terça-feira, 22 de junho de 2010

Joaquim não conseguia andar

A mãe de Joaquim já havia tentado de tudo, mas era sempre a mesma coisa. Logo que ele começava a caminhar, desprendia-se do chão e começava a voar. Joaquim, vem pro chão agora. Mamãe está te chamando, Joaquim. Joaquim, por favor. Joaquim, vem cá. As outras mães estavam cada vez mais preocupadas. Duas crianças do prédio já haviam tentado voar como Joaquim. Os vizinhos estavam alarmados. Para segurança de todos, foram instaladas grades em todas as janelas. Não havia como continuar assim. Porém, era só o menino descer para aprender a andar que sempre acontecia o mesma coisa: ele flutuava até a altura dos ramos mais altos das árvores e iniciava diálogos musicais com os passarinhos.

Falar era outro problema. Joaquim tinha, naquela altura, um vocabulário bastante extenso, muito mais vasto do que o das crianças de sua idade. Mas não conseguia falar “eu”. Não entendia seu significado, não conseguia separar entidades. Para ele, parecia que mãe, carrinho, pai, pássaro, árvore, chocalho, assovio, carinho e tudo mais era “nós”. Ele dizia coisas como “nós vamos comer para ter fome”. Era tanta frase contraditória que dava medo. Joaquim, por favor, vem cá. Ele vinha, sempre sorrindo. E voando, claro. “Nós entremeamos, mamãe”. Era tanta palavra difícil, a mãe estava aflita com Joaquim conjugando perfeitamente verbos complicados e não sabendo falar “eu”.

Os vizinhos pensaram em fazer um abaixo-assinado para expulsar Joaquim do condomínio. Contudo, nem havia o que argumentar. Voar não fazia barulho em horários inapropriados. Tampouco havia pagamentos em atraso. Os pais de Joaquim, para complicar, eram uma simpatia só. Eram tão solícitos que ninguém tinha coragem de iniciar uma moção contra a família. E mesmo o menino nunca parava de rir. Os moradores dos andares de cima podiam ouvir até melhor a gargalhada dele do que os que os que viviam mais próximos do chão. Outro problema é que ele costumava apanhar coisas pelo caminho até o alto. Não faz muito tempo, havia entregado um pedaço de nuvem para o pai, coisa que ninguém podia explicar.

Joaquim também não tinha sentidos como as outras pessoas. Ele via música, ouvia carinho, sentia o gosto do amarelo (cor, aliás, que achava meio amarga), cheirava coisas ásperas. Odiava ser encostado pelo dó sustenido, mas depois acabou aprendendo a gostar. Percebia que o dó sustenido era roxo, e ele tinha um pouco de medo daquela cor. Com o tempo, porém, Joaquim foi se acostumando e parando de ter medo das coisas (se é que ele entendia as coisas separadamente, coisa de que todos duvidavam). Joaquim era um menino realmente diferente. Ele gostava de enrolodilhar os dedos em seus cabelos louros por causa da melodia. Joaquim falava línguas que ninguém era capaz de compreender.

Então, resolveram mandar Joaquim para diversos médicos, psicólogos e estudiosos. Começaram a conjecturar que o problema do menino era que ele ainda não conseguira diferenciar-se do resto do mundo. Afinal, ele achava que tudo era “nós”. Era tipo assim: se tudo era “nós”, tudo era uma coisa só e uma coisa bem diferente, que é muita coisa ao mesmo tempo, e aí tudo se confundia demais. Joaquim não tinha desenvolvido  na cabeça o “eu”, ao contrário dos outros meninos, para quem tudo era “eu”. E começaram a tratá-lo.

No começo, Joaquim não entendeu. Com muita insistência, deixou de sorrir por alguns minutos pela primeira vez. Não gostava daquilo. Ficou sério. Com muita, muita, mas muita insistência, passou a falar dele mesmo na terceira pessoa: Joaquim gosta de jogar bola, Joaquim come jabuticaba. Pouco a pouco, conseguiram fazê-lo falar o que queriam. Joaquim passou a conjugar verbos, mas sempre na terceira pessoa. E às vezes regredia para a primeira pessoa do plural. Ninguém entendia aquela resistência enorme do menino. Falavam que Joaquim era ele, Joaquim era ele, Joaquim era ele. E Joaquim dizia “ele”, mas eles não aceitavam. Ele ficou ainda mais confuso. Depois, passaram a dizer que Joaquim era eu, que Joaquim era eu, que Joaquim era eu.

Foi realmente uma luta.

Finalmente, um certo dia, Joaquim disse “eu”, e nunca mais conseguiu voar, para alívio de todos os vizinhos, os médicos e as professoras de sua escolinha.
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sexta-feira, 18 de junho de 2010

Primeira entrada em um diário sem assinatura (e também a única: o diário jamais foi continuado)

Foi o frio talvez que me deu a idéia de começar a escrever tudo o que penso, diariamente se possível. No frio, as coisas ficam sempre mais claras. Este sol a pino acompanhado pelo vento frio desta cidade eternamente aberta ao horizonte, essas formas limpas e monótonas, esta sensação de solidão que o estar encoberto de roupas sempre traz, tudo isto parece me obrigar a escrever algo para que eu possa, quem sabe, entender depois. Porque eu nunca entendi o que escrevo. Passa um dia, passa outro, não consigo entender o que cada um deles quer dizer, nem o que o conjunto de todos significa. É tudo simples ou complicado demais para compreender (porque eu acho que a mente humana acredita tanto na profundidade que não consegue entender o que é banal, porque ela não quer aceitar a banalidade).

Está frio e no frio tomo café.

É preciso contar o meu dia. Bem, vamos recordar o meu dia: acordei, tomei café, pensei besteiras, andei no parque rumo ao trabalho, trabalhei (não aconteceu nada de mais, além de um comentário maldoso sobre alguns colegas, que achei desnecessário), encontrei João e Maria para tomar um vinho e comer algo, voltei para casa, assisti a um filme e agora estou escrevendo esse diário antes de desmaiar de vez na cama. Ah, essa cama já foi dividida e agora não é mais. Os filhos já cresceram, não ligam mais. Esse diário é uma receita para adiar a morte.

Este frio está me fazendo mal. E do nada me ocorre de escrever um diário? E eu sou lá Anne Frank? E estou lá à beira da morte? Eu preciso fugir do frio, é isso. Viver. Tomar decisões como nunca mais escrever.