sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Coesão 2


Antes, lamentava por não ter dinheiro para comprar todos os livros que lia. Hoje, lamento por saber que compro mais livros do que tenho tempo para ler.

Antes, achava que a arte viria com a maturidade. Hoje, acho que o ímpeto se perdeu em algum momento de minha juventude.

No mundo das redes sociais, todos os homens exibem a felicidade, a força, a sabedoria, a beleza, a coragem, a atitude “cool” que têm diante do mundo. Até mesmo a intolerância é controlada, pois é preciso que o ódio seja ainda capaz de receber alguns apoios. A tristeza, a fragilidade, a ignorância, a feiúra, a hesitação, a vergonha, a caretice quase não existem lá. Quem dera as pessoas fossem de verdade como são no facebook!

Os parques das cidades estão abarrotados de pessoas pregadas em celulares e tabletes eletrônicos. Muitas tiram fotos e enviam notícias de sua diversão em tempo real. É preciso urgentemente levar essas pessoas para passear.

Vive-se uma ditadura da juventude. Nunca foi tão reiterada a afirmação sobre as vantagens de ser “jovem”. Nunca se falou tanto da necessidade de sempre estar em atividade, de “nunca parar”, “nunca desistir”. Nunca as indústrias de dieta, moda e cosméticos faturaram tanto. Nunca se ignorou tanto os mais velhos. Nunca a história foi tão ignorada e o presente, tão eterno. Nunca se meditou tão pouco sobre as fases da vida. Nunca se utilizaram tanto as palavras “frescor” e “novidade”, e suas contrapartes “ultrapassado” e “obsoleto”. Nunca se falou ou se refletiu tão pouco sobre a morte, não a morte dos outros (sempre tão comentada), mas a morte em si. 

Acordei de mal de mim. De novo.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O homem da calçada

Um homem está parado na calçada, em pé, contemplando o vazio com uma expressão de desespero. Taciturno, tem o olhar perdido em direção a um ponto muito distante e inexistente.

Ao seu redor, inúmeras pessoas andam apressadamente em múltiplas direções. Alguns trombam com ele, que parece não ver e não sentir absolutamente nada.

Ele espera.

No meio do turbilhão, subitamente surge uma mulher que o fita demoradamente... e para. Para a quatro passos de distância dele.

Ele a vê.

Os dois permanecem assim, encarando-se por alguns minutos, que mais parecem horas, em meio à multidão e seu movimento incessante: entre gravatas, tailleurs, cachorros, jóias, carrinhos de bebê, bicicletas, pombos, luvas, maquiagens, sorvetes, jornais.

Ele se volta para ela.

Ela dá um passo à frente.

Ele dá um passo à frente.

Ela dá outro passo.

Ele, um mais.

Os dois agora estão com os narizes quase encostados, sondando-se fixamente.

Ambos encostam a fronte no ombro um do outro, fecham os olhos e se abraçam. Forte. Cada vez mais forte.

À medida que o abraço torna-se mais apertado e mais cúmplice, o som dos veículos, dos passos rápidos dos pedestres, do ritmo alucinante dos anúncios, das conversas, do vento, de tudo o que desnorteia na rua, enfim, vai diminuindo lentamente, cessando, até transformar-se em silêncio absoluto.

O movimento, em contraste, acelera-se. Os corpos dos dois são empurrados inadvertidamente pela multidão interminável da rua, que finalmente os faz espatifar no cimento da calçada.

Caídos no chão, ainda abraçados, protegem um ao outro. Os transeuntes pisam em seus pés, pernas, costelas, braços, cabelos, tropeçam em suas costas, em suas cabeças. Passam por cima da água entre os espaços dos ladrilhos.

Os dois conseguem, por fim, levantar-se.

Entreolham-se novamente, um frente ao outro, com ambas as mãos dadas.

Sorriem-se.

Um sujeito passa entre os dois e os obriga a soltar-se as mãos.

Ambos contemplam-se novamente, observam suas roupas sujas e amarrotadas, depois verificam a calçada onde estavam há pouco estirados.

O barulho da cidade, agora, é ensurdecedor.

Ela, então, deixa de sorrir, começa a ponderar algo e adquire uma feição séria. Ajeita o vestido e limpa a maquiagem borrada.

Ele a mira com olhar mendigo.

Ela responde: “eu não posso”.

Ele tenta encostar novamente sua mão na dela.

Ela repete: “eu não posso”.

Ele tenta abraçá-la.

Ela repele: “eu não posso”.

Ele volta os olhos à calçada.

Ela mira-o por um tempo, dá-lhe um beijo apressado na fronte e... some na multidão.

O homem fica parado na calçada, em pé, contemplando o vazio com uma expressão de desespero.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Início, meio e fim


H. está no meio de um parque olhando as pessoas tomando sol. Sentado em um banco, entre crianças brincando com babás e casais namorando, começa a escrever em seu caderno azul cheio de rabiscos que carrega dentro da mochila surrada e suja de terra:

“Minhas histórias não começam no meio, ou no fim, ou no início. Minhas histórias, ao contrário do que me ensinaram na escola, não têm início, meio e fim. Em outras palavras, não são histórias no sentido literal. A vida é cheia de histórias, mas nenhuma delas tem início, meio e fim, no sentido literal, porque o início, o meio e o fim sempre poderiam ser alterados. As histórias, os casos, os fatos, todos possuem um contexto que os circunda, ou seja, que poderiam ter começado antes ou terminado depois. E isso muda seu sentido. Por isso, cada um entende ou dá sentido às histórias da maneira que têm capacidade ou vontade para fazê-lo. As minhas, afinal, parecem sempre ter começado depois e terminado antes. Alguma mistura de preguiça, uma mania de episódios, de falas que chamam a atenção ou que ficam na minha cabeça e que as ditam. Isso pode ter a ver, quem sabe, com a minha história, que não sei qual é e que, por isso, não tem fim nem começo, pé nem cabeça.

As histórias estão na rua. Eu, que prefiro o papel, gosto mesmo de palavras, preto no branco, garranchos em cadernos, especialmente aqueles escritos às pressas ou fruto da imaginação de alguém que não sabe o que começou a escrever enquanto não termina. O fim é nada mais que o ponto em que alguém resolve parar de escrever, e isso é absolutamente aleatório. Como a morte. Como a vida. Começa do nada, termina assim sem mais nem menos. No meio, tentamos entender algo, o fio da meada, aquilo que mantém o leitor ali, desesperado para conhecer. Não há fio da meada, há somente a criação. Toda história é movida por algo mais fundo, que circunda o que se entenderá e o que não se poderá compreender. No fundo, bem no fundo, só há o desejo. O desejo que move a vida, que move a escrita, que move a leitura. E eu não sei exatamente o que eu desejo. Eu procuro. Eu procuro, somente. O quê?”.

Vem chegando V., um amigo, com seus cachecóis de sempre mesmo diante do sol. Seu estilo que tanto atrai a atenção, inclusive a de seus próximos. Abraço de amigos que se veem sempre.

- O dia está bonito.
- Queria te contar uma coisa. Uma coisa importante.
- Claro. Diga.
- De vez em quando eu fico pensando...
- Por favor, não venha com depressões hoje. Você pensando sempre dá em besteira! Eu, por exemplo, nunca vou querer ler nada do que você fica escrevendo aí nesse caderno. Não deve haver nada de aproveitável.
- Minha tese. Está me deixando maluco. Fico o dia todo em casa, lendo, escrevendo, não sei onde vai chegar. Acho que não vou conseguir terminar.
- Fica tranquilo, todo mundo que escreve tem essa mesma ideia, mas no final sempre dá certo.
- Não, o problema não é esse. Eu leio algo, e imediatamente depois esqueço o que li. Parece que não consigo me concentrar. Daí, digamos, eu consigo escrever, mas logo depois penso que talvez o que eu escreva não seja o que eu quero para mim, vou ficar preso nisso, numa tese que eu não sei se é verdadeira, por mais que eu consiga, quem sabe, defendê-la bem, e que depois vai me prender não só pela tese defendida como também pelo assunto que ela toca. É aterrorizador. Isso vai acabar definindo minha vida toda. Não sei se estou pronto para isso. Nunca consegui me prender a nada.
- Calma. Se você não quiser mais trabalhar com isso algum dia, você muda. Ninguém está preso a nada. O importante, agora, é terminar. Não fique pensando demais a longo prazo, porque aí não termina nada. Depois, ao menos, você consegue um emprego e consegue trabalhar na área.
- Aí é que está, “na área”. Sei lá se quero trabalhar nesta área!
- Você nunca trabalhou nessa área ou em área alguma e já está com medo? Você também gosta de complicar as coisas. Vou te arrumar um emprego lá no meu escritório como contínuo, e te garanto que você sempre vai mudar de área. Geográfica, topográfica, pelo menos. Nunca vai ficar na sua cadeira. Seu sonho realizado, mudar sempre de cadeira. Não na faculdade, mas na empresa, ao menos. Nenhum compromisso fixo, nenhum pensamento a longo prazo.
- Tudo seu é na brincadeira.
- Pois é exatamente por isso que sou seu melhor amigo. Sou o cara que te livra da sua própria loucura e dos seus problemas imaginários.
- É, isso é verdade. Eu sozinho consigo pensar na mesma coisa por dias a fio.
- Isso porque você acabou de dizer que não consegue se concentrar em nada por muito tempo.
- Só consigo me concentrar nisso, ou seja, na minha falta de concentração. Você entendeu o que eu quero dizer.
- Entender? Eu não entendo ninguém. Mas sempre respondo o que me perguntam.

Chega I., a namorada de V.

- Ois!

Beijo no rosto de H., beijo na boca de V.

- Soube de uma festa legal na casa de M.
- Vamos lá!
- Se eu for, não vou conseguir trabalhar mais hoje nem amanhã, por causa da ressaca.
- Pô, bebe menos que você consegue. Vai te ajudar a sair das suas paranoias e render mais amanhã.
- Vou ficar em casa.
- Você sempre com esse papo, né. Desde que fui apresentada a você, vi que essa sua barba malfeita era mais um indício de uma eterna dúvida interior do que de um estilo. Sempre aí, no meio termo, sem saber se se barbeia sempre ou se deixa crescer de vez. Vamos lá, dessa vez.
- Melhor não.
- Vamos tomar um café, então, que tal?
- Tá bem.
- Ótimo. Vamos lá.

Sentados no café na esquina do parque. Pedem três cafés para uma garçonete com cara de cansaço, mas muito simpática. V., então, declara:

- Enquanto o café não chega, vou ao banheiro. Me dá um beijo que eu vou sentir saudades.

Dá beijo em I, e sai.


- Eu tenho mais saudades de você, te vejo tão pouco.
- Como pode ser que eu goste tanto de você e dele?
- Somos iguais. É uma forma de amor torta que nos une assim.
- O amor deveria ser sincero, aberto, transparente.
- Há milhões de tipos de amor, e a nossa forma de amor é mais uma mistura confusa e inclassificável, mas que não deixa de ser amor. É uma pena e uma bênção que a vida seja maior e mais complicada do que as suas e as minhas ideias sobre ela.
- Eu não sei o que fazer.
- Simples. Não faça nada.

Pés se encostando embaixo da mesa. Pés depois distantes. O café tomado, as risadas, a sensação de contentamento, de estar à vontade.

Mais tarde, no mesmo caderno azul, com a mesma letra apressada:

“Não contei nada do que queria contar. O assunto muda e eu próprio não tenho coragem. E eu só queria perguntar se era errado dar um tempo. Viajar. Sumir para sempre (um pouco). Esperar o tempo passar para ventar em cima de tudo e, quando eu olhar de novo, estar diferente. Senão o mundo, ao menos eu. Nem isso consigo dizer. Preciso me afastar, pensar, pensar, longe de tudo. Ganhar perspectiva. É sempre isto, tudo parece  in-co-mu-ni-cá-vel”.

H. para de escrever e vai tomar banho para ir à festa com V. e I. Conversam, dançam e voltam de manhã para casa. Muitas gargalhadas. H. bebe demais, tem uma ressaca de querer se esconder num quarto escuro. Naquele domingo chuvoso, toma mil cafés, fuma um maço de cigarros e pensa que tem que mudar sua vida.

Na segunda-feira, acorda bem disposto e pensa que está atrasado em todos os prazos possíveis e imagináveis já estabelecidos para terminar sua tese. Passa o dia escrevendo alucinada e concentradamente na biblioteca da universidade, com breves pausas na lanchonete, onde encontra alguns colegas da turma de doutorado. O que havia passado nos dias anteriores era como um filme mudo antigo, com os letreiros passando depois do "the end". 

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Descolorido

Baby, I’m blue.
Do que você tá falando, meu amor?
Blue, blue, blue.
Realmente, algumas vezes fico mesmo azul. De raiva de você. Mas aqui as ruas não são azuis, são todas meio pasteis.
Oh, baby, I’m so blue.
Sabe, meu amor, algumas vezes essa sua tristeza me cansa. Desde que saímos de férias você está sempre com essa cara amarrada.
These are dark years, baby.
É, tudo bem, são mesmo. Desde que me casei com você, tem sido sempre assim.
Everything is pretty much the same as it has always been.
Essa sua inteligência sempre em exibição, essa sua mania de falar comigo na língua do país em que estamos ou então em inglês, tudo isso meio que cansa, sabe.
No sé qué pasa, no sé quién soy.
Nem eu mesmo sei mais, você me confundiu. Mas agora estou pensando melhor.
Let’s mourn.
Sim, você é morno.
No, let’s cry.
Claro. Enquanto você faz mais do mesmo, eu vou ali entrar naquele lugar chamado “La vie en rose”. Sem você.

domingo, 26 de junho de 2011

Circuito fechado



Desejava-a como coisa fora do comum e difícil, por ela ser nobre,
por ela ser rica, por ela ser devota - imaginando que devia ter
delicadezas de sentimento, raras como as suas rendas, amuletos ao
pescoço e pudores na depravação.
 (Gustave Flaubert - A educação sentimental)



Uma sala. Na entrada dela, uma placa com a sigla CFTV. Após o umbral, um conjunto de televisões coloridas de última geração em tela plana, cada uma mostrando um ponto diferente do interior do imóvel. Esta sala encontra-se desabitada neste momento e ninguém percebe o que se pode descobrir de uma casa e de seus proprietários a partir daquele cômodo. Os monitores acompanham cada detalhe do terreno.

Um lar daqueles de revistas (é possível conferir algumas fotos na edição de agosto da “Design de Interiores” e, muito em breve, em outras publicações).

O estilo da casa de Claudia Cavalcanti é visível logo na porta, defronte a qual se vê um par de quadros icônicos do modernismo brasileiro, assinados por Burle Marx (com formatos harmônicos nas cores preto e branco, similares aos famosos jardins de tantos lugares no Rio de Janeiro e próximos a alguns prédios públicos de Brasília). Os quadros estão em uma parede perante a qual também se nota um peculiar anteparo com fotografias da família (todas em preto e branco, similares aos quadros pendurados logo acima).  O aparador foi herança da avó, um móvel em jacarandá que constava do palácio da família (que deu lugar a um edifício residencial), em estilo bastante em voga no período do Segundo Império.

Passando-se à sala de estar, a pequena área do vestíbulo (cuja sensação de intimidade faz entender porque a ele coube abrigar objetos caros à história da família) é substituída pela amplidão do enorme cômodo, com proporcionalmente poucos móveis, sobre tapetes persas e entre paredes ricas em pinturas.  Há uma fotografia antiga de uma fazenda, uma paisagem típica em Pernambuco, onde posam crianças e, ao fundo, um negro com torso forte e pele brilhante, carregando uma peça de moinho. Do lado, uma cena familiar de Portinari ao ar livre, como que complementando o ambiente histórico. Na parede oposta a ela, uma paisagem de Di Cavalcanti.

A residência é uma aula de história e geografia do Brasil. A Amazônia está ali, representada pela poltrona aguapé dos irmãos Campana, defronte à mesa Tulip de Saarinen, que acabou adquirindo um tom mais brasileiro. O piso é todo em madeira de lei, o que faz com que a diversidade dos espaços na sala seja dada pelos diferentes tons das paredes, entremeadas por enormes janelas e saídas para o terraço que dá para o jardim.

O ambiente externo conta com um projeto de paisagismo, assinado por um famoso arquiteto e que incluiu uma grande área gramada com diversas espécies de flores e plantas ornamentais.  Há, em vários pontos, conjuntos de cadeiras de madeira, especialmente perto da piscina e da área de lazer. Ao redor, um muro de três metros de altura, coberto de trepadeiras.

Uma pessoa que viajou tanto quanto Claudia não poderia deixar de possuir móveis como o sofá em couro de três lugares de autoria de Le Corbusier (seu pai, aliás, formou-se em engenharia em Paris), que forma um ambiente com uma cadeira Barcelona de Mies van der Rohe (ela, aliás, formou-se em design em Chicago), ao lado de uma escultura de Bruno Giorgi (seu avô, aliás, formou-se em medicina no Rio de Janeiro), logo abaixo de um quadro de José Malhoa (seu bisavô, aliás, político influente outrora, formou-se em direito em Coimbra) e de uma gravura de Oscar Niemeyer (dizem que o corpo de seu irmão desaparecido, aliás, foi devorado lentamente pelas águas da Guanabara).

A intimidade do casal pode ser observada nesta tarde de quinta-feira por meio da câmera instalada atrás do espelho do quarto de Claudia (que acabou de chegar de um congresso internacional de design em Milão) e do marido (que está participando de uma reunião sobre responsabilidade social em Dubai). O amplo cômodo é povoado somente por uma cama queen size e por dois criados-mudos em forma de baús, por cima dos quais há luminárias Miss Sissi e algumas publicações de arte, de auto-ajuda e de administração (sem quaisquer sinais de terem sido folheados). Os livros provavelmente foram retirados (ou não) das grandes estantes do escritório do outro lado da casa, que possuem livros raros de Nabuco e de Machado de Assis, bem como os últimos lançamentos de Chico Buarque e Pierre Bourdieu, de Gloria Kalil e Norbert Elias, do Dalai Lama e de Roberto Shinyashiki.

Não é possível elencar todas as roupas de estilistas dentro do closet.

Claudia está tomando uma ducha. Sua pele alvíssima, seus novos seios redondos e suas sessões de masturbação podem ser vistos em um monitor instalado dentro do armário da sala CFTV, que capta as imagens de uma micro-câmera instalada atrás de um dos espelhos laterais do banheiro (sem o conhecimento dos proprietários). Claudia está cansada e com os olhos inchados, acabou de passar trinta minutos sentada embaixo do chuveiro. Em cima da bancada negra de granito, um jornal aberto com a notícia do noivado de um conhecido publicitário. Aquele dos antigos boatos, que foram imediatamente desmentidos por Claudia, sobre uma suposta amizade íntima demais. O distanciamento foi natural, ela não poderia dar margem a comentários. Os rumores sobre os dois logo sumiram para dar espaço a outros rumores sobre outras celebridades.

No monitor da cozinha, as cinco empregadas domésticas retiram seus uniformes para ir embora, a pedido da própria Claudia, que as dispensou do restante da carga horária diária. O caseiro podia ser visto dando o recado, embora não fosse possível ver exatamente o que era conversado. O coq au vin, encomendado para aquela noite, era agora jogado no lixo.

O caseiro é o maior ocupante da sala de circuito fechado de televisão. Possui a confiança do casal. É filho de uma senhora que passou praticamente toda a vida a serviço dos Cavalcanti. O caseiro, único ocupante de um pequeno anexo da casa, já teve noites insones pensando no corpo de Claudia e muitas outras noites sonhando ser o marido de Claudia, que lhe daria atenção e não admitiria quaisquer boatos sobre a fidelidade de sua mulher. As câmeras nos lugares mais recônditos da casa foram instaladas por ele, para que pudesse assisti-la, a ela, sempre. O caseiro, posteriormente, passou a odiar Claudia (que lhe dava beijos na infância, pedidos na juventude e ordens após seu casamento e a morte de seu pai), passou a detestar seu patrão e toda a família. Seu salário tinha deduções pela moradia que o confundiam. A sala do CFTV passou, então, a ser sede de reuniões com dois amigos, que não deixaram de perceber que havia um revólver calibre 38 dentro de uma caixa na parte superior do closet.

A imagem do caseiro vai passando agora por vários monitores: o da cozinha, passando pelo da sala de estar, do vestíbulo, dos bambus, até sumir em direção à própria sala com os monitores (não há câmeras dentro deste aposento). Ele dá uma olhada em cada um deles, observa por um tempo. Parece hipnotizado, por alguns instantes, pela tela instalada dentro do armário, em que Claudia aparece passando hidratante nos cabelos, ainda nua, ainda de olhos vermelhos. Observa em seguida que seus dois conhecidos aparecem no monitor da sala de estar, caminhando em direção ao quarto do casal. Ele, então, desliga todos os monitores, apaga o último minuto das gravações e retira-se daquela sala, novamente em direção ao interior da casa. 

quarta-feira, 30 de março de 2011

Para nunca completar

À Pilar da minha vida.
Escrever devaneios. Ver notícia boa no jornal. Caminhar na praia. Dirigir na estrada. Sentir o cheiro de mato depois da chuva. Ouvir música bonita no escuro. Chorar no cinema com medo de alguém perceber. Ler um poema maravilhoso pela primeira vez. Lembrar de um sonho bom. Dormir muito cansado. Dormir na beira da praia. Ventinho bem fresco no calor. Mergulhar e boiar nas águas do mar. Ter aquele breve, aquele brevíssimo momento em que se tem a sensação de plenitude. Dar e ganhar presentes. Casa nova. Água e tudo que tem a ver com água (bebê-la, afundar nela). Dançar como se ninguém estivesse assistindo, ou pular enlouquecidamente por não saber dançar. Não levar absolutamente nada (muito menos eu mesmo) a sério. Subir em árvores. Deitar no colo de alguém querido. Receber carinho. Sorrir do nada ao lembrar uma coisa boa que aconteceu em tempos imemorais. Passear e pensar na vida. Jogar sinuca e boliche. Suar muito depois de praticar algum esporte. Correr. Nadar. Andar de bicicleta. Comer com muita fome. Qualquer comida que chegue e deixe com água na boca. Comida caseira (ainda mais a comida da mamãe ou da vovó). Ir a bistrôs e trattorias. Explorar padarias. Bruschettas. Azeite, manteiga, manjericão, pimenta, curry. Tomate cereja. Penne, fetuccine, pizza e lasanha. Filé mignon alto e ao ponto francês (ou argentino). Estrogonofe. Feijoada. Guacamole. Comer frutos do mar na beira da praia. Madeleines e financiers. Torta de chocolate. Sorvetes da Haagen Dazs (especialmente o de cheesecake de morango). Chocolates suíços e belgas. Baklava. Alfajor. Bolo saindo do forno. Frutas como amora, morango, manga, goiaba, siriguela. Salada de frutas. Banana com canela e chocolate, banana frita com açúcar, banana. Limonada suíça, suco de laranja, de acerola e de manga. Vinhos espanhóis, chilenos, australianos, sul-africanos, espanhóis, italianos. Cerveja, principalmente Heineken e Paulaner. Café espresso quentinho (especialmente pela manhã, quando faz um friozinho, e com um cigarro). Pão de queijo quentinho e fresquinho. A mulher, meu deus, a mulher. A mulher e a alma feminina e tudo o que ela mostra e o que ela oculta. E, no capítulo do corpo feminino, os lábios carnudos, os olhos com cílios longos, os seios, as pernas, a barriga, a bunda, os pelos, o nariz, o umbigo, os ossos do quadril proeminentes. Estar apaixonado. Sentir o olor do campo. Aromas cítricos e amadeirados. Chance, da Chanel. Acqua de Giò feminino. 212. Cheiro de solventes e inalantes (já me vi tantas vezes cheirando cola pelas rodoviárias). Cheiro de bebê. Assistir a aulas que dão vontade de sair correndo para começar a ler 50 livros antes da próxima. Matar aulas. Terminar o dia de trabalho com a sensação do dever cumprido. Ter um dia bom no trabalho. Matar um dia de trabalho. Retirar nacos de gelo do congelador de geladeiras antigas daquelas que precisavam ser descongeladas sempre. Cortar um item de uma lista de coisas a fazer. Cortar o cabelo. Andar pelado pela casa. Deparar-me comigo mesmo no espelho e constatar que está tudo muito bem. “Sejam bem vindos ao voo...”. “No fígado está tudo bem”. “É benigno”. “Exatamente o que eu pensei”. “Vou gozar de novo”. “...”. Ler tirinhas do Calvin e Hobbes, da Mafalda, do Laerte, do Angeli. Humor negro. Piadas de português e de advogados. Mapas de cidades. Cortinas de linho cru. Tênis Converse All Star. Capas de livro e livros bonitos. Cartazes antigos. Álbuns de fotografias. Dicionários. A textura do veludo, do algodão, da seda. A sensação de deitar em um colchão macio. A arte e as artes. Tentar tocar violão. Cantar, cantar (e desafinar, claro). Ouvir românticos em música erudita (para horror dos que entendem de música muito mais do que eu). Piano e violino. Carmem, de Bizet. Ir a um show da banda de rock que não canso de ouvir naquele exato momento. Ouvir Beatles. Festas com música boa. Restaurantes com música boa. Músicos de rua. Roda de samba. Bossa nova. Chico Buarque. A geração de 1960 da MPB. Ouvir discos antigos de Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Cartola. Cinema, sempre, quase como a satisfação de uma necessidade física. Filmes em preto e branco. Filmes do Kubrick, do Bergman, do Woody Allen. Jean Seberg, Anouk Aimée, Ingrid Bergman, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, Elizabeth Taylor, Audrey Hepburn, Isabelle Huppert, Meryl Streep, Juliette Binoche, Irène Jacob, Jodie Foster, Julianne Moore, Naomi Watts, Natalie Portman... e esta ciência de que muitas outras virão. Lembrança daqueles dias em que o cinema salva minha vida, como no dia em que entrei triste e sozinho na sessão noturna para assistir “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain” e saí da sala outra pessoa. MOMA, Guggenheim, Museu d’Orsay, National Portrait Gallery, Prado, Hirshhorn. Pinturas de Picasso, Maggritte, Monet, Van Gogh, Rothko. Todas as pinturas do Chagall, especialmente aquelas com pessoas voando. As fotografias do Cartier-Bresson, os livros de fotografia do Sebastião Salgado. Ler a orelha do livro que vou começar a ler. Terminar o livro que estou lendo (e, então, assinar meu nome, colocar a cidade onde estou, a data e a hora exata). Ler na cama. Ler em cafés. Ler em bibliotecas. Ler, simplesmente. Romances do Dostoiévski, do Guimarães Rosa, do García Marquez, do Proust, Thomas Mann, Kafka, Coetzee, Paul Auster, Clarice Lispector. Contos do Tchekov, do Rubem Braga e do Luis Fernando Veríssimo. Machado de Assis, este monstro que nasceu bem aqui. Romances de formação. Um poema que faz chorar. Ler, ler de novo, reler de novo (infinitamente) poemas do Fernando Pessoa e do Carlos Drummond de Andrade (na cama, em cima do tapete, no sofá, na cozinha, no mato e na praia). T. S. Eliot e Vinicius de Moraes. Tragédias gregas. Cartas a jovens escritores. Os escritores russos do século XIX. Freud, Nietzsche, Sartre. Filosofia e psicanálise e história e política. Tentar decifrar alfabetos desconhecidos. Aprender uma língua nova. Ouvir e falar francês. Palavras e frases intraduzíveis para outra língua. Rir de palavras e frases em espanhol, principalmente quando eu tento falar. Tantas palavras, como inefável, nuvem, invisível, amorosamente. Outras engraçadas, como otorrinolaringologista, tatibitate, tucupi, quiproquó. Viajar com amigos. Viajar com namorada. Viajar sozinho. Viajar. O desconhecido (e o medo do desconhecido). Ipanema. A Lagoa Rodrigo de Freitas. Praias do Nordeste do meu país. Praias especificamente da Bahia (no sul da Bahia, então, nem se fala). Tantas e tantas urbes: Paris, Nova York e Chicago, Barcelona, Amsterdã, Atenas, Buenos Aires, Ouro Preto, Salvador, Rio de Janeiro, Goiânia. O interior da Casa Batlò em Barcelona, e o Parc Guel, e a Sagrada Família com seus guindastes (a distribuição da luz de Gaudí). O Fórum Romano. A Esplanada dos Ministérios em Brasília e o interior da catedral da mesma cidade. O jardim do Palácio de Versalhes. O parque de esculturas Vigeland, em Oslo. O Bairro Alto em Lisboa. A pirâmide do Louvre. Descobrir que, na Grécia, metaphora é como se designa transporte público. Comer na Pont des Arts, em Paris, no verão. Pôr-do-sol em Bali. Paisagens com lagos e montanhas. Piscinas naturais no meio do mar. Orquídeas. Árvores muito, muito altas. Pinheiros e álamos. Ipês em flor no meio do cerrado. Pé de jabuticaba carregado. A linha azul claro-escuro entre o céu e o mar. A aurora boreal. A aurora e o pôr-do-sol. O céu estrelado. Conhecer um novo melhor amigo de infância. Rir junto em mesa de bar. Ir a festas de casamento. Receber ligação que estava esperando. Receber ligação de quem não estava esperando e de quem sentia tantas saudades. Ficar sabendo de algum segredo. Contar um segredo. Conversar com os bons e velhos amigos de sempre e rir das histórias do passado (especialmente lembrar pela milésima vez das histórias contadas e recontadas, principalmente das coisas hilárias e surreais que aconteceram todas em um ano, 1998). Conversar com alguém e ver que compreende essa pessoa e que essa pessoa realmente compreende você. Gostar de alguém do jeito que a pessoa é, e saber que a pessoa gosta de você do jeito que você é. Falar o que pensa de verdade sem preocupar. Mãe. Os causos e memórias dos avós, as confusões e as opiniões do papai, as broncas e os conselhos da Raquel, as enrolações e as demonstrações amorosas da Ana. Reuniões de tios e primos nas cidades pequenas dos meus pais. O leite tirado na hora da vaca na fazenda do meu avô materno na minha infância. Pensar na filhinha que ainda não tenho. Sentir um bebê apertando com a mão o meu dedo. Ver uma garotinha com roupa de bailarina. Gente engraçada. Encontrar subitamente e por acaso um amigo de longa data. Ver um casal de velhinhos (e acreditar mais uma vez no amor). Estar apaixonado e pensar nela.  Assistir filmes no domingo à noite com ela, especialmente quando está frio e ficamos juntos embaixo da mesma coberta. Dormir junto. Mãos dadas. Beijo na boca, de-mo-ra-da-men-te. Sexo. Orgasmos. Ouvir “eu te amo” antes de dormir. Seu cheiro (que está no cabelo, na nuca, nos ombros, na barriga...). Seus furinhos nas costas. Amar. Amar mais e ser amado. Viver. Viver ao máximo. Descobrir que para isso é só querer. Saber que esta lista não tem fim. Continuar a expandi-la.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Noturno

Aquela noite estava especialmente estrelada. Uma fraca lua se via bem ao longe, de modo que o céu inteiro parecia aproximar-se do globo para fazer-se mais visível. Astrônomos no deserto do Atacama conseguiam enxergar melhor as cerca de 300 bilhões de estrelas de nossa galáxia. Em algumas partes mais isoladas e em cidades pequenas, crianças faziam reiterados pedidos em silêncio, cada vez que flagravam outro aerólito, isto é, outro meteoro, isto é, outra estrela cadente, sorridentes, com pensamentos maliciosos sobre os presentes que certamente seriam recebidos nos dias seguintes ou até o Natal, sem dúvida. Estas crianças conseguiriam contar, se todas tivessem ido à escola e soubessem contar (o que não é o caso), se todas tivessem tempo para isso, e se a noite não acabasse nunca, quase 5 mil estrelas. Muitas não contavam, naturalmente, não somente por estas limitações, mas porque tinham medo de criar verrugas nas pontas dos dedos. Mas elas viam, as crianças, e isto era o mais importante, um mundo de estrelas, um céu leitoso que dava gosto de ver, ou seja, que deleitava. Era uma noite especial.

Os habitantes das cidades maiores não costumam olhar tanto para o céu, por haver sabidamente muito ao que prestar atenção aos lados, como nessa cidade da história. E se alguns moradores dessa capital sul-americana específica por acaso se distraíssem e de esgar reparassem o firmamento, ficariam imediatamente inteirados da excepcionalidade daquela abóbada, de tão iluminada. Essa mesma cidade teve a bênção de contar, nos últimos anos, com uma administração pública absolutamente engajada na promoção da iluminação para todos. Após licitações diversas (quase todas comprovadamente imparciais), optou-se por luminárias públicas que espalhavam indistintamente a luz (pelo preço, pela empresa escolhida, pelas influências de sempre). A propagação dessa iluminação teve vários efeitos paralelos, em geral aprovados pela população. Tornou o céu cada vez mais vermelho, de modo que se alguém dirigisse por uma estrada poderia notar a aproximação dessa cidade a mais de cem quilômetros de distância, pela mera observação astronômica. Era comum mencionar que o céu era mais bonito e distinto, e que aquilo ainda por cima havia diminuído a violência em várias áreas notoriamente problemáticas. Houve, igualmente, mas isso não foi tão comentado, perda da visibilidade das estrelas. Antes da construção da cidade, podia-se ver mais de 4 mil estrelas do local específico em que o protagonista está agora, uma festa eletrônica perto do centro da cidade. Após a construção da cidade e até mais ou menos 1950, o número de estrelas visíveis a olho nu passou para 2 mil. Com a já citada política intensa de iluminação pública com os postes de iluminação arbitrária, o número passou para exatamente nove estrelas. Os desavisados contavam onze, mas dois eram planetas. Nove estrelas pode não parecer muito, mas naquele céu vermelho naquele ponto específico da saída da festa, as nove estrelas estavam absolutamente cintilantes. Os planetas (talvez seja importante ressaltar), também. Já existem notícias sobre algumas cidades em que não é visível uma estrela sequer, um planeta sequer. Era definitivamente uma noite especial.

São 4 horas e quarenta e sete minutos. C. nota que seu cérebro desacelera entre a pista de dança e a primeira conversa sobre ir embora da festa, porque está tarde e porque é preciso fazer isso ou aquilo amanhã, um amigo está cansado, e outro se envolveu numa discussão desagradável perto do bar e acha que a festa perdeu a graça. A maioria das mulheres já foi embora, inclusive a que C. beijou em algum momento entre a segunda e a terceira idas ao banheiro. A festa era agora preenchida por pessoas que não iriam embora tão cedo por terem tomado comidas infantis (balas, doces, entre outras guloseimas), por terem bebido vodka suficiente para não terem idéia de que a festa está acabando, e por pessoas que simplesmente não desistem nunca. Alguns, dizem, ainda se divertiam. Mas o grosso é formado pelos primeiros casos, e aquela festa era uma festa normal, ordinária mesmo. C. era invadido pelo cheiro sufocante da mistura de suor e cerveja que o chão emanava e constatou ainda que dançar não era mais possível depois que toda a bebida derramada havia secado e formado uma gosma que grudava na sola do pé e que o impedia de sincronizar seus movimentos com os da música. Tudo aquilo no meio do gelo seco e das luzes coloridas (ele tinha nostalgia daquelas festas dos anos 80 em que só havia estroboscópios, mas sabe que aquilo é passado). Um sujeito não parava de esbarrar nele enquanto dançava, apesar de todo o espaço disponível para qualquer tipo de passo naquela hora. Algumas meninas olhavam gargalhando para um rapaz que não era ele, quase afogado na bebida em cima do balcão. Também sorriam para o sujeito espaçoso. Talvez fosse melhor ir embora.

C. fica um pouco para trás na fila do caixa e, definitivamente, tudo adquire uma velocidade bem menor agora. O mundo volta a rodar devagar depois que a música frenética fica um pouco mais distante. O caminho para a saída de boates é sempre negro, que sempre cria tons negros e cinzentos que deprimem e que impedem de acreditar num mundo cor de rosa. As pessoas se vestem de preto, as paredes são negras, isso sem falar na maquiagem carregada e agora desbotada de várias meninas (e alguns meninos) ao meu redor. Pouco antes de chegar ao caixa, uma criatura reclama do valor da conta, disse que bebeu somente duas cervejas (seus olhos cabisbaixos e vermelhos dizem o oposto, sua falta de equilíbrio diz o oposto), e o gerente é chamado para resolver o problema. Uma menina logo atrás não cessa em mexer o cabelo e enfiar suas madeixas na cara de C., que finalmente chega à frente da fila e paga sua conta. Está bêbado, naturalmente.

Sai do bafo quente e impossível da entrada e dá de encontro com os perdidos da noite, as pessoas que não partem quando já foram embora. Os que estão comendo, os que bebem as latas de cerveja mais barata vendida por ambulantes na calçada, aqueles cujo efeito das guloseimas não passou nem vai passar agora, os náufragos da festa, os abandonados na estação, os desesperados e os esperançosos, os que não desistem nunca (persistentes ou obstinados, a depender do ponto de vista), estão todos ali. É comum constatar que o lugar onde em geral não acontece nada é o mesmo onde as pessoas esperam que algo aconteça. Algo que vá redimir a noite, que vá dar algum sentido definitivo aos ensaios que ocorreram desde que saíram de casa. Ou até mesmo desde que acordaram. Desde que nasceram. O encontro. O acontecimento.

C. procurava os amigos quando subitamente uma pancada no lado esquerdo da sua face o faz desviar por vários e vários passos em falso, acompanhado de um grupo que ele não havia distinguido. Algumas gotas de sangue mostravam o caminho da pancada até o lugar onde foi parar, onde a cor vermelha ficou mais volumosa e mais intensa.

*

- Palhaço. Agora vai aprender a não ficar mexendo com mina dos outros.
- Hehehehehe. Mete a mão, bróder. O cara é um babaca. Achou que tinha se dado bem, hehe, agora se fodeu.
- Amor, vamos embora, vamos. Não precisa disso, não devia ter te contado que tinha sentido uma mão na minha bunda.
- Toma, toma, toma. Fica no chão.
- Mete o chute na cara, na cara, porra, agora mete um na barriga. No saco, o veado vai virar mulher. De veado pra mulher é pouco, hahahaha!
- Ai, essa deve ter doído. Olha o sangue na cara, hehehe. Quebra o nariz, quebra o nariz.
- Tá bom, amor. Foi só uma mão na bunda.
- Mulher minha não é vagabunda e não vai pra casa sem apontar o filha da puta que tentou bolinar ela.
- Amor, eu ainda acho que você pegou na bunda de uma mulher do lado. Amor, vamos embora, vamos. Isso está a mesma história de ontem e do fim de semana passado.
- Toma, toma, toma, filha da puta.
- Tá bom, bróder, vai acabar matando o cara e dando problema depois.
- Amor, pensando bem, acho que o menino atrás de mim tinha cabelo loiro.
- Loiro? Peraí, então pode ser aquele panaca ali de verde. Não é? Galera, vamos ali ter uma conversinha com o primo ali.
- Maluco, olha pra trás!
- Caralho, o magrelo conseguiu levantar e dar uma porrada, agora vai morrer.
- Puta que pariu, vem cá, filha da puta! Deita no chão de novo, deita no chão, fica no chão, porra, vai ficar no chão. Murro de veado, dois murros de veado antes de cair no chão e ficar aí pra sempre. Nem doeu, caralho.
- Bem, essas devem ter doído mais.
- Amor, para com isso. Tá pior do que aquele que ficava me encarando ontem. Eu não posso te dizer essas coisas, mesmo.
- Cara invocado. Agora tomou o que merecia.
- Putz, bicho, vamos embora daqui, vamos embora daqui.
- E o loiro, porra?
- Cara, tô vazando, tô me mandando mesmo. Fui. Tchau.
- Deixa o cara aí.
- A polícia acha depois.
- Vamos pro carro.
- Amor, voce tá sujo.
- Cala a boca, vagabunda, toda hora alguém pega em você.
- Desculpa, amor, desculpa.

*

Os palhaços foram embora. Covardes. Basta verem alguma luz vermelha que saem correndo. Estão acostumados a fazer tudo e a nunca sofrer nada. Eu não olhei para mulher alguma, muito menos peguei em alguém, não fiz absolutamente nada, e agora estou estirado no meio da rua com dor demais para tentar sair daqui. Por que isso acontece, meu deus, por quê? Simplesmente tive azar hoje. Não existe previsão astrológica ou deuses que expliquem como essas coisas acontecem com a gente. E como dói. Física e moralmente. Fui humilhado, fui humilhado sem razão alguma. Simplesmente por ser fraco, por estar ali, por ser uma vítima fácil. Não consigo ver ninguém, cadê as pessoas? Talvez eu tenha que tentar andar de novo.

Não consigo. Aliás, nem sei como me levantei e fui para cima do cara, só senti minha perna tremendo e subitamente me levantei, e meti dois murros, e teria distribuído mais, se não estivesse tão fraco e tão bêbado. Nada calculado, algo como um instinto, como a conseqüência do excesso de adrenalina. Coisa de animal, coisa irracional. E me orgulho disso: tudo, menos a razão pura. E descubro assim que não devo morrer como um cachorro se protegendo dos chutes do dono que o maltrata e que ele respeita. Nada de desobediência civil, sou só revolta diante da dor. Talvez por isso eu tenha apanhado, algum olhar orgulhoso de que ele não gostou e quis tirar da minha cara. Nada a ver com a namorada, nada a ver com nada. Também meu revide não tivesse a ver com nada. Sou um joguete do destino, tanto pelo que me acontece como pela maneira como reajo. Eu estava alegre e tranqüilo na hora errada, no meio das pessoas erradas. A culpa, quem sabe, foi minha. Eu devia ter aprendido alguma luta. Babaca mesmo, veado mesmo, filho da puta mesmo.

Nada a fazer senão sentir essa dor nas costelas, essa dor na barriga, na boca, no nariz, no pé, na cabeça (na alma? - quanta frescura eu penso, metafísica de lixo na hora em que a gente precisa de tudo menos de filosofia, ainda mais filosofia barata. Eu devia evitar essas consolações da filosofia barata e dos artigos de analistas ou jornalistas pedantes). Começo a divagar. Vou morrer divagando e olhando para o céu por falta de uma posição melhor. Espero que não tentem deduzir qual foi o meu último pensamento, do qual certamente terei vergonha.

Opa, finalmente algo se mexendo ali. Talvez alguém da festa me tenha visto caído no meio do asfalto. Pode ser, uma pessoa vindo devagar. Ou um cachorro vindo devagar. Uma pessoa. Alguém para me ajudar. Carregando algo. Talvez um gari. Um policial. Um bêbado. Talvez um assaltante.

*

Enquanto via aquela sombra movente, C. percebeu, inesperadamente, uma das nove (que pareciam ser onze) estrelas do céu apagar e desaparecer. Poderia ser essa a razão de seu enorme brilho, era seu momento de supernova, e daqui a pouco tempo poderá haver um buraco negro que puxará tudo que houver de matéria por perto, talvez até alguma estrela menor e pouco distante. C. enxerga o fenômeno e o interpreta como um presságio de algo bom ou ruim. Seja como for, sua interpretação egoísta ignorava o fato de que isso já teria acontecido há milhões de anos e que, portanto, C. olhava antes para um ser já inexistente, já morto muito antes de ele nascer e de ter olhos para ver, morto antes do início da humanidade, morto antes de haver vida e, consequentemente, de haver morte neste mundo. Havia também a possibilidade de que a estrela houvesse sumido pela renovação e fortalecimento da iluminação em um bairro pobre perto do local da festa, onde terá aumentado também a popularidade do prefeito junto à população local. Também poderia ser mera ilusão causada pelo desespero ou pelo desequilíbrio orgânico atual do seu corpo. No entanto, por ser a possibilidade mais otimista e poética (e que ainda agradará aos já mencionados astrônomos no observatório do deserto do Atacama), é preciso que se acredite que C. tenha acabado de presenciar o final de uma supernova. Uma compensação que a imaginação e a arte (além do otimismo e da estupidez) humanas são capazes de prover neste universo aparentemente sem sentido em que C. agora (ou ainda) habita.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Em si

Nem todos os pensamentos correspondem àquela repetida imagem do vento que revira a poeira de uma sala imensa e abandonada. Alguns pensamentos pesam, estão mais para a água (não têm nada de ar) que faz a poeira virar lama e grudar pelo assoalho, passando pelos corredores e pelas escadarias até o limiar da entrada. E quando passa de lá, sai fora do corpo aquela água salgada que cai no assoalho de fora do corpo. Alguns pensamentos pesam. Há momentos, inclusive, em que o peso deles (em que eles pesam tanto) faz ter vontade de existir como mera coisa, como algo que exista somente, sem saber disso, sem qualquer forma de interioridade. Momentos em se quer existir, não se sabe bem como, como uma canção. Uma melodia que se ouvisse por acaso nos momentos em que outras pessoas sentissem este mesmo peso e as fizesse sentir-se (que seja por um momento breve como o de uma canção) mais leves. Ou que as fizesse esquecer. Nessa hora, o medo incessante de não mais existir, de acabar de vez e para sempre, essa vaidade inútil de permanecer, cessa. Fica essa vontade, insisto, de existir somente como invocação para os outros que se sentem como se sente agora a pessoa cujos pensamentos pesam. É preciso ser possível tornar-se vez por outra uma invocação na forma do gosto de manga, do perfume de um chá exótico do oriente antigo, da textura de uma blusa de veludo, de um assobio, de uma fotografia de uma paisagem distante. Ser aquela lembrança inesquecível que você esqueceu e que, no esforço imenso de lembrar, você gargalha por não conseguir.