terça-feira, 29 de julho de 2008

Querida Sara,

No início, quando vi você começar a sair de casa e fazer amigos, ficava muito feliz de vê-la feliz. Era um entra-e-sai de casa, seus amigos vinham buscá-la para sair à noite, e eu estava contente de ver que você aproveitava a vida. A participação no grupo e seus segredos dissimulados em rosto completamente apaixonado faziam sua pele ficar ainda mais bela. Passei gradualmente a ter menos contato com você. Isso era natural, pensava eu, nenhum pai tem acesso real às vidas de seus filhos adolescentes.

Você chegando cada vez mais tarde, eu dormindo cada vez mais cedo. Imaginava que estava correndo tudo bem na faculdade. Não estava mal, de fato. Você sempre elogiava as aulas de publicidade, gostava dos colegas, trazia alguns em casa. Eu divertia-me com as gírias que surgiam a cada segundo em suas bocas, nas refeições em que partilhávamos a mesa. Finalmente, vieram também os namorados. Você tratava-os com altivez, não sei se isso os agradava, mas o fazia a mim, que ficava certo de que você não se arrastaria facilmente aos pés de qualquer homem. Eu tinha tanto orgulho da sua independência, desta sua altivez.

Houve preocupações. Esbarrões nos móveis madrugada afora, ânsias de vômito, despertar no chão da casa, nos chãos de outras casas, reclamações de vizinhos, enquanto eu viajava. Você, popular, o celular sempre vibrando de amigos, tocando solicitações de presença. E você disse sim a todos, irei, claro, não posso perder, já estou lá. Haja festas para você. Nem havia tantas, e você então as levava para nossa casa, amigos bebendo na sacada. Cartão de crédito cada vez mais alto. Eu faço estágio, pai, posso me virar sozinha. E lá foi você, adiante, cada vez mais longe.

Mudou-se de casa.Visitava pouco, nossas conversas sempre terminavam com você chateada comigo, eu chateado com você. Na mesma cidade, não conseguíamos nos ver muito. Confesso que, muito embora eu manifestasse vontade de te ver mais, estava imerso em outras coisas, e (sou obrigado a dizer) nossas discussões diminuíam um pouco esse desejo de vê-la, pois eu sabia que esses encontros não seriam bons. No fundo, eu tinha saudade de você quando criança. Eu deveria ter vergonha de dizer isso, de manifestar verdades cruéis a você.

Eu vi, porém, que você não era mais criança quando seus hábitos passaram a ser mais claros para mim. Você não estava mais no estágio, e nem haveria razão, pois já havia terminado a faculdade. Não obstante, não parecia estar interessada em emprego algum. Continuou vivendo como adolescente, embora com discurso até mais adulto, talvez, do que o meu. Mais inteligente. Sua vida era noite afora. E foi durante a noite que você afetou todo o meu dia, lenta e dolorosamente.

Seus amigos ligavam pedindo que eu fosse buscá-la nos mais diversos lugares. Depois, a polícia pedia que eu fosse buscá-la na delegacia. Soube que você dormira diversas vezes no carro, nas praças, nas ruas, em casas de pessoas que você não conhecia. Nem sempre havia alguém para buscar, amigo ou namorado para levar para casa ou para algum lugar seguro. A verdade é que não era seguro deixar você sozinha. Eu não sabia disso, digo isso agora, depois de tudo. Quando já é tarde demais.

Quando você sumiu por três dias, eu só fui saber muito depois. Ninguém quis colocar-me a par, acho que faltou coragem. Afinal, todos os que souberam da história eram meio culpados. Eu não sabia que minha família estava desmoronando. Para mim, estava tudo normal. Preferi ignorar. Continuava trabalhando, escrevendo meus artigos eventuais nos periódicos, mantendo relações com o pessoal do gabinete, fazendo a política de todo dia. Até que, um dia, minha rotina foi atropelada por notícias suas. Notícias publicadas nos jornais que costumava ler.

Aquela rotina é passado. As notícias foram multiplicando-se, fui varrido pela verdade e pelo moinho de fofocas que se deu depois. Perdi posição, perdi quase todo o meu dinheiro e propriedades duramente conquistados (tendo eu nascido em casa pobre) em pouquíssimo tempo, para pagar as dívidas que eu não soubera que você tinha acumulado. Meu nome agora é lama. O nome de toda a família. E sequer nos entendemos, você e eu, durante tudo aquilo. Sua postura arrogante, sua suposta independência de tudo o que se falava. Finalmente, não havia diálogo nem coisas sobre as quais lamentar. Tudo havia acabado. Eu reafirmava que ainda amava-a, e tantas vezes pedi para você mudar em nome do amor que eu dizia sentir e que não passava de mentira. Não sabia como você podia ter nascido. Olhava para você e via uma conspiração divina, um carma, punição, flagelo de minha existência. E menti, menti, menti, porque precisava sentir-me como pai, apesar de todos os meus sentimentos negarem isso. Eu odiava você, minha filha.

Ontem, porém, quando a vi de novo, algo em mim virou ao avesso. Você não era a sombra do que já tinha sido. Cabelo raspado, parecia caminhar pela casa de pijama há semanas, como sonâmbula, sem assear-se ou comer direito, e sóbria. Todos os amigos afastados, agora que não havia comemoração alguma de que você participasse. Os amigos que, soube, transavam com você (bêbada) quando bem entendiam, já que você pedia e se despia, que se divertiam com você. Seus namorados que não mais existiam porque você os traiu todos, diversas vezes. Alguns bateram em você. Tantos pegaram dinheiro e coisas emprestadas nunca devolvidas. Menina mimada, catalogavam. Estavam certos.

Olhando para você, outro rosto. Bem mais velha. A falta de lágrimas ao tentar explicar que, realmente, não se lembra de praticamente nada do que fez ou sofreu nos últimos cinco anos. Olha fotos, ouve relatos, lê notícias, não se reconhece. Você estava bêbada, doida, sei lá, os dois, você diz. Sequer sabe o que aconteceu. Está sem rumo. Não consegue arrumar emprego, não estudou muito nos últimos tempos, publicidade decaiu muito, você tenta argumentar. A verdade é que você mal compareceu às aulas da faculdade, não precisava para ser aprovada. Resolvi ficar em casa por enquanto, eu te vejo mentindo. A visita é um suplício para você, sequer consegue olhar-me nos olhos. Só para o tapete manchado de coisas várias e indefiníveis. Você não quer que lhe vejam tão frágil, não quer que tenham pena de você. Porque você sabe que você não merece pena de ninguém. Você não se preocupou, não teve consideração com absolutamente ninguém durante todo esse tempo. Vivia exclusivamente para você e paa ninguém mais. Você não merece pena nem do seu pai. Ainda mais do seu pai, de quem você arruinou a vida. Você sabe que metade dos meus cabelos brancos, das minhas rugas, dos meus olhos cansados, veio de preocupações causadas por você. Você tem vergonha.

Quanto a mim, voltei à condição de criança sem que haja tempo de construir novamente minha identidade. Sua mãe morreu tragicamente, ignorada, enquanto eu trabalhava. Só fui suspender tudo nos últimos dias, para vê-la emagrecer e adquirir manchas na pele. Você, nem isso. Perdi, sem sequer ter consciência, egoisticamente, a única pessoa que me amou de verdade. Dos amigos, sobraram tão poucos. Vagueio pela cidade sem rumo, como alma penada. Não imaginava que minha velhice seria assim. Eu tinha pena de mim mesmo. Um rancor imenso do mundo e, particularmente, de você.

E algo aconteceu desde ontem. Você não tinha esperança de mais nada. Sentia um ódio mortal de si mesma. O seu rancor não era do mundo ou de ninguém, era de você mesma. Você considerava-se desgraçada. Derrotada. E ainda tão jovem, tão jovem. Minha dor adquiriu novas tonalidades, ontem. Eu não tenho condições de assistir ao espetáculo com indiferença. Você desmoronou.

E tudo o que eu havia recusado sentir por você veio, tão inesperadamente. Você ainda tem tempo, minha filha, pode recuperar tudo. Eu sinto que suas provações têm um propósito, e este propósito é bom. Eu quero fazer você ter vontade de colocar uma roupa bonita e sair de casa. Eu quero fazer você ter vontade de amar os outros, de ter uma vida da qual você se orgulhe. Eu sei que isso ainda é possível, para você. Pensa mais um pouco, filha, e veja que não há porque se esconder o resto da vida. As pessoas esquecem, você também pode esquecer. Um dia, isso tudo parecerá só um sonho ruim. Você ainda é tão bela, mesmo com toda a sua tristeza, com toda a sua fragilidade. Você terá sua redenção, e ela virá sub-repticiamente, em pequenos momentos. Basta você recuperar a vontade de viver. Meu rancor de você transformou-se em esperança. Você, filha, é minha esperança de tempos melhores.

Eu nunca soube ou quis ser um bom pai. Eu reconheço que também fui egoísta e que, não fosse eu, as coisas poderiam ser bem diferentes. Eu sei que você não quer ouvir isso, sei que você não concorda. Mas eu também sei, agora, que eu amo você. Eu que pensava que, em minha velhice, isso já não era possível. Você não está sozinha, minha filha. Não enquanto eu estiver vivo. Eu prometo: você ainda há de ser feliz.

Do seu

M.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Interpretação do toque

Eu imaginava que estava fazendo carinho. Não era carinho, ela disse, você aproveitava da minha carência, destruiu-me emocionalmente, tornou-me dependente de você. Mas eu era, eu respondi, eu era dependente de você. Você não era, como todo homem, aliás, eu a vi dizendo. Você nos violenta, com seus falsos atos de carinho e amor, para continuar a viver do mesmo jeito, para depois abandonar-nos, mesmo mantendo tudo aparentemente como estava. Eu fiquei sozinha, solitária. Sozinha, esperando que você viesse tocar-me para recompensar toda essa solidão, longe de tudo e de todos, com exceção de você. Depois, derretia-me com sua violência, com esse seu falso afago que me prendia, que me impedia de seguir minha vida, enquanto você seguia o curso da sua, como se eu não existisse. Anos sendo violada e sem acesso a qualquer coisa sua. Foram esses carinhos eventuais que me fizeram transformar você no centro de minha vida, enquanto eu permaneci na sombra, em algum canto obscuro da sua vida.

Percebi, a partir daquele momento, duas possibilidades de toque: carinho e violência. Concluí, ainda, que o toque, o tocar alguém, pode ser as duas coisas, simultaneamente. Depende do ponto de vista, da pessoa, do momento em que se pensa sobre isso. Todo toque é diálogo, pois envolve dois corpos. O toque é ambíguo, portanto. A violência é, eventualmente, carinhosa, um ato de amor tresloucado. O carinho pode ser o pior ato de violência.