domingo, 26 de junho de 2011

Circuito fechado



Desejava-a como coisa fora do comum e difícil, por ela ser nobre,
por ela ser rica, por ela ser devota - imaginando que devia ter
delicadezas de sentimento, raras como as suas rendas, amuletos ao
pescoço e pudores na depravação.
 (Gustave Flaubert - A educação sentimental)



Uma sala. Na entrada dela, uma placa com a sigla CFTV. Após o umbral, um conjunto de televisões coloridas de última geração em tela plana, cada uma mostrando um ponto diferente do interior do imóvel. Esta sala encontra-se desabitada neste momento e ninguém percebe o que se pode descobrir de uma casa e de seus proprietários a partir daquele cômodo. Os monitores acompanham cada detalhe do terreno.

Um lar daqueles de revistas (é possível conferir algumas fotos na edição de agosto da “Design de Interiores” e, muito em breve, em outras publicações).

O estilo da casa de Claudia Cavalcanti é visível logo na porta, defronte a qual se vê um par de quadros icônicos do modernismo brasileiro, assinados por Burle Marx (com formatos harmônicos nas cores preto e branco, similares aos famosos jardins de tantos lugares no Rio de Janeiro e próximos a alguns prédios públicos de Brasília). Os quadros estão em uma parede perante a qual também se nota um peculiar anteparo com fotografias da família (todas em preto e branco, similares aos quadros pendurados logo acima).  O aparador foi herança da avó, um móvel em jacarandá que constava do palácio da família (que deu lugar a um edifício residencial), em estilo bastante em voga no período do Segundo Império.

Passando-se à sala de estar, a pequena área do vestíbulo (cuja sensação de intimidade faz entender porque a ele coube abrigar objetos caros à história da família) é substituída pela amplidão do enorme cômodo, com proporcionalmente poucos móveis, sobre tapetes persas e entre paredes ricas em pinturas.  Há uma fotografia antiga de uma fazenda, uma paisagem típica em Pernambuco, onde posam crianças e, ao fundo, um negro com torso forte e pele brilhante, carregando uma peça de moinho. Do lado, uma cena familiar de Portinari ao ar livre, como que complementando o ambiente histórico. Na parede oposta a ela, uma paisagem de Di Cavalcanti.

A residência é uma aula de história e geografia do Brasil. A Amazônia está ali, representada pela poltrona aguapé dos irmãos Campana, defronte à mesa Tulip de Saarinen, que acabou adquirindo um tom mais brasileiro. O piso é todo em madeira de lei, o que faz com que a diversidade dos espaços na sala seja dada pelos diferentes tons das paredes, entremeadas por enormes janelas e saídas para o terraço que dá para o jardim.

O ambiente externo conta com um projeto de paisagismo, assinado por um famoso arquiteto e que incluiu uma grande área gramada com diversas espécies de flores e plantas ornamentais.  Há, em vários pontos, conjuntos de cadeiras de madeira, especialmente perto da piscina e da área de lazer. Ao redor, um muro de três metros de altura, coberto de trepadeiras.

Uma pessoa que viajou tanto quanto Claudia não poderia deixar de possuir móveis como o sofá em couro de três lugares de autoria de Le Corbusier (seu pai, aliás, formou-se em engenharia em Paris), que forma um ambiente com uma cadeira Barcelona de Mies van der Rohe (ela, aliás, formou-se em design em Chicago), ao lado de uma escultura de Bruno Giorgi (seu avô, aliás, formou-se em medicina no Rio de Janeiro), logo abaixo de um quadro de José Malhoa (seu bisavô, aliás, político influente outrora, formou-se em direito em Coimbra) e de uma gravura de Oscar Niemeyer (dizem que o corpo de seu irmão desaparecido, aliás, foi devorado lentamente pelas águas da Guanabara).

A intimidade do casal pode ser observada nesta tarde de quinta-feira por meio da câmera instalada atrás do espelho do quarto de Claudia (que acabou de chegar de um congresso internacional de design em Milão) e do marido (que está participando de uma reunião sobre responsabilidade social em Dubai). O amplo cômodo é povoado somente por uma cama queen size e por dois criados-mudos em forma de baús, por cima dos quais há luminárias Miss Sissi e algumas publicações de arte, de auto-ajuda e de administração (sem quaisquer sinais de terem sido folheados). Os livros provavelmente foram retirados (ou não) das grandes estantes do escritório do outro lado da casa, que possuem livros raros de Nabuco e de Machado de Assis, bem como os últimos lançamentos de Chico Buarque e Pierre Bourdieu, de Gloria Kalil e Norbert Elias, do Dalai Lama e de Roberto Shinyashiki.

Não é possível elencar todas as roupas de estilistas dentro do closet.

Claudia está tomando uma ducha. Sua pele alvíssima, seus novos seios redondos e suas sessões de masturbação podem ser vistos em um monitor instalado dentro do armário da sala CFTV, que capta as imagens de uma micro-câmera instalada atrás de um dos espelhos laterais do banheiro (sem o conhecimento dos proprietários). Claudia está cansada e com os olhos inchados, acabou de passar trinta minutos sentada embaixo do chuveiro. Em cima da bancada negra de granito, um jornal aberto com a notícia do noivado de um conhecido publicitário. Aquele dos antigos boatos, que foram imediatamente desmentidos por Claudia, sobre uma suposta amizade íntima demais. O distanciamento foi natural, ela não poderia dar margem a comentários. Os rumores sobre os dois logo sumiram para dar espaço a outros rumores sobre outras celebridades.

No monitor da cozinha, as cinco empregadas domésticas retiram seus uniformes para ir embora, a pedido da própria Claudia, que as dispensou do restante da carga horária diária. O caseiro podia ser visto dando o recado, embora não fosse possível ver exatamente o que era conversado. O coq au vin, encomendado para aquela noite, era agora jogado no lixo.

O caseiro é o maior ocupante da sala de circuito fechado de televisão. Possui a confiança do casal. É filho de uma senhora que passou praticamente toda a vida a serviço dos Cavalcanti. O caseiro, único ocupante de um pequeno anexo da casa, já teve noites insones pensando no corpo de Claudia e muitas outras noites sonhando ser o marido de Claudia, que lhe daria atenção e não admitiria quaisquer boatos sobre a fidelidade de sua mulher. As câmeras nos lugares mais recônditos da casa foram instaladas por ele, para que pudesse assisti-la, a ela, sempre. O caseiro, posteriormente, passou a odiar Claudia (que lhe dava beijos na infância, pedidos na juventude e ordens após seu casamento e a morte de seu pai), passou a detestar seu patrão e toda a família. Seu salário tinha deduções pela moradia que o confundiam. A sala do CFTV passou, então, a ser sede de reuniões com dois amigos, que não deixaram de perceber que havia um revólver calibre 38 dentro de uma caixa na parte superior do closet.

A imagem do caseiro vai passando agora por vários monitores: o da cozinha, passando pelo da sala de estar, do vestíbulo, dos bambus, até sumir em direção à própria sala com os monitores (não há câmeras dentro deste aposento). Ele dá uma olhada em cada um deles, observa por um tempo. Parece hipnotizado, por alguns instantes, pela tela instalada dentro do armário, em que Claudia aparece passando hidratante nos cabelos, ainda nua, ainda de olhos vermelhos. Observa em seguida que seus dois conhecidos aparecem no monitor da sala de estar, caminhando em direção ao quarto do casal. Ele, então, desliga todos os monitores, apaga o último minuto das gravações e retira-se daquela sala, novamente em direção ao interior da casa. 

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