segunda-feira, 25 de março de 2013

Um conto de faz de conta


Era uma vez um comboio que chegava a um lugar muito distante, um lugar diferente de todos os outros lugares que tinham existido. Aquele comboio aproximava-se lentamente de uma rampa que indicava o final do percurso da estrada de ferro. Os vagões do comboio eram destinados ao transporte de animais, mas estavam cheios, repletos mesmo, de pessoas. As pessoas eram bem magrinhas, tinham a pele bastante ressecada e pareciam exaustas.

A paisagem daquela terra era admirável. Parecia um reino encantado. Havia algumas construções de madeira espalhadas e, no centro, um edifício em alvenaria com uma grande chaminé. Seus arredores eram cobertos de vegetação natural. Era um campo típico de clima temperado, com suas árvores e caminhos forrados de pedras. Era uma noite de inverno e fazia muito frio. A temperatura era de 15 graus negativos. Nevava. Apesar do friagem, os anfitriões estavam todos do lado de fora, diligentemente preparados para a chegada daquele comboio. Diversos funcionários aguardavam junto ao trem a abertura das portas por onde sairiam as pessoas.

Então, enquanto a neve caía lentamente sobre os chapéus dos oficiais, as portas se abriram e os visitantes foram ordenados, aos gritos, a sair dos vagões. Para que não se demorassem, começaram a receber cassetadas na cabeça, nas costas, nas pernas. Logo saíram todos muito apressados, tentando desajeitadamente desviar-se das investidas, que pareciam vir de todos os lados. Os vagões, então, foram esvaziando-se. Algumas pessoas, todavia, permaneceram dentro do comboio, apesar do grande incentivo oferecido pelos golpes. Estavam prostradas pelo chão. Foram, então, retiradas pelos empregados e levadas para um canto.

Aqueles que estavam em fila foram instruídos a deixar seus pertences do lado direito. Uma montanha de malas, caixas, sacolas e outros objetos formou-se instantaneamente. Os oficiais explicaram que os artigos deveriam ser amontoados cuidadosamente, para que chegassem ilesos ao local onde todos estariam hospedados. E eles obedeceram. Depois, voltaram à fila, onde havia uma pessoa que inspecionava os recém-chegados. Era um médico. O doutor separava aqueles que estavam mais saudáveis e fortes daqueles que estavam menos saudáveis e fortes. Os primeiros eram instruídos a retirar-se da fila. A grande maioria seguia em frente.

Seguindo em frente, havia um barracão de madeira onde deveriam entrar as mulheres. Os homens eram orientados a rumar para o flanco exterior da construção. Todos os entes do gênero feminino, do lado de dentro, e todos os entes do gênero masculino, do lado de fora, eram orientados a tirar a roupa ali mesmo, apesar de não haver nenhum sistema de calefação.

Naquele momento, o medo começou a apoderar-se dos visitantes. Muitos começaram nervosamente a pedir explicações. Os empregados locais, porém, permaneciam impassíveis. Existiam muitos boatos, boatos terríveis, boatos inimagináveis, sobre o que acontecia com as pessoas que eram encaminhadas até o final das linhas de trem. E todos os homens e mulheres começaram a exasperar-se, a falar cada vez mais alto, até que a situação culminou em um alvoroço de gritos de desespero. Sem hesitar, os oficiais e seus auxiliares iniciaram um regime de pesados golpes e pontapés para convencer os mais indisciplinados. Mas eles permaneceram imóveis, petrificados. Redobraram-se, pois, os esforços de persuasão. Os gritos de dor confundiam-se com os gritos de desespero. Esta desordem deve ter perdurado por alguns minutos.

A neve do piso tinha adquirido uma coloração vermelho-escura quando surgiram os oficiais que dirigiam aquele empreendimento. Diante do caos que encontraram, pediram a todos que se posicionassem organizadamente para ouvir o que tinham a dizer. Mandaram os homens que estavam do lado de fora a entrar no barracão para ouvir o discurso. Quando já estavam todos reunidos, o Comandante, que tinha o aspecto de um príncipe em uniforme de gala, enunciou sua fala com a eloquência de um grande retórico:

- Sei que muitos de vocês fizeram uma viagem de dois a três dias continuamente em pé e que estão bastante cansados. Talvez, por isto, estejam com o pensamento confuso. Entendo que muitos estejam reclamando de sede, pois foi impossível oferecer-lhes água no caminho. No entanto, não consigo compreender os temores que alguns aqui possuem sobre como vamos tratá-los. Por isso, vim aqui esclarecer de uma vez por todas nosso cronograma. Como todos sabem, estamos em um momento muito aflitivo (não são só vocês que estão em dificuldades, nós também estamos). Por isso, absolutamente todos os recursos com que possamos contar serão apreciados. Esta é a razão de vocês terem sido transferidos para cá. Podem estar seguros disso. Tenho certeza de que todos aqui podem ser úteis. Vejamos. Você, por exemplo, na segunda fila, qual o seu ofício?

- Sou alfaiate, Senhor.

- Pois estão, precisamos de sua ajuda para confeccionar e reparar os uniformes de nossos soldados.

O alfaiate sorri, satisfeito. O Comandante continua sua inquirição:

- Você, de cabelo negro ao fundo, o que você faz?

- Sou enfermeira, Comandante.

- Pois você é mais necessária do que nunca. Necessária agora mesmo, para ajudar na recuperação dos incontáveis feridos e doentes, e para dar conforto aos que sofrem. – O Comandante passa os olhos pela multidão, aponta outro homem, baixo e de barba espessa, e pergunta: - E você, à direita?

- Eu era contador, Senhor.

- Pois você pode nos ajudar na organização deste campo. Precisamos de todos vocês. Peço que abandonem estes temores que não têm sentido algum. Reflitam melhor. Ainda que vocês suponham que não tenhamos nenhum apreço por vocês, por que não aproveitaríamos sua capacidade de trabalhar? Está na hora de parar de acreditar em contos de fadas, em estórias onde todos, reis e súditos, não passam necessidades. Aqui, no mundo real, as pessoas sofrem e necessitam de cuidados. Não podemos desperdiçar força de trabalho. E vocês estão chamados a participar destes esforços. Eu insisto: nosso tempo, de grandes necessidades, exige a participação de vocês, e não vamos deixar que ninguém se esquive de suas tarefas. Ao trabalho!

A enfermeira e o contador gracejam, confortados.

O Comandante acrescenta:

- Mais uma coisa: as crianças e idosos podem ficar sob a tutela de seus responsáveis. Agora, por favor, exijo a colaboração de vocês, ou serei obrigado a tomar medidas disciplinares.

Os avós, as mães e os filhos respiram aliviados.

O Comandante adverte, em seguida:

- Há uma grande epidemia de tifo. É bem provável que vocês tenham piolhos pela cabeça e pelo corpo, especialmente após esta viagem. Para evitar que se contaminem os demais ocupantes, que estão sadios, todos vocês precisam passar por um processo de desinfeccção. Somente assim poderão ser acomodados e iniciar o trabalho.

O Comandante faz um sinal para seus companheiros. Imediatamente, alguns sabonetes e toalhas são distribuídos aos presentes.

- Vocês terão que compartilhar os poucos recursos de que dispomos. Agora, repito: colaborem. Para que sigamos corretamente o procedimento e vocês possam tomar seus banhos, tirem a roupa imediatamente. Disponibilizamos água e café para vocês naquele barracão ali, após a área de limpeza. Vocês estão tornando tudo mais lento do que o previsto e vão ter que, lamentavelmente, tomar seu café frio.

Todos começam a despir-se. Os mais fortes ajudam as crianças e os idosos a despojar-se de suas roupas. As pessoas, agora nuas, tiritam de frio (a temperatura agora havia baixado para 17 graus negativos com o avançar da madrugada). As roupas se acumularam em um canto da área de recepção e foram retiradas pelos funcionários. O Comandante agradece:

- Agora, sim. Apressem-se para tomar o café. Acabam de avisar-me que os galões de água foram reabastecidos. Vocês serão agora escoltados para a área de desinfecção.

Os homens e mulheres são conduzidos à área de limpeza. Há placas indicando banheiros. Há sinais com instruções sobre como limpar-se devidamente. Advertências sobre o perigo de contaminação por terríveis moléstias. Algumas cadeiras também são disponibilizadas para descansar enquanto os empregados terminam de limpar o banheiro. Depois de alguns minutos, todos são orientados a entrar pela porta de metal. As pessoas vão ocupando o cômodo, preenchido por diversas duchas. Com o fim de economizar tempo e recursos, é preciso sempre lotar a câmara para que todos os presentes passem pelo processo ao mesmo tempo. 

 Já dentro das câmaras, entram novos servidores locais para aparar os longos fios de cabelo de parte dos visitantes, especialmente das mulheres. Explicam que aquilo faz parte do trâmite de eliminação dos piolhos. Algumas mulheres, muito apegadas a suas madeixas, assentem com lágrimas nos olhos. Todos temem destacarem-se, de alguma maneira, por uma particular falta de asseio. Os cabeleireiros recolhem rapidamente as mechas que se espalharam pelo piso e abandonam a sala.

Os funcionários que os haviam escoltado à câmara diligentemente fecham a porta de metal antes de iniciar o processo de desinfecção. Naquele momento, era perceptível o absoluto silêncio dentro da câmara em que estavam trancados. Todos olharam para cima, esperando que a água começasse a correr pelas chuveiros logo acima de suas cabeças.

Subitamente, todas as luzes são apagadas. Naquele breu abrupto, começam a ser escutados gritos de terror, cada vez mais altos. Ouve-se, então, alguns ruídos de latas batendo no chão, que indicam o início do procedimento anunciado. As pessoas começam a debater-se umas contra as outras no escuro, em desespero. Algumas começam a pedir ajuda. Os gritos aumentam. Havia um grande tumulto de ruídos de corpos contra o chão. Os gritos aumentam ainda mais. Alguns, porém, são abafados.  Depois, começam a diminuir. O barulho reduz-se cada vez mais, até cessar completamente.

Então, depois de cerca de vinte minutos de imenso alvoroço, as pessoas sossegam completamente. Uma serena paz finalmente voltava a governar aquele lugar, um lugar diferente de todos os outros, que mais parecia um reino encantado. Todos os funcionários aguardavam em seus lugares a retirada dos calmos visitantes. Suas atribulações estavam finalmente extintas. Todos estavam sossegados. Eles seriam dirigidos em seguida para um local muito mais aquecido, para descansar em companhia dos visitantes que haviam chegado antes e dos que chegariam depois.   

E foram felizes para sempre.


                                                             Fim

4 comentários:

José Carlos Camapum Barroso disse...

Matheus, muito bom, como sempre. A narrativa flui num compasso bem marcado. E a gente imagina o que vai acontecer no final, mesmo assim ele nos traz surpresas. Esses seu contos não fazem de conta não, eles encantam mesmo. Grande abraço e até o próximo.

itaney disse...

Um conto que nos remete, de certa forma, ou de forma certa, aos campos de concentraçào nazista, mas contado de forma ficcional, por isso literário. Interessante o desenrolar da trama, até o seu final, por certo trágico. Parabens, filho. Posso mandar prá Asmego? Quem sabe a gente publica no site, ou inscreve no concurso. Abs..

itaney disse...

No comentário anterior, leía-se campos de concentraçào nazistas (e nào nazista)..

Italo Campos disse...

Quem dera que fosse mesmo um "faz de conta". A leitura do conto nos faz ir perdendo a respiração. Apesar de sabermos o final da história, a gente espera/deseja outro final. Momento thanatico da humanidade, a extrema violência, o totalitarismo(H. Arendt) destruindo não só os corpos, não apenas as mentes, mas a história, a humanidade no homem.Deve ser lembrado para não ser repetido.