evitado, no entanto, pelo filósofo), é inevitável. A necessidade de síntese leva a eleger excelente resumo de Terry Eagleton sobre pós-estruturalismo, em especial sobre a obra de Derrida[7]:
A desconstrução, portanto, compreendeu que as oposições binárias, com as quais o estruturalismo clássico de trabalhar, representam uma maneira de ver típica das ideologias. Estas tendem a traçar fronteiras rígidas entre o que é aceitável e o que não é, entre o eu e o não-eu, a verdade e a falsidade, o sentido e o absurdo, a razão e a loucura, o central e o marginal, a superfície e a profundidade. Esse pensamento metafísico não pode ser simplesmente evitado. Não podemos nos lançar, para além desse hábito binário de pensamento, a uma esfera ultrametafísica. Mas através de uma determinada maneira de operar sobre os textos – sejam “literários” ou “filosóficos” – podemos começar a revelar um pouco dessas oposições, a demonstrar como um termo de uma antítese está secretamente presente no outro. De modo geral, o estruturalismo contentou-se em separar de um texto as oposições binárias e expor a lógica dessa análise. A desconstrução tenta mostrar como tais oposições, para se manterem como tais, por vezes traem-se a si mesmas invertendo-se ou desaparecendo, ou precisam colocar à margem do texto certos detalhamentos insignificantes que podem voltar e perturbá-las. A leitura típica habitual de Derrida consiste em tomar um fragmento aparentemente periférico da obra – uma nota de rodapé, um termo ou imagem menor e repetido, uma alusão casual – e nele trabalhar tenazmente até o ponto em que ele ameace desmantelar as aposições que governam o texto como um todo. A tática de crítica desconstrutiva é, em outras palavras, demonstrar como os textos podem embaraçar seus próprios sistemas lógicos dominantes. E a desconstrução mostra isso tomando os pontos “sintomáticos”, os aporia ou impasses de significado, nos quais o texto enfrenta problemas, perde a coesão, e se abre a contradições.
Não se trata apenas de uma observação empírica sobre certos tipos de escrita; trata-se de uma proposição universal sobre a própria natureza da escrita. Se a teoria da significação tem alguma validade, então há, na própria escrita, alguma coisa que finalmente pode escapar a todos os sistemas e lógicas. Há um oscilar constante, uma contínua difusão e derramamento de significados – o que Derrida chama de “disseminação” – que não pode ser facilmente contida nas categorias estruturais do texto, ou nas categorias de uma abordagem crítica convencional do texto. Escrever, como qualquer processo de linguagem, funciona pela diferenciação; mas a diferenciação é, em si mesma, um conceito, não alguma coisa que possa ser pensada. Um texto pode “mostrar-nos” alguma coisa sobre a natureza da significação que ele não é capaz de formular como proposição. Toda a linguagem, para Derrida, encerra esse “excedente” em relação ao significado exato, está sempre ameaçando ultrapassar e escapar do sentido que tenta limitá-la. É no discurso “literário” que isto se torna mais evidente, embora ocorra também em outros tipos de escrita: a desconstrução rejeita qualquer distinção absoluta. O advento do conceito escrita, portanto, é um desafio à própria idéia da estrutura: pois a estrutura presume sempre um centro, um princípio fixo, uma hierarquia de significados e uma base sólida, e são exatamente essas noções que a incessante diferenciação e preterição questionam. Em outras palavras, passamos da era do estruturalismo ao reino do pós-estruturalismo (...).[8]
Na obra de Bernardo Carvalho, as operações das ideologias, que consistem em tais oposições binárias, são colocadas em evidência, jamais são escamoteadas. Assim, o autor constrói textos que correspondem à operação filosófica de procurar as contradições, graças ao estilo do texto, que evidencia o processo de produção do conhecimento, em detrimento da aparência de perfeito ou acabado. Tais contradições são melhor expostas pelo estilo aparentemente realista do autor, que dá a impressão de tentativa, contra todas as evidências, de construção da verdade.
O conceito de identidade - aqui trabalhado por meio de suas relações com o espaço, sexualidade e nome – é privilegiado como meio de demonstrar as deficiências do pensamento racionalista (ou metafísico clássico), justamente por depender de operação binária duradoura: a igualdade e a diferença (ou alteridade). Ao problematizar tais relações, o autor coloca em cheque toda a noção que se tinha, habitualmente, da identidade.


[1] Todos publicados pela editora Companhia das Letras.
[2] Vide, por exemplo, as obras que tratam do assunto por Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade), Renato Ortiz (Cultura brasileira e identidade nacional), Manuel Castells (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. O poder da Identidade), entre outras.
[3] MASSEY, Doreen. Space, Place, and Gender. Minneapolis: University of Minnesota, 1994, p. 135.
[4] Bhaba, Homi D. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
[5] CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 115
[6] A respeito dessa interpretação: VIEIRA, Yara Frateschi. Refração e Iluminação em Bernardo Carvalho. Campinas: Revista Novos Estudos, n.º 70, Novembro 2004, pp. 195-206.
[7] Deixa-se de citar trechos do próprio Derrida em virtude da difícil exposição de seu pensamento em um único fragmento, devido a seu estilo fragmentado, cheio de exemplos, que é avesso à síntese. Grande parte de conceitos relativos a identidade encontra-se em: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
[8] EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 200-202.

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