sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A criança e o ar


 
A criança, deitada no colo da mãe, respirava e sentia a respiração da mãe. Sob o efeito de um anseio profundo de comunhão, uma vez tendo consciência da respiração de sua mãe, procurava sincronizar a sua à dela.

A criança não conseguia fazê-lo perfeitamente. Segurava o fôlego, mal inspirava, soltava o ar longamente depois, ofegava, ficava sem ar. Apesar da dificuldade, não podia mais respirar livremente. Tinha de respirar com a mãe, no mesmo ritmo, na mesma cadência. Quando conseguia, sentia-se mais ligado a ela. Desconfiava que algo profundo os unia.

A criança, já adulta, não se liberta desta necessidade de comunhão profunda com a pessoa amada. Deitado na cama com a mulher, no silêncio profundo da noite e dos corpos exaustos, ele procura sincronizar, lentamente, sua respiração à dela. Ainda tem a mesma dificuldade: segura o fôlego, mal inspira, solta o ar longamente, ofega, fica sem ar. Todavia, sentia aquele antigo alento quando conseguia, finalmente, sincronizar sua respiração à dela.

A mesma ânsia, a mesma necessidade. A falta de liberdade ligada à consciência de que realmente não é livre, de que não consegue viver, de que não pode respirar longe dela.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Jornada

Primeiro café.
Precisa ler, precisa
virar página, superar,
esquecer essa
mulher.

Segundo café.
Não consegue ler, tenta
ouvir música, abafar
coração e falta
de fé.

Terceiro café.
Volta a rotina, trabalho
em dois turnos, estudo
de noite, o que mais se
Quiser.

Quarto café.
Evita o rumor de
não mais poder ser
o que você
é.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Sobre literatura (Discurso a propósito do lançamento de um romance)

Caros senhores, bem-vindos. Fiquei surpreso, a princípio, com o convite deste notável escritor para discursar na celebração do lançamento de seu novo livro. Jamais escrevi obra literária alguma, não sou escritor no sentido mais estrito do termo. Certo é que escrevi alguns livros em minha área, psicologia, que, embora relativamente citados, somente poucos desinformados e amigos generosos leram. Talvez meu amigo escritor pense que, por ter escrito livros sobre a psique humana (ou, alguns diriam, a alma), eu pudesse dizer algo sobre os personagens que povoam suas obras. Infelizmente, a riqueza de possibilidades interpretativas de suas obras me escapa, sou um psicólogo limitado, tive contato somente com as vidas das pessoas que passaram por meu consultório. Cada livro de meu amigo tem mais personagens do que tive a chance de analisar em toda minha vida profissional.

A verdade é que, poucos nesta sala devem saber, tenho a honra de ter acesso a um dos espíritos mais privilegiados da vida cultural de nosso país, sendo eu analista do homenageado. Embora não tenha odireito de dizer pormenores de nossos inúmeros encontros, o fato é que a narrativa de nosso autor sobre sua própria vida configura literatura. A trama tecida dentro do espírito deste homem é grandiosa a tal ponto que muitos psicólogos invejariam a posição que ocupo.

E não é esse o dever do escritor? Transformar tudo em matéria literária? Pois a capacidade de meu companheiro nesta área chega a ser assustadora em alguns momentos. A precisão com que descreve cada detalhe, cada ato, cada acontecimento de sua vida já faz entrever do que será capaz com a pena em seu poder. Caso tivessem acesso ao que ouço e procuro analisar, alguns poderiam compreender melhor sua preferência por longas descrições de cenas, de mínimos atos, que muitas vezes estendem-se por muitas páginas.

Alguns críticos são incapazes de captar a importância que o autor dá a tais descrições e acabam por classificá-las como inúteis e sem propósito na trama e, continuam, dizem que suas obras são menores, já que, sem estes trechos, a trama em si é desvelada como banal.

Embora esteja tão fora de moda nos círculos intelectuais, pode-se traçar um paralelo importante entre a obra e a vida do autor. Não pretendo proceder a isso da maneira que se faz habitualmente, relacionando fatos marcantes de sua vida a temas constantes em sua carreira. Pretendo fazer, diversamente, um paralelo entre seu estilo e a maneira pela qual encara sua própria existência. Alguns dos doutos senhores poderão não perdoar-me por utilizar a psicanálise de maneira tão livre para entender algo de literatura, mas seguirei em meu propósito.

Pois bem, voltando à crítica literária, da qual praticamente nada entendo, pode-se observar, no discurso do escritor sobre sua vida, elementos de seu estilo literário. De fato, pode incomodar a importância significativa que o escritor atribui a acontecimentos sem importância evidente, em suas histórias. No entanto, mal sabe o leitor que o produto final é produto de longa labuta do autor em diminuir e eliminar a maior parte de suas longas descrições. Em meu trabalho analítico, posso garantir que o autor fornece ainda maior riqueza de detalhes em cada um dos episódios que protagoniza. Atribui a cada um dos elementos insignificantes de sua vida uma riqueza de floreios que deixaria a muitos surpreendidos.

Insisto, os livros que escreve são muito contidos em comparação ao que o escritor faz de sua vida. O leitor não tem acesso à importância que nosso escritor dá a cada uma das catástrofes desprezíveis que permeiam sua existência patética, uma tragédia sem o elemento essencial do pathos. O protagonista pensa sempre estar elaborando planos geniais quando, na verdade, não consegue fugir da banalidade de que sofre praticamente todas as suas criações. Daí surge a megalomania que muitos percebem em seus personagens, quase sempre transitando num mundo indiferente a suas ações pretensamente grandiosas. Certos leitores, enganosamente, entenderam haver por trás de suas narrativas fina ironia que, garanto, nunca foi intencional. Somente quem pode ouvir a repetição insistente de narrativas em círculo onde o narrador pensa haver evolução pode compreender que não é essa a intenção do autor, cuja vida é cheia de obstáculos imaginários que não são ultrapassados por sua própria incapacidade de enxergar além dele mesmo. Esta cegueira individualista de que seus personagens também são vítimas.

As análises sobre suposta mímese não são compatíveis com o fato de que não pode haver mímese do nada, do sem assunto, do não-ser. Não se pode falar da representação do vazio, como se pode perceber nas vidas dos personagens, que parecem não ter referencial dentro do próprio mundo imaginário em que vagam. A falta de perspectiva total, aparentemente proposital, não passa da falta de capacidade do próprio autor de unir estruturas e criar um sentido único, como um deus que não consegue entender a falta de sentido de sua existência, que ele imagina ser inauguradora de um novo tempo.

O estilo do escritor, em suma, decorre de seu pensamento, de sua visão de mundo. O modo como descreve e preenche páginas não passa de sintoma disso. Pode-se dizer que houve união, neste caso, entre linguagem e pensamento. Somente um ser tão inconsciente de si poderia ter angústia de ser influenciado por outros, já que revela-se incapaz de enxergar algo além de si mesmo. Doutos literatos aqui presentes, não há que se falar em hermenêutica intertextual, em diálogo algum. Aqui, há só a eterna repetição de monólogos entre personagens e obras que pensam estar falando entre si. Existe aqui, somente, a auto-referência, insistente e sistemática.

Podemos atestar, como outros já fizeram antes de mim, que o autor não consegue escapar de suas experiências na construção de suas obras. Se é que se pode chamar de experiência o eterno orbitar-se ao redor de si próprio. A certeza de que se é o centro do mundo, o próprio sol, de que sua ausência poderia causar um colapso no universo. Essa incapacidade (perdoem-me, mais uma vez, por usar a psicanálise) de ultrapassar a infância e atingir a maturidade, esta falta de consciência de que o mundo é independente do self. Eu tive oportunidade de conferir isso por anos e anos a fio e não posso mais me conter. Por isso não me venham, nobres senhores, argumentar com estéticas da recepção. Catarse, o caralho. Eu... bem... interrompo por aqui. Muito obrigado.

(O palestrante retira-se bruscamente do recinto e não se dispõe a fazer quaisquer esclarecimentos sobre a tese apresentada).

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Coesão

Cada vez menos acredito em palavras. Palavras são ditas ao vento. Ainda mais declarações de sentimentos. Entre atos e palavras, eu fico com os atos. Eu acredito em atos. Muitas palavras não passam de palavras vãs.

Com o aumento do número de pessoas morando sozinhas e o preço dos aluguéis aumentando indefinidamente, o tamanho médio das habitações torna-se cada vez menor. Vai chegar um dia em que todos os espaços serão feitos para conter uma única pessoa, o que impedirá a socialização em ambiente doméstico. Nesse dia, todos nós enviaremos e-mails diários uns aos outros e chamaremos isso de amizade.

As pessoas sempre ouvem seu nome quando, na verdade, outra coisa foi dita. Penso que, no caso dos falantes de português, é a vogal tônica que as pessoas mais ouvem quando são chamadas. No meu caso, sempre acho que estou sendo chamado quando clamam “meu deus”. Isso deve ser um sinal muito grave de egocentrismo e ilusão de poder.

Hoje eu estou de mal de mim.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Fio

Um fio de cabelo
é bem pequeno.
Pode variar
de alguns centésimos de milímetros
até 0,03 milímetros.

Um fio de cabelo
é bem colorido.
Pode variar,
de acordo com a quantidade de melanina,
de bem louros até muito pretos.

Um ser humano
possui muitos fios de cabelo:
pode variar de 100 a 150 mil.
Caem, cada dia,
cerca de 100 fios.

Saía para o trabalho
que provê o pão
de cada dia
com meu terno e
minha gravata

e entro no carro
e dirijo em meio à multidão
de pessoas, algumas
com pressa, outras
nem tanto.

Chego na repartição
atrasado, trabalho
acumulado sobre a
mesa, sento-me em
minha cadeira

e, da maneira
mais imprevista,
encontro um fio
de cabelo em
minha gravata.

Mais fino, mais claro,
mais longo, não era meu:
era seu.
Parte do seu corpo em
minha roupa.

Era mínimo,
quase imperceptível.
Um oceano
pode nascer de
um fio de cabelo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Reality television 2

Eu sempre tive dúvidas em relação a meu namorado. Eu gosto muito dele, ele sempre me fez rir e me sentir mais segura, mas, algumas vezes, acho que ele é muito acomodado: não arruma suas coisas, não toma a iniciativa em relação à vida profissional, não escolhe o que quer fazer. De vez em quando, parece que sou mais mãe dele do que namorada. Meus pais também têm dúvidas se ele é a pessoa certa para mim. Vivem dizendo para ele “tomar um rumo” na vida, que essa história de música não dá futuro, que isso é coisa de adolescente. Ele já tem 28 anos.

Olha, eu não vou dizer que não gosto do meu genro. Só acho que, talvez, nossa filha deva ver outras possibilidades. Desde a primeira vez que o vimos, ele não parecia levar a vida muito a sério. Lembro que estava no sofá e nem se levantou para nos cumprimentar. Que tipo de folgado é esse?, pensei. Mas depois vi que era boa pessoa. Só penso que minha filha merece alguém mais sério, com quem ela possa crescer junto. Não alguém de quem ela tenha de tomar conta. Você sabe, todo pai quer o melhor para a filha.

Olá, começamos agora o programa “Você quer trocar de namorado?”, onde uma pessoa com namorado, que se inscreve no programa, tem a possibilidade de ter um encontro com alguém diferente, para decidir se deve mesmo continuar o relacionamento ou trocar de namorado. Para quem nunca assistiu o programa, o funcionamento é simples: nós acompanharemos o encontro da N. com a pessoa que ela mesma escolheu, o L., com base nos dados que ele nos passou pela internet. Tanto os pais quanto o atual namorado dela, C., também assistirão o encontro, para que possam dar sua opinião sobre o que acontecerá até que os pretendentes se despeçam. Por favor, não saiam daí!

Eu não sou daqueles caras inseguros que ficam com ciúme da namorada. Não sou otário, tenho auto-confiança, saca? Eu gosto da minha namorada e sei que ela gosta de mim, sei que eu sou bem melhor para ela do que qualquer fracassado que tenha enviado os seus dados para um canal de televisão. Um cara desses só pode estar desesperado. Eu não sou assim. Acho que minha namorada só topou fazer o programa por influência, por pressão mesmo, dos pais. E eu dei a maior força. Cada um faz o que quiser, saca, todo mundo é livre para fazer o que quer no mundo de hoje. É por isso que ela gosta de mim, cada um com suas coisas. E eu seguro as pontas: sei que tem muita mulher que me quer por aí, minha namorada também sabe disso. Ela não vai largar um cara como eu por qualquer um. Ao conhecer o cara desesperado, minha namorada vai gostar ainda mais de mim, isso, sim.

Eu tenho 30 anos e, diferente de muitos amigos meus, já tenho uma vida completamente independente dos meus pais. Tenho um trampo legal, provisório mas que dá uma grana boa. Moro com alguns amigos num apartamento bem espaçoso, com quartos individuais. Gosto muito deste esquema: juntamos nossos amigos direto no apartamento, fazemos umas festinhas, conhecemos a galera um do outro e, ao mesmo tempo, temos nossa privacidade, especialmente quando rola mulher no pedaço, isso é essencial. Sou inteligente, gosto de ler, tenho um gosto musical legal, tem muita menina que se apaixona por mim. Resolvi fazer esse programa porque assistia com meus amigos e resolvi me candidatar a ser um dos caras que pega a namorada desses panacas que deixam a namorada sair com outro. Só pode ser provocação! Tenho certeza de que ela vai preferir a mim.

L. chega na casa de N., onde a acompanham os pais e o namorado dela. Olhem como a apresentação é um sucesso. Todos se cumprimentam, podemos ver um sorriso no rosto de N.. Acho que ela ficou feliz com o que viu, vocês não acham? Já o namorado, não sei, não. Mas ele sorri, cumprimenta. Os pais também parecem estar bem satisfeitos. Logo depois, o casal vai para uma das boates mais badaladas da cidade, e L. não é bobo: já tinha feito reserva para a área VIP, e eles sequer têm de passar pela fila. Dá para notar a expressão impressionada e feliz de N., ainda mais quando percebe que ele já conhece o pessoal da casa. A conversa é animada, e já podemos observar a linguagem corporal dos dois. Ela mexe no cabelo sem parar, sempre sorrindo e sem tirar os olhos dele. Não perdem uma só oportunidade de se tocarem, seja nos braços, nas coxas, no cabelo, ainda que de leve. Eu acho que vamos formar um novo casal! L. pede para utilizar o seu direito de 10 minutos longe das câmeras. Quando voltam, os lábios de ambos estão mais vermelhos e dilatados. É isso aí, não há dúvidas: eles beijaram!

Nós gostamos bastante do pretendente de nossa filha (olhando para a mulher em busca de um olhar de aprovação). Ele é mais velho, parece mais experiente e com mais iniciativa. Nas conversas, confesso que ele não me pareceu tão inteligente quanto afirmava, até porque ficou meio confuso quando começaram a falar de alguns assuntos. Mas não há dúvidas de que ele sabe como conquistar: prepara tudo de antemão, veste-se bem, conhece as pessoas. Vamos ver como a noite caminha.

O cara é um babaca. Fica pagando de culto, mas não sabe conversar um minuto sobre coisa alguma. Dá para ver que é um daqueles caras que ficam o dia todo na academia e lêem revistas masculinas para tentar conquistar mulheres. Mas dá para ver que não sabe nada de mulher. Coitado. Não dá para ter certeza de que a N. beijou o cara. Se beijou, foi só para seguir o roteiro do programa. Depois da conversa, da total falta de papos interessantes, deu para ver que ele não tem a mínima chance de ficar com ela no final.

Nem sei se quero namorar a mina, mas já tenho pena do otário do namorado dela, que nem consegue garantir que ela fique só com ele. Claro que eu a beijei. Ela gostou, foi pegação total. Longe das câmeras, ela sabia que o coitado não ia ter de assistir. Foi lá que ela disse que queria continuar o encontro, que estava interessada em ir para outro lugar. Eu sugeri um vinho na minha casa, ela topou. Já sabe onde isso vai dar, né? Eu não deixarei de aproveitar. Cara, a menina é assanhada, estou esperando uma noite bem animada.

A partir da terceira taça de vinho, tivemos de parar a transmissão e colocar uma senha de segurança em sua televisão. Caso você seja o titular da assinatura e tenha mais de 18 anos, basta digitar a senha programada que você poderá continuar a assistir ao programa, que está mais quente do que nunca. Bem, apenas para quem já digitou a senha, passamos à casa onde se encontram os pais e o namorado de N.. Os pais preferiram não assistir à nossa filmagem, a partir do momento em que o casal passou para o quarto de L. Já o namorado disse que não tinha problema algum em assistir ao que já estamos mostrando aos nossos telespectadores. Embora L. tenha se gabado de sua performance sexual, quem parece estar mandando no show é mesmo N. Olha só como ela chega com vontade, não perde um só pedacinho do corpo dele. E, além de acrobata, tem um corpo incrivelmente gostoso. Temos de admitir que assisti-la parece ser melhor do que ver uma cena com Jenna Jameson, olhem como ela se move por cima dele. Como ela utiliza todas as possibilidades de posições, e faz tudo com vontade, olhando sempre nos olhos dele. Um furacão, um furacão do tipo que geme alto. A coisa toda só acaba depois de uma hora e meia, mas ela parecia querer ainda mais. Os lençóis e os corpos estão úmidos, ofegantes. Um de nossos melhores programas, certamente.

Olha só como o cara é ruim de cama. Nem se mexe, uma tristeza. Ela parece estar gostando, mas é para seguir o roteiro, como eu disse. Senão, iriam acusá-la de pudica. Além do mais, tenho certeza de que ela quer aumentar ao máximo a audiência do programa, porque, no fundo, tem vontade de ficar famosa. Eu estou tranqüilo, dei liberdade total para ela fazer o que quisesse. Não sou um namorado ciumento, não sou conservador ou machista. Cara, nossa liberdade é essencial, cada um faz o que achar melhor. Eu parto dessa filosofia. Se ela quiser transar, transa. Mas comigo tem de ser igual. E o cara nem transa bem. Eu dou a ela orgasmos múltiplos diários. Esse cara aí, coitado, se conseguir proporcionar um, já seria um milagre. E esse pau pequeno. O cara é alto e tem pau pequeno, pelo amor de deus! A N. deve ter-se decepcionado. Comigo, é bem diferente. Eu dou exatamente o que esperam de mim, ou mais. Enfim, o cara é mesmo um fanfarrão.

Durante todo o depoimento do namorado, que utiliza detector de mentiras, notamos que seu coração bate descompassadamente e que sua respiração está com arritmia. Vocês acreditam que ele fala a verdade, telespectadores? Eu digo que não. A coisa está muito duvidosa. No mínimo, não gostou do que viu. Neste programa não entra hipocrisia.

Meu namorado me deu liberdade total para eu fazer o que quisesse esta noite, então não pode reclamar. Além do mais, eu queria mesmo aproveitar, não é todo dia que se tem uma chance dessas. O L. é muito bonito, forte, alto, um pouco rústico e tem um quê de cafajeste. Tem aquele ar de confiança e decisão. É o tipo de homem de que uma mulher gosta. Então, por que eu não iria para a cama com ele? Também, eu não poderia escolher entre meu atual namorado e ele sem saber como seria o sexo. Isso é essencial, faz toda a diferença. E aquelas câmeras em cima de mim, aquilo me deu muito tesão. Senti-me uma estrela na cama, pensando em todas as pessoas que poderiam estar me assistindo. Nunca fui tímida, ainda menos nesta situação. Acho que gosto mesmo é de me exibir. Ele poderia ser melhor, mas foi o suficiente. Nossa, ainda estou trêmula.

Eu sei que os casais de hoje em dia são assim. Nós mesmos vivemos a revolução sexual, embora ainda sejamos tímidos diante disso tudo. Mas compreendemos, os jovens estão cheios de energia e vivem num tempo mais liberal. Mas também não pude assistir a tudo, achei melhor ficar ignorante a respeito da parte sexual da vida de nossa filha, embora sempre soubesse que ela não é diferente da maioria do pessoal da sua idade (olha para a esposa, novamente, em busca de um olhar de aprovação). Pelo jeito, ela ficou feliz com o encontro, senão não teria ido à casa do rapaz. Vamos ver o que ela irá decidir.

Cara, você viu como a mulher estava louca para dar para mim? Eu disse que a noite iria ser animada. Eu disse. Também, pô, depois de uma noite com entrada VIP, vinho bom e um beijo bem dado, se a mulher não transasse, estaria desperdiçando um cara foda. Se ela não quisesse, muitas outras querem. O namorado viu? Não deve ter ficado nada feliz, hehe. Ver que a namorada dele estava desesperada para me pegar, e ver tudo o que eu fiz com ela. Só pode ser masoquista. A gente fez de tudo, e eu nem pedi. Ela é que foi mostrando que queria que eu fizesse aquilo ali no final. Putz, nem toda mulher topa fazer aquilo. Cara, tô até cansado. Na pior das hipóteses, tive uma noite gostosa. E ainda sacaneei mais um otário que não consegue prender a própria namorada.

Eu prefiro continuar com meu namorado. Embora ele seja muito criança de vez em quando, nós já nos entendemos bem. Eu gosto dele. O L. é muito interessante, muito sexy, mas nosso papo poderia ter sido melhor. Eu sinto que a gente pode acabar tendo problemas com as diferenças, mais tarde. O sexo foi bom, mas meu namorado já me conhece, sabe os lugares onde mais gosto de ser tocada, o que gosto de fazer, acaba conseguindo me dar muito mais prazer. Mas foi bom ter brincado com uma pessoa com um corpo diferente e com muita vontade de fazer tudo o que fizemos. Adorei me sentir desejada daquele jeito. Acho que uma das melhores coisas, aliás, foi sentir que estava sendo ardentemente desejada. No fundo, talvez, eu quisesse mais isso. Mas meu namorado também me deseja muito, nos damos bem, prefiro continuar como está. Sei que ele vai compreender que o que aconteceu nesta noite não tem nada a ver conosco, com nosso relacionamento. Já conversamos sobre isso antes. Vi que ele confirmou nossas conversas durante o programa. Por isso, somos felizes. Nos conhecemos muito bem e sempre pensamos um no outro.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Diários de Bali: primeiras impressões

No avião para Bangkok, depois de comprar um guia em Frankfurt, começo a ler e, finalmente, passo a saber algo sobre o país para onde estou indo. Estou ao lado de um casal de alemães (mais tarde, fico sabendo que os alemães são os europeus que mais vêm a Bali) bastante simpático. Não falam quase nada de inglês mas sorriem o tempo todo, consomem grande parte do arsenal de bebidas que a Thai Airways fornece e brindam quase sempre; parecem em lua-de-mel, mas seus filhos na fileira de trás e sua idade denunciam que já estão juntos há muitos anos.

Desço em Bangkok, pego o avião para Bali. Começo a pensar, entre turistas malaios e australianos, nos bombardeios de 2002 e 2005. Incrível o número de pessoas indo à ilha, sabendo que foram o alvo dos ataques terroristas: o objetivo. História colonial típica: companhias comerciais, seguidas pelo próprio governo holandês, antes dos japoneses e, finalmente, a volta dos holandeses, que não iriam largar o osso tão facilmente. Esta foi a integração dos países “não-ocidentais” (o que inclui América Latina e África) à sociedade internacional. Porém, no presente eterno em que vivemos, não há espaço mais para discutir estas coisas. A independência, a influência dos comunistas e a Guerra Fria, os anos sob Sukarno, logo os anos sob Suharto, a influência dos militares na política durante longo período, e o “bem-vindo” período democrático. Megawati, islamismo, hinduísmo, sendo o ex-general Susilo o atual presidente.

É o outro lado do mundo. Chego às 14h, horário local, 3h da manhã no Brasil. Entre conexões e horas de vôo, cerca de 30 horas de viagem. Chego no hotel, pensando em cochilar, e durmo por 8 horas, não sei se por causa do cansaço da viagem ou porque eu estaria dormindo no Brasil, embora aqui fosse o meio da tarde. É o outro lado do mundo.

E, ainda assim, é outro mundo. Come-se nodles (come-se nodles em todas as refeições) e batatas no café-da-manhã, tofu, carnes em geral. O vestuário é todo colorido, até mesmo em ambientes mais formais, como no caso da conferência de que participei. Aliás, tudo aqui é mais colorido, mais vivo: a arte, as roupas, os objetos. Observo que o bigode, ao contrário do Brasil, é muito comum por estas bandas. Badmington é, ainda não consigo acreditar, o esporte mais popular do país. Badmington? Really?, eu pergunto. Badmington?

O trânsito é um capítulo a parte. Há mais motos e mototáxis do que a média brasileira. Detalhe: metade deles sem capacete. Outro detalhe: crianças dirigem grande parte das motos. Crianças são colocadas em motos com os pais e, se algum deles está sem capacete, são sempre os filhos. Em Bali é comum ver cigarros de Bali, que me fizeram começar a fumar, e ainda não há a perseguição ao tabaco que se costuma perceber na maioria dos países “ocidentais”: pode-se fumar em praticamente todo lugar. O trânsito é caótico, eu não teria a mínima condição de dirigir por aqui, por mais imprudente que alguns me considerem. Dirige-se do lado esquerdo, como os ingleses, e a buzina é onipresente. Dentro de um táxi, observo o motorista utilizando a buzina de 15 em 15 segundos, e não consigo compreender para quê, para quem está buzinando. Parece um hábito, algo mecânico, embora eu saiba que é algo que me escapa. E qualquer pessoa pode entrar no meio da rua e parar o trânsito, sem grandes reclamações dos motoristas. É o que fazem os funcionários dos hotéis, para chamar táxis ou permitir a saída de algum veículo, ou até mesmo para permitir que os turistas consigam atravessar a rua. Aliás, as ruas são muito estreitas e as calçadas, mais ainda.

Grande parte da minha vida social com os nativos ocorreu dentro de carros, em conversas com os motoristas e guias. O sotaque em inglês é muito diferente daqueles aos quais eu tinha me habituado, e é comum eu pedir para que repitam a frase para que eu consiga entender. Todos trabalham muito (é impressionante o número de estabelecimentos que ficam abertos até tarde da noite, senão 24h) e, não obstante, parecem sempre estar de bom humor. São orientais de pele morena, e tendem a ser mais baixos do que eu. Outro susto: ao tirar foto para minha credencial, a funcionária da conferência, ao ver que teria que ajeitar a câmera, disse-me, com um ar sério, que eu era “alto demais”. Eu quase agradeci o elogio!

O governo não parece ser tão presente na vida das pessoas de Bali. Poucas vezes vejo funcionários governamentais, incluindo a polícia, ou estabelecimentos públicos. A economia, aqui, é toda voltada para o turismo, que representa cerca de 70% da renda local. Assim, quase todas as placas são escritas em inglês, e praticamente todo mundo consegue estabelecer uma conversa, ainda que simples, nesta língua. Assim, todos tentam fazer sua parte para facilitar a vida dos turistas. Há muitas casas de câmbio (não sei se autorizadas; algumas têm escrito “authorized money changer”. Isso quer dizer que as outras não são?), hotéis, spas, caixas automáticos, feiras, vendedores ambulantes, restaurantes para todos os gostos. Os bombardeios foram uma péssima notícia para todo mundo: o movimento turístico é cerca de metade do que era até outubro de 2002. Muita gente, na ocasião, perdeu o emprego, muitos estabelecimentos faliram. Ouvi muitas histórias desse tipo em minhas conversas. Mais uma vez, os estabelecimentos privados fazem sua parte: todos os carros que entram em hotéis têm os porta-malas revistados e um detector é passado na parte de baixo de cada um deles. Em outras palavras, ainda pode-se respirar os ataques por aqui. Os mais jovens brincavam com palavras como “fuck terrorists”. Cheguei a ver camisetas a venda com estes escritos. Um turista ocidental mais inteligente não usaria estas camisetas: poderia parecer arrogância, provocação e, dependendo, até mesmo uma ofensa direta. Mas eu não acredito na inteligência dos turistas.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Querida Sara,

No início, quando vi você começar a sair de casa e fazer amigos, ficava muito feliz de vê-la feliz. Era um entra-e-sai de casa, seus amigos vinham buscá-la para sair à noite, e eu estava contente de ver que você aproveitava a vida. A participação no grupo e seus segredos dissimulados em rosto completamente apaixonado faziam sua pele ficar ainda mais bela. Passei gradualmente a ter menos contato com você. Isso era natural, pensava eu, nenhum pai tem acesso real às vidas de seus filhos adolescentes.

Você chegando cada vez mais tarde, eu dormindo cada vez mais cedo. Imaginava que estava correndo tudo bem na faculdade. Não estava mal, de fato. Você sempre elogiava as aulas de publicidade, gostava dos colegas, trazia alguns em casa. Eu divertia-me com as gírias que surgiam a cada segundo em suas bocas, nas refeições em que partilhávamos a mesa. Finalmente, vieram também os namorados. Você tratava-os com altivez, não sei se isso os agradava, mas o fazia a mim, que ficava certo de que você não se arrastaria facilmente aos pés de qualquer homem. Eu tinha tanto orgulho da sua independência, desta sua altivez.

Houve preocupações. Esbarrões nos móveis madrugada afora, ânsias de vômito, despertar no chão da casa, nos chãos de outras casas, reclamações de vizinhos, enquanto eu viajava. Você, popular, o celular sempre vibrando de amigos, tocando solicitações de presença. E você disse sim a todos, irei, claro, não posso perder, já estou lá. Haja festas para você. Nem havia tantas, e você então as levava para nossa casa, amigos bebendo na sacada. Cartão de crédito cada vez mais alto. Eu faço estágio, pai, posso me virar sozinha. E lá foi você, adiante, cada vez mais longe.

Mudou-se de casa.Visitava pouco, nossas conversas sempre terminavam com você chateada comigo, eu chateado com você. Na mesma cidade, não conseguíamos nos ver muito. Confesso que, muito embora eu manifestasse vontade de te ver mais, estava imerso em outras coisas, e (sou obrigado a dizer) nossas discussões diminuíam um pouco esse desejo de vê-la, pois eu sabia que esses encontros não seriam bons. No fundo, eu tinha saudade de você quando criança. Eu deveria ter vergonha de dizer isso, de manifestar verdades cruéis a você.

Eu vi, porém, que você não era mais criança quando seus hábitos passaram a ser mais claros para mim. Você não estava mais no estágio, e nem haveria razão, pois já havia terminado a faculdade. Não obstante, não parecia estar interessada em emprego algum. Continuou vivendo como adolescente, embora com discurso até mais adulto, talvez, do que o meu. Mais inteligente. Sua vida era noite afora. E foi durante a noite que você afetou todo o meu dia, lenta e dolorosamente.

Seus amigos ligavam pedindo que eu fosse buscá-la nos mais diversos lugares. Depois, a polícia pedia que eu fosse buscá-la na delegacia. Soube que você dormira diversas vezes no carro, nas praças, nas ruas, em casas de pessoas que você não conhecia. Nem sempre havia alguém para buscar, amigo ou namorado para levar para casa ou para algum lugar seguro. A verdade é que não era seguro deixar você sozinha. Eu não sabia disso, digo isso agora, depois de tudo. Quando já é tarde demais.

Quando você sumiu por três dias, eu só fui saber muito depois. Ninguém quis colocar-me a par, acho que faltou coragem. Afinal, todos os que souberam da história eram meio culpados. Eu não sabia que minha família estava desmoronando. Para mim, estava tudo normal. Preferi ignorar. Continuava trabalhando, escrevendo meus artigos eventuais nos periódicos, mantendo relações com o pessoal do gabinete, fazendo a política de todo dia. Até que, um dia, minha rotina foi atropelada por notícias suas. Notícias publicadas nos jornais que costumava ler.

Aquela rotina é passado. As notícias foram multiplicando-se, fui varrido pela verdade e pelo moinho de fofocas que se deu depois. Perdi posição, perdi quase todo o meu dinheiro e propriedades duramente conquistados (tendo eu nascido em casa pobre) em pouquíssimo tempo, para pagar as dívidas que eu não soubera que você tinha acumulado. Meu nome agora é lama. O nome de toda a família. E sequer nos entendemos, você e eu, durante tudo aquilo. Sua postura arrogante, sua suposta independência de tudo o que se falava. Finalmente, não havia diálogo nem coisas sobre as quais lamentar. Tudo havia acabado. Eu reafirmava que ainda amava-a, e tantas vezes pedi para você mudar em nome do amor que eu dizia sentir e que não passava de mentira. Não sabia como você podia ter nascido. Olhava para você e via uma conspiração divina, um carma, punição, flagelo de minha existência. E menti, menti, menti, porque precisava sentir-me como pai, apesar de todos os meus sentimentos negarem isso. Eu odiava você, minha filha.

Ontem, porém, quando a vi de novo, algo em mim virou ao avesso. Você não era a sombra do que já tinha sido. Cabelo raspado, parecia caminhar pela casa de pijama há semanas, como sonâmbula, sem assear-se ou comer direito, e sóbria. Todos os amigos afastados, agora que não havia comemoração alguma de que você participasse. Os amigos que, soube, transavam com você (bêbada) quando bem entendiam, já que você pedia e se despia, que se divertiam com você. Seus namorados que não mais existiam porque você os traiu todos, diversas vezes. Alguns bateram em você. Tantos pegaram dinheiro e coisas emprestadas nunca devolvidas. Menina mimada, catalogavam. Estavam certos.

Olhando para você, outro rosto. Bem mais velha. A falta de lágrimas ao tentar explicar que, realmente, não se lembra de praticamente nada do que fez ou sofreu nos últimos cinco anos. Olha fotos, ouve relatos, lê notícias, não se reconhece. Você estava bêbada, doida, sei lá, os dois, você diz. Sequer sabe o que aconteceu. Está sem rumo. Não consegue arrumar emprego, não estudou muito nos últimos tempos, publicidade decaiu muito, você tenta argumentar. A verdade é que você mal compareceu às aulas da faculdade, não precisava para ser aprovada. Resolvi ficar em casa por enquanto, eu te vejo mentindo. A visita é um suplício para você, sequer consegue olhar-me nos olhos. Só para o tapete manchado de coisas várias e indefiníveis. Você não quer que lhe vejam tão frágil, não quer que tenham pena de você. Porque você sabe que você não merece pena de ninguém. Você não se preocupou, não teve consideração com absolutamente ninguém durante todo esse tempo. Vivia exclusivamente para você e paa ninguém mais. Você não merece pena nem do seu pai. Ainda mais do seu pai, de quem você arruinou a vida. Você sabe que metade dos meus cabelos brancos, das minhas rugas, dos meus olhos cansados, veio de preocupações causadas por você. Você tem vergonha.

Quanto a mim, voltei à condição de criança sem que haja tempo de construir novamente minha identidade. Sua mãe morreu tragicamente, ignorada, enquanto eu trabalhava. Só fui suspender tudo nos últimos dias, para vê-la emagrecer e adquirir manchas na pele. Você, nem isso. Perdi, sem sequer ter consciência, egoisticamente, a única pessoa que me amou de verdade. Dos amigos, sobraram tão poucos. Vagueio pela cidade sem rumo, como alma penada. Não imaginava que minha velhice seria assim. Eu tinha pena de mim mesmo. Um rancor imenso do mundo e, particularmente, de você.

E algo aconteceu desde ontem. Você não tinha esperança de mais nada. Sentia um ódio mortal de si mesma. O seu rancor não era do mundo ou de ninguém, era de você mesma. Você considerava-se desgraçada. Derrotada. E ainda tão jovem, tão jovem. Minha dor adquiriu novas tonalidades, ontem. Eu não tenho condições de assistir ao espetáculo com indiferença. Você desmoronou.

E tudo o que eu havia recusado sentir por você veio, tão inesperadamente. Você ainda tem tempo, minha filha, pode recuperar tudo. Eu sinto que suas provações têm um propósito, e este propósito é bom. Eu quero fazer você ter vontade de colocar uma roupa bonita e sair de casa. Eu quero fazer você ter vontade de amar os outros, de ter uma vida da qual você se orgulhe. Eu sei que isso ainda é possível, para você. Pensa mais um pouco, filha, e veja que não há porque se esconder o resto da vida. As pessoas esquecem, você também pode esquecer. Um dia, isso tudo parecerá só um sonho ruim. Você ainda é tão bela, mesmo com toda a sua tristeza, com toda a sua fragilidade. Você terá sua redenção, e ela virá sub-repticiamente, em pequenos momentos. Basta você recuperar a vontade de viver. Meu rancor de você transformou-se em esperança. Você, filha, é minha esperança de tempos melhores.

Eu nunca soube ou quis ser um bom pai. Eu reconheço que também fui egoísta e que, não fosse eu, as coisas poderiam ser bem diferentes. Eu sei que você não quer ouvir isso, sei que você não concorda. Mas eu também sei, agora, que eu amo você. Eu que pensava que, em minha velhice, isso já não era possível. Você não está sozinha, minha filha. Não enquanto eu estiver vivo. Eu prometo: você ainda há de ser feliz.

Do seu

M.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Interpretação do toque

Eu imaginava que estava fazendo carinho. Não era carinho, ela disse, você aproveitava da minha carência, destruiu-me emocionalmente, tornou-me dependente de você. Mas eu era, eu respondi, eu era dependente de você. Você não era, como todo homem, aliás, eu a vi dizendo. Você nos violenta, com seus falsos atos de carinho e amor, para continuar a viver do mesmo jeito, para depois abandonar-nos, mesmo mantendo tudo aparentemente como estava. Eu fiquei sozinha, solitária. Sozinha, esperando que você viesse tocar-me para recompensar toda essa solidão, longe de tudo e de todos, com exceção de você. Depois, derretia-me com sua violência, com esse seu falso afago que me prendia, que me impedia de seguir minha vida, enquanto você seguia o curso da sua, como se eu não existisse. Anos sendo violada e sem acesso a qualquer coisa sua. Foram esses carinhos eventuais que me fizeram transformar você no centro de minha vida, enquanto eu permaneci na sombra, em algum canto obscuro da sua vida.

Percebi, a partir daquele momento, duas possibilidades de toque: carinho e violência. Concluí, ainda, que o toque, o tocar alguém, pode ser as duas coisas, simultaneamente. Depende do ponto de vista, da pessoa, do momento em que se pensa sobre isso. Todo toque é diálogo, pois envolve dois corpos. O toque é ambíguo, portanto. A violência é, eventualmente, carinhosa, um ato de amor tresloucado. O carinho pode ser o pior ato de violência.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Dúvidas

Se uma pessoa está em constante mudança, ela nunca é o que era antes. Logo, numa perspectiva temporal, não existe uma pessoa, mas várias pessoas, com corpo e alma diversos.
Nós nunca conhecemos totalmente alguém, nem mesmo a nós próprios. Portanto, há sempre espaço para o imprevisível. E, se estamos em constante mudança, como parece ser nosso caso, é ainda mais difícil e problemático dizer “eu conheço aquela pessoa” ou até “eu realmente me conheço”.
Apesar das afirmações anteriores, o amor existe. Nós dizemos, constantemente, “eu amo aquela pessoa”. Porém, se nós jamais conhecemos alguém, e se este alguém é sempre outro no tempo, a quem realmente amamos?
Tem gente que ama alguém querendo que ela realize um potencial imaginário, criado pelo amante (“amo porque sei que ele pode ser outra pessoa”). Tem gente que ama porque acha que o amado vai fazê-lo realizar o seu potencial imaginário. Tem gente que cria um sujeito imaginário e o ama. Em geral, a gente faz os dois, simultaneamente.
Mas o amor também muda com o tempo. Ele toma formas diferentes, ele tem graus variados. Ele aumenta, diminui, acaba. Essa variação tem alguma relação com a mudança individual dos amantes-amados? Podemos dizer que paramos de amar porque o amado mudou? Como, se nunca o conhecemos realmente, nem agora nem antes? Será que o amor acaba porque nossa capacidade de vestir o ser amado com a roupa que nos agrada, ou com as diversas roupas que podemos amar, esvai-se? O amor muda porque amante e amado mudam?
Mas o amor também tem contato com a realidade. O amante entende e percebe algo do ser amado: é quando dizemos “compreendo-o” (parcial e episodicamente, ao menos). É quando não mais porque pensávamos “que ela fosse diferente”. O amor tem fantasia vista como realidade. O ser amado tenta mudar para corresponder à fantasia do amante. Por isso, o amor também é, por sua vez, motor de mudança dos amantes-amados. Nós tentamos, ainda, ocultar o que pode não corresponder a estas criações imaginárias. Também podemos ver que os amantes mudam um ao outro, fazendo que com ambos fiquem bem parecidos a olhos de terceiros e deles mesmos.
Se o amor muda, de onde vem a estabilidade do amor? O amor é independente dos sujeitos-objetos do amor? E seu contato com a realidade, como fica? Como o amor dura se tudo muda, inclusive nós próprios?
Cá estão, nossos amigos de longa data. Anos, décadas. Nosso amor romântico pela mesma pessoa, amor longínquo. A gangorra eterna do amor.
Como funciona o amor? Ele pode explodir, como partículas instáveis numa molécula, como bomba atômica? De onde vem toda essa energia, de onde veio o amor? Como se mantém? Para onde ele vai?
O que é isso que chamados de amor?

quarta-feira, 28 de maio de 2008

29/19

Acho que não vi acontecer. Quando olhava no espelho, não via nada. Nada de diferente, digo. O que particularmente me incomodava eram algumas fotos. Mas, então, eu achava que era a pose, a luz, o ângulo. Enfim, eu achava que não era comigo.

Certa vez, li que uma das dificuldades para uma pessoa emagrecer é que, quando o objetivo é alcançado, ela não consegue reconhecer-se no espelho, não se acostuma à sua nova imagem. Comigo, aconteceu o mesmo, mas de maneira inversa, por assim dizer.

Nos últimos tempos, andei passando por um processo de reconhecimento do meu eu exterior. Descobri que meu aspecto, ao contrário do que eu tinha como certo, mudou muito. Finalmente, descobri que não sou a mesma pessoa de dez anos atrás. Uma bochecha que não havia antes. Rugas de expressão. Até mesmo fios de cabelo branco. Uma barriga saliente. Uma memória que já foi melhor. Menos vontade de falar. Dentes amarelos, sorriso amarelo.

E nem é só isso. Já há festas nostálgicas sobre épocas que eu pensava não terem acabado (o presente está cada vez mais curto). Documentários sobre ídolos meus de pouco tempo atrás. Existem pessoas com quem tenho conversas interessantíssimas e que nasceram bem depois de mim. Certas roupas que vestia voltaram a ser usadas como “vintage”. Há várias gírias de que sequer tomo conhecimento e, quando por acaso tomo, não entendo.

Contudo, sinceramente, sequer tenho mais vontade ou paciência para acompanhar tantas novidades, tendências, novas bandas, novos cortes de cabelo e novas classificações da música pop. Não me apetece mais ser “in” (e como ficou chato ser moderno...).

Eu acompanhava esse ritmo naturalmente. Agora, para mim (eu, que era só mudança), para mim as coisas parecem ter ficado mais fixas, enrijecidas como meus membros. Algumas coisas levadas a sério me parecem hilárias.

Deve ser a idade. Eu tenho 29 anos, falta pouco mais de um mês para os fatídicos 30. Na semana passada, descobri ter 19% de gordura entranhada no corpo, um ponto percentual a menos de ser considerado “acima do recomendável”, bem acima do ideal. Eu não entendo por que atingir um número redondo na vida é sempre doloroso.

Falta pouco para eu não saber mais sobre coisas da moda, novos jogos de videogame e até novos videogames, novas formas de ouvir música, novos acessórios e periféricos, novas conexões, novas maneiras de trocar idéias. Falta pouco para eu sequer ter idéia de como ligar os aparelhos, assim como meus pais e avós, ou, ainda pior, instalá-los.

Devo, então, correr atrás do prejuízo? Devo viver sobre esteiras? Devo ler todas as revistas sobre estilo? Devo cortar o cabelo? Devo imaginar que não serei ridicularizado como aqueles velhos que tentam dar uma de “jovem” (e até a maneira com que se referem aos “jovens” é tão anacrônica e afetada que parece ridículo)? Serei eu um kidult, adultescente, ou qualquer novo nome que inventem para pessoas assim?

Devo mergular na velhice? Reclamar da vida o dia todo e já tomar remédios para prevenir minha futura e inevitável hérnia? Recusar tudo o que é novo e falar sempre do passado como se fosse melhor do que os tempos atuais?

Recuso-me a tomar qualquer um desses rumos. Vou deixar-me viver, como tenho vivido, em eterna mudança e com a memória do que já foi. O tempo, seja como for, sempre é presente, passado e futuro concentrados em nosso interior. Não vou negar nada. Continuo com os risos de criança e o mal humor de velho rabugento: ambos estão em mim.

Aqui estou, num café em Lisboa, lendo Montaigne e ouvindo Radiohead com meu novo iPod. Logo depois, leio Coetzee ouvindo Schubert. Depois, corro um pouco ao redor do Lago Léman, em Genebra. Tento trabalhar muito e melhorar no que faço. Depois, danço Smiths, Björk e outras velharias de meus tempos. Vou ao cinema ver Bergman e François Ozon. Tudo isso é muito bom e tudo isso, antigo ou novo, pode ser aproveitado agora. Nos intervalos, escrevo besteiras e penso sobre a vida.

Envelheço, sim. Como é bom a vida seguir e vê-la seguir. Como são belas as coisas que passam e vejo passar. Eu passo, também, e nada poderia ser mais interessante e natural.

sábado, 3 de maio de 2008

Farol

Estando em meio ao mar deserto
E ondulante, o incerto náufrago,
Ofegante, do inferno azul avista
Um farol, que dista dele
Muito pouco.

Com farol em proa,
Remos cansados
No remanso consolam-se
Em antever,
Em vez de temer,
Um fim.

Escalando o insulado edifício,
Construção mágica, paredes
Flácidas formam ecos
Trágicos a ouvidos
Antes moucos.

O farol, agora via-se,
Iluminava toda direção e
havia uma voz a dizer:
"Do caminho importa o que
Dele se fez". Dúbia
Reverberação.

Em sua embarcação de volta,
O olhar enevoado duvida do outrora
Límpido farol, e o determinado
Náufrago some na imensidão
Sem fim.

domingo, 27 de abril de 2008

Filosofia, interrompida

Há mais ou menos treze anos atrás, eu ainda lia pouquíssimo. Eu deveria ter vergonha de dizer isso mas, como tenho considerado a sinceridade virtude muito importante, confesso que comecei a ler bastante quando, fazendo um simulado de inglês e terminando muito rapidamente (pois não me esforçava muito nas provas), um amigo passou-me um livro para ler enquanto esperava. Eu estava em San Diego, pela primeira vez no exterior para estudar outra língua (e até hoje não sei falar nenhuma). O amigo era um suíço que nunca mais vi, mas cujo nome não esqueço porque ainda o prezo muito por isso: Richard Bruder. O livro era “O mundo de Sofia”.
Esse livro do Jostein Gaarder foi best-seller durante muito tempo, tanto no Brasil quanto em vários países do exterior. Acho que esses romances que prometem ensinar tudo o que se deve saber sobre determinado assunto, vez por outra, são muito vendidos. Esse era um dos casos.
Embora eu tivesse gostado muito da história, o que realmente me interessava eram os capítulos em formas de cartas que explicavam resumidamente idéias de filósofos famosos. Desde então, eu nunca mais parei de ler. Logo, eu devo praticamente todo o meu interesse em livros, ao menos inicialmente, à filosofia.
Praticamente todo o tempo restante que tive nos Estados Unidos, passei-o lendo. Lendo o livro, que comprei no mesmo dia por não poder roubar o de meu amigo, lendo a poeta Dorothy Parker e Walt Whitman (do qual nunca tinha ouvido falar), lendo revistas sobre música. Até hoje, minha impressão mais nítida de San Diego é sobre o sofá da sala dos Maine, com livros na mãe. Da cidade, sinceramente, lembro muito pouco, com exceção da escola. Essa estada, de vez em quando, parece só um sonho.
Minha mãe, que não gostava nada desse meu péssimo hábito (ou não-hábito) de não ler, resolveu incentivar-me de diversas maneiras. Uma delas foi quando eu tive interesse na coleção “Os Pensadores”, que já foi lançada diversas vezes em bancas, em diferentes versões. A minha é aquela em capa dura verde. Minha mãe comprou-a toda para mim, cada um dos 30 volumes. E eu passei a ler todos, na ordem, para tentar aprender mais coisas sobre filosofia.
À época, eu cheguei mesmo a prestar o vestibular para filosofia em duas faculdades: Unicamp e UCG. Passei nas duas, matriculei-me na Unicamp, mas a vida acabou levando-me a fazer Direito na UnB. Seja como for, esse amor pela filosofia durou muito tempo. Cheguei a pensar em parar o curso de Direito para fazer Filosofia, tal como tinha planejado alguns anos antes. Acabei considerando que os argumentos de meu pai, de que eu não deveria gastar os anos de Direito que já havia cursado, eram mais ponderados do que meus impulsos de largar tudo e fazer algo do qual realmente gostava. A resposta para esse dilema, se deveria ou não ter-me dedicado a algo de que gostava tanto mas que provavelmente não daria retorno financeiro, até hoje não a tenho.
A paixão pela filosofia, pouco a pouco, foi sumindo. Eu parei de ler a coleção, lá pelo décimo volume, por volta de 1998. Desde então, pensei em fazer história (que cheguei a cursar por um período, após ter conseguido o diploma do primeiro curso), psicologia, sociologia, e por aí vai. A questão da minha indecisão daria milhões de páginas, e perpassa toda a minha vida, mas ficará para outra ocasião.
O fato é que resolvi retomar a leitura daquela velha coleção que minha mãe havia dado, tantos anos e tantas experiências depois. O volume que resolvi ler foi um que tinha deixado pela metade, e que sempre é citado por aí: são os “Ensaios”, de Montaigne.
Eu teria milhões de comentários a fazer sobre o livro e sobre Montaigne, e tenho feito por aí, em conversas esparsas. Mas, por escrito, eu só queria relembrar essa trajetória interrompida e dizer que este livro tem mudado minha vida e que eu não poderia estar mais feliz por tê-lo retomado, depois de mais de dez anos.
Eu voltei a morar na filosofia.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Fria Genebra...

Foto tirada há alguns dias atrás, em Genebra. Uma figura tentando desesperadamente expor-se, apesar do frio e apesar da indiferença.

Distinção

Há uma diferença
Entre omitir e contar.
Entre falar e conversar.
Entre sorrir e chorar.
Entre viver e durar.

Diferença entre
Nós e laços
Laços e casos
Casos e acasos.

Há uma diferença entre
Entre na minha vida
E aguarde na sala.

Uma divergência.
Uma insistência.
Há uma diferença

Entre eu
E você

meu amor.

sábado, 15 de março de 2008

It ain't etiquette

Ler livros de etiqueta, ou sequer saber algo sobre regras de “civilidade”, é algo fora de questão durante a adolescência. A modernidade destaca livros com idéias românticas, em que a individualidade e a autenticidade estão entre as coisas mais grandiosas de uma pessoa. O conceito de “regras de convivência” só pode ser seguido por pessoas sem interioridade, que precisam de guia para interagir com outras pessoas.


Como conciliar as idéias libertárias de Sartre e Rousseau, de Byron e Nietzsche, com a idéia de algo tão aprisionador quanto regras de convivência? A etiqueta era símbolo da hipocrisia, da necessidade absurda de imaginar-se parte de um grupo por partilhar modos semelhantes à mesa. Finalmente, a etiqueta é também um símbolo de exclusão e, portanto, era anti-democrática: não participavam do grupo os não-iniciados na arte de bem manejar talheres, de saber os vinhos apropriados a cada prato, das conversas agradáveis durante uma xícara de café ou enquanto tomavam um sorbet para melhor apreciar o requinte que se seguiria.

A etiqueta ainda é para muitos o símbolo dos ideais antigos de nobreza e de sua dissimulação nos palácios, é contrária à autenticidade e aceitação que marcam as sociedades democráticas. É a contraposição ao comportamento do artista, que busca manifestar o seu interior e não ser podado pelo dever-ser do outro.

O jovem esclarecido, com esses ideais, integra-se ao mercado de trabalho, integra-se a outras famílias (de namorados, de colegas). O jovem esclarecido tem necessidade de sentir-se aceito nesses novos círculos, que não conhecia. O jovem esclarecido quer que os outros o reconheçam como parte do grupo, independentemente de seus pais, e observa que existem regras que outras pessoas seguem e que ele não segue. Em sua infância, não havia jantares de gala, não havia convites indicando o tipo de roupa adequado à ocasião, nem convivência com pessoas com esse tipo de preocupação.

Sua infância havia sido muito feliz, na medida de possível, e talvez essa felicidade tenha a ver com o fato de não ter sido repreendido por falta de modos, e por ter convivido com pessoas extremamente espontâneas nas comemorações de que participou. A etiqueta não havia feito falta em sua vida e, sinceramente, deve ter sido melhor que ela não existisse naquele tempo.

Agora, nota que não se comportava como deveria, ou ao menos como esperavam dele em uma série de situações. Ele percebe que havia pessoas que correspondiam a tais ideais, que havia pessoas que se comportavam conforme esperava-se delas, e que tal comportamento agradava bastante, especialmente às pessoas mais velhas, com quem ele pouco convivia.

Ele observa, a contragosto, que sempre teve acesso a esse mundo e que nada o impediu de conhecê-lo, contrariamente aos despossuídos ao qual sempre se sentiu mais próximo. Não podia fingir que era absolutamente alheio a isso tudo. Ele era próximo dessas pessoas concretas que se vangloriavam de sua etiqueta para excluir os demais, para menosprezar aqueles não-iniciados. Ele era cúmplice disso, embora não fosse tão iniciado quanto alguns amigos.

O que o manteve alheio a esse saber foi sua arrogância. Diante da ignorância a respeito do assunto, ele preferiu dar de ombros, abominar toda a humanidade por saber algo que ele não podia admitir desconhecer. Por praticar algo do qual ele era incapaz. O seu orgulho próprio era encoberto pela arrogância suposta dos outros.

*

A pessoa acima, dissimulada em terceira pessoa, tem algo de mim. Talvez represente mais gente, mas não posso seguir a hipocrisia de fingir que seja alguém ideal. A etiqueta mais moderna, ou a pós-moderna, não permitiria. Por isso, passo a admitir minha precária condição usando a primeira pessoa.

Naturalmente, eu sabia algo sobre essas regras de convivência, porque convivo com outras pessoas. Com o tempo, deixei de agir exatamente de acordo com minha vontade tirânica. Eu passei a controlá-la para o bem geral, e essa contradição gerou meu mal-estar na civilização. Preciso expressá-lo. Mesmo que isso não siga as atuais regras de etiqueta.

*


Admitir ler manuais de etiqueta é como admitir ler livros de auto-ajuda: há algo de humilhante nisso. Os livros de etiqueta não estão destacados na estante da sala, não estão embaixo dos vidros das mesas de centro das salas de apartamentos de classe média. Esses novos livros eróticos (que agora são tão soberbamente exibidos como sinal de modernidade) estão nos recônditos dos armários. Sobretudo, não se fala sobre essa leitura. Por quê?

Em primeiro lugar, pela contradição colocada acima. A modernidade foi construída a partir da relevância do indivíduo e decorrentes ideais de espontaneidade, originalidade e criatividade. No entanto, a etiqueta representa o oposto desses ideais, por exigir um comportamento contido, regulado, uniforme. Algo semelhante à idéia de comunidade que exigia antes da ascensão do liberalismo. A etiqueta, nesse sentido, é reacionária. Ela lembra que, embora tenhamos enforcado o último nobre nas tripas do último padre, algo dessa sociedade ainda resta. Pior, ela permanece nos estratos mais favorecidos, na nobreza moderna. A etiqueta é um sinal de distinção.

O discurso sobre etiqueta, portanto, é contraditório. Tenta-se resolver essa contradição defendendo-se a “etiqueta natural”. Diz-se que não há nada mais belo do que ver alguém portar-se civilizadamente do modo mais natural. Assim, a etiqueta ideal é aquela que já nasce conosco, que já está presente no berço. Deseja-se que um dever-ser obviamente heteronômico seja visto como algo natural, ou seja, como autonômico. Não há naturalidade alguma em uma criança usando vários talheres durante as refeições. O absurdo desse discurso é tamanho que, na maioria das vezes, prefere-se o silêncio.

Outra maneira de tentar atenuar é oferecer regras dizendo que podem ser quebradas “segundo o bom senso”. Ora, há várias regras que não são ditadas pelo bom senso e que, no entanto, seria falta de bom senso infringi-las. Não há bom senso em não partir folhas depois dos talheres em aço inox. Não há bom senso em usar a mão com menos habilidade para manejar este ou aquele instrumento. Grande parte das normas construídas no processo civilizador decorre de aspectos alheios à racionalidade. Logo, infringir com bom senso é uma regra que não pode ser seguida. Além disso, o dever-ser perde o sentido quando se nega sua própria condição, dizendo-se que ele pode não ser. A etiqueta é espécie de direito, e exige uma comunhão minimamente cega às normas, para que possa ser eficaz. Como não se admite o caráter normativo da etiqueta, mais uma razão para preferir-se o silêncio.

Embora a etiqueta tenha função social, ela é apresentada tão contraditoriamente que não consegue perder a timidez por não saber o que é ou que papel tem no nosso tempo.

Enquanto isso, seguimos conversando durante as refeições, sem mencionar a satisfação de nos sentirmos iguais à mesa e nos distinguirmos de outras pessoas por pequenos detalhes de comportamento. Continuamos a vangloriar a nossa elegância natural, adquirida depois de longas lições e duradoura prática, quiçá reforçadas com a leitura de alguns livros escusos no vão da parede.

Ora, não falemos de política. Ah, sim, este vinho está maravilhoso. Não precisava ter se incomodado em trazer, querida. Há tempos não tinha uma noite tão agradável.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Novos provérbios, op. 1.

Se as paredes tivessem ouvidos,
seriam todas torturadas
até que dissessem não.

Se as paredes falassem,
seriam todas executadas
num grande paredão.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bolo de cenoura

Na frente do meu trabalho, descubro um rapaz que vende bolos e alguns outros quitutes, praticamente toda tarde. Eu nunca o havia notado. Subindo os degraus da escada, e dando um furtivo olhar nos doces (eu já estava com fome, pouco depois do almoço), descubro algo que não comia há tempos: bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

Assim como o olhar havia sido furtivo, foi também a primeira mordiscada, entre alguns papéis aos quais eu deveria estar prestando mais atenção. O bolo de cenoura na minha boca, o chocolate derretendo no palato, pregando nos dentes, a massa pouco a pouco absorvida e revelando seu gosto. Meu deus, bolo de cenoura com cobertura de chocolate!

Foi um sabor que me lembrou bastante de outros tempos mais felizes e inocentes. Por que eu nunca mais comi, eu não sei. Mas que saudades daqueles velhos tempos! O bolo de cenoura, essa semana, foi o meu chá da Madeleine. Mas eu não me chamo Marcel. Ao invés de sete livros, escrevo essas linhas (ainda) furtivas.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vida e época de Michael K (Life and Times of Michael K), de J. M. Coetzee

O livro "Life and Times of Michael K", do sul-africano (depois naturalizado australiano) J. M. Coetzee, rendeu ao autor o Booker Prize, em 1983, e maior notoriedade no meio literário internacional. Estou buscando ler mais literatura contemporânea, algo que não fazia antes, e, agora, estou tentando ler mais livros em inglês, por dois motivos: aprimorar uma língua que não consigo aprender direito e ter mais contato com a vasta literatura que não conheço muito bem.

O livro conta a história de Michael K, uma pessoa simplória e de aspecto desagradável (possui lábio leporino) vivendo em meio à guerra civil na década de 1970. Em meio à violência vigente na cidade do Cabo, sua mãe enferma pede-lhe que a leve para uma fazenda em Prince Albert, que se torna, para ela, o Éden perdido e nostálgico que poderá reparar os estragos feitos pela guerra. Michael K improvisa um desajeitado riquixá, depois de perceber que não obterá permissões para deslocar pelo país, instala sua mãe no aparato e sai puxando-a por estradas secundárias, para evitar postos de controle. No meio do caminho, sua mãe piora, devido às condições precárias do transporte e do tempo, e morre em um hospital. Seu corpo é cremado sem autorização do filho, que resolve levar suas cinzas aonde sua mãe nasceu, tal como havia prometido.

K, entre vários contratempos, consegue chegar a Prince Albert, e encontra uma fazenda similar à descrita pela mãe. Lá, passa a viver precariamente - abatendo ovelhas, tentando retirar água de um açude, comendo larvas – até a chegada de um dos proprietários da terra, desertor de guerra, que tenta transformá-lo num servo pessoal. O protagonista, então, vive um tempo nas montanhas, até que é encontrado semi-vivo por funcionários do governo, que o levam a um campo de refugiados. Lá, tem de trabalhar para comer, em fazendas ou reparando estradas e ferrovias. Não satisfeito com a falta de liberdade, e após testemunhar diversos abusos depois da explosão de um prédio na cidade vizinha, K foge do campo e volta à fazenda, já abandonada. Tenta, novamente, viver da terra, plantando abóboras e melões, mas sua quase inexistente alimentação faz sua condição piorar, até que, novamente, é encontrado por pelotões do governo, que o tomam por ajudante dos conspiradores que vivem nas montanhas.

Michael segue, então, para um hospital em outro campo, e é tratado por um médico que, malgrado K recuse a alimentação, nega-se a deixá-lo morrer e dá-lhe tratamento especial. O protagonista continua a definhar, mas consegue, finalmente, fugir do hospital improvisado numa pista para corridas de cavalos, e volta ao lugar onde começou, a cidade do Cabo. Percebe a cidade ainda mais devastada pela guerra, conhece um bando de amigos e tem, provavelmente, sua primeira experiência sexual, com uma provável prostituta do grupo, que lhe faz sexo oral. O livro termina com a divagação de Michael K de que poderá voltar para algum lugar onde, novamente, tentará viver da terra, com recursos mínimos com os quais conseguirá sobreviver.

O livro é narrado em terceira pessoa. Porém, o narrador não é onisciente, e confunde-se com seu personagem principal, muito simplório, pois não apresenta reflexões além do que ele seria capaz de oferecer. Também há utilização do discurso indireto livre, assim como de diálogos, ao longo do texto. No entanto, a interiorização precária do protagonista e a falta de onisciência do narrador leva a um texto descritivo, frio e estéril como a guerra em meio à qual vivem os personagens. Enquanto ocorrem as piores violências e arbitrariedades, os maiores contratempos e tragédias, a proximidade da morte, não há uma reflexão de Michael K sobre a situação que vive, com raras exceções. A situação só muda no segundo capítulo, relativamente curto, cuja narração fica a cargo do médico que assiste K. Somente aí há uma tentativa de explicação da trajetória de Michael K, mas ainda essa tentativa de explicação é insuficiente, visto que o médico não consegue arrancar do protagonista mais do que algumas vagas palavras.

Então, o que se oferece ao leitor é um texto sem muitos adjetivos, com poucos diálogos e poucos reflexões. O livro é, em suma, uma grande descrição da viagem e das desventuras de Michael K, que parece não entender muito bem o que se passa, e busca viver alheio à guerra que o envolve. Coetzee, ganhador do Nobel de Literatura em 2003, tem grande força expressiva em todas as descrições: é extremamente preciso em cada ação e movimento, em cada substantivo e seus qualificativos. Para um leitor que, como eu, não domina o inglês, o desafio é imenso. São vários os tipos de ruído e de movimentos corporais, as alterações do tempo e da condição do protagonista, o detalhamento na descrição dos mecanismos com que se lida. Coetzee cria, realmente, um mundo vivaz. Algumas vezes, o leitor tem a impressão de que aprende a construir um carrinho de mão com rodas de bicicleta e um eixo roubado de um depósito, a consertar uma bomba d’água e, à medida que a fome se apodera, como o corpo transforma-se e o que se sente nesse processo.
A força descritiva é tão envolvente que cheguei a ler resenha afirmando que o segundo capítulo, o único com alguma reflexão, seria o maior defeito do livro. Diante da crueza da história de Michael K em si, não haveria necessidade de um narrador mais consciente, a dar um sentido à sua peregrinação. O ideal seria o próprio leitor buscar seu sentido, diante de tudo que lhe é exposto. Confesso que não sei se estou de acordo. A pessoa que busca dar sentido é um dos personagens, e muito mal informado, e não há razão para que o leitor aceite sua autoridade ou dê-lhe credibilidade. O que se tem é uma interpretação possível da aventura de K, e nada impede que o leitor discorde dela. Talvez, na falta total de impressões alheias, o livro ficasse com ausência de alguém com quem ter empatia. É como alguém com quem se possa conversar sobre o que, afinal, quer dizer toda a trajetória do livro. O livro, porém, não oferece sentido pronto. A fuga de K representa também sua discordância daquele que o mantém sob seu jugo, mesmo que supostamente benevolente.

As interpretações do livro, portanto, são várias. O fato de o personagem chamar-se Michael K foi lido como uma aproximação de Kafka, cujos personagens costumam encontrar-se num emaranhado de acontecimentos que não conseguem entender, e do qual não podem desvencilhar-se. É uma possibilidade, pois Michael K tem isso em comum com Joseph K, por exemplo. Outros vêem Michael K como alegoria do próprio escritor: seria abreviação aproximada de John Maxwell Coetzee. A leitura, a meu ver, fica mais rica ao fazer tais aproximações que, provavelmente, não são gratuitas, ao tratar-se de um escritor tão consciente do ofício e professor de literatura, com livros publicados e muito respeitados. Outra interpretação seria a de que o personagem principal seria uma alegoria de todos os negros da África do Sul, sendo o lábio leporino a marca visível de sua posição social, ou mesmo de toda a população devastada pela guerra, que não encontra sentido em meio a uma guerra cuja causa todos já esqueceram. Finalmente, sequer seria preciso localizar a guerra na África do Sul: os campos de concentração, a exploração mútua, a violência generalizada, as precárias condições de vida e a própria banalidade da morte podem ser situadas em qualquer conflito bélico.

A narração do livro também é bastante peculiar. Não é narrador externo, nem participante: trata-se, afinal, de uma mistura entre os dois. É um narrador que transita entre a consciência do protagonista e a terceira pessoa. Isso dá ainda mais margem à divagação. O narrador só é claro durante um breve período do texto, quando o médico assume a narração. Mas esse lapso logo é cortado, para que a narração siga como era inicialmente, até o fim do texto. Essa narrativa permite que o narrador utilize um vocabulário altamente preciso, que dificilmente seria dominado pelo protagonista, e que não faça divagações além do que a inteligência de K seria capaz.

No final, só me senti atordoado. E não soube dizer, afinal, que papel coube a Michael K com base na epígrafe do livro: "War is the father of all and king of all./ Some he shows as gods, others as men./ Some he makes slaves, and others free". Dependendo do ponto de vista, Michael K poderia ser deus ou homem, escravo ou homem livre. Cabe a cada um criar sua própria interpretação.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

De corpo e alma

Costelas espaçadas
Hélix curvada
Amputada enxertada
Será colocada
Prótese mini-texturizada
Jamais será rejeitada
Sua anatomia facilita a cirurgia
Deus te criou para intervenções
Em todas as regiões
À sua imagem e semelhança
Não consigo sair desse corpo
Não te pertence
A alma aprisionada
Merece músculos tonificados
Hoje se quer se parece
Eu pareço melhor que
O próximo me apóia me disse
Agora mais um corte
No meu pós-moderno
Culote.