sexta-feira, 15 de março de 2013

O Grande Líder



Em estado de total imobilidade, cinco homens em terno e gravata estão postados ao redor do cadáver de uma mulher luxuosamente vestida. Sua pele pálida contrasta vivamente com seu vestido cor de púrpura. Os traços finos, intactos, marcam a beleza de uma pessoa muito jovem, ainda que morta. Seu vestido harmoniza-se perfeitamente com a suntuosidade da sala. O ambiente é todo iluminado por um grande lustre de cristais italianos azuis e brancos, que transmitia seus tons ao piso em jacarandá forrado com tapetes persas e às paredes em estilo francês cobertas parcialmente por tapeçarias exóticas. O cômodo é conhecido como Salão Azul do Palácio da Nação.

O mais alto dos presentes, o Grande Líder, faz um sinal e três deles se retiram. Durante alguns minutos, o Grande Líder fita intensamente o corpo de sua falecida esposa como que para ordená-la que se levantasse. O Correligionário, então, após limpar a garganta, toma a palavra:

- Peço perdão pela insistência, Grande Líder, mas o Povo espera sua decisão a respeito das cerimônias fúnebres. Há uma multidão fora do Palácio ansiosa pela oportunidade de despedir-se de Nossa Guia.

O Grande Líder senta-se em uma das poltronas próximas ao ataúde. Permanece calado. Levanta-se novamente e olha para seu assessor:

- O Povo sofre, eu sei, mas eu também sofro. Testemunhei de perto a deterioração do estado de saúde da minha esposa, tão nova, tão jovem, recusando-me a acreditar que uma enfermidade que parecia de início uma febre pudesse chegar ao que agora é irremediável. Ela era 15 anos mais jovem do que eu. Há apenas seis meses, eu pensava que o amor que do Povo por ela era tão intenso que ela seria minha sucessora. Deus sabe o quanto ela amava o Povo de volta. Quantas vezes, desafiando ordens médicas, ela não se postou na janela do hospital para saudá-los e acalmá-los. Eu sempre lhe propunha ir em seu lugar para oferecer-lhes uma palavra de alento, mas ela insistia que ela própria deveria fazê-lo, por consideração a eles. Eu, desgraçadamente, por amor a ela, assentia. Até o dia em que ela não pôde mais levantar-se, e perdesse a razão, depois os sentidos, até expirar na cama ao lado da qual estava sentado há dois dias. Apesar de não entender até hoje por que levaram-na tão cedo, de não aceitar o que me parece ainda uma injustiça, de não compreender nada dos desígnios divinos, tenho agora que tomar uma decisão imediata sobre sua despedida. Não obstante o farei, uma vez mais, em nome de meu amor por ela e do amor dela pelo Povo.

O Correligionário assiste com pesar a exposição do Grande Líder. Junta suas mãos à frente da cintura, depois atrás das costas, exasperadamente. Quando concluída a fala, olha mudo para o assoalho. O Grande Líder continua:

- Você está somente fazendo o seu trabalho. Não tem que ouvir lamúrias minhas. Desejo apenas ter mais algumas horas a sós com ela. Quero velá-la esta noite. O Povo compreenderá. Faça todos saberem que o corpo dela poderá ser visitado a partir de amanhã, por três dias, após os quais será realizado seu enterro, segundo as formalidades do protocolo oficial.

Mesmo após assegurar-se de que o Grande Líder havia terminado, o Correligionário ainda hesitou por alguns segundos. Em seguida, limpou novamente a garganta e balbuciou:

- Senhor, há rumores, rumores que provavelmente indicam um anseio do Povo, de que o Grande Líder mandará embalsamar o corpo de Nossa Guia para que possa visitá-la em momentos de grande nostalgia ou de sérias incertezas sobre sobre o destino da Nação. Ainda segundo estas esperanças, Nossa Guia jazeria no Salão Adjunto do Palácio da Nação, para permitir o acesso de visitas e, sempre que o Senhor julgasse conveniente, ele seria reservado exclusivamente para Vossa Excelência.

- Estou ciente destes murmúrios. Não é a primeira vez que me informam sobre este ruído incessante. Nem mesmo é a primeira vez que você me traz este assunto. Sou obrigado a concluir que nesta obstinação está subentendido um conselho: Vossas Senhorias pensam que seria mais conveniente mandar embalsamar o corpo de minha mulher. Muito bem. Pois eu lhe convido a contemplar o cadáver dela. Ela está ainda mais bela, depois de ser cuidadosamente maquiada e vestida por ordens de vocês, do que momentos antes de falecer, quando seu organismo ainda resistia, quando respirava com dificuldade, quando gemia de dor, quando ainda tinha o rosto todo crispado pelo sofrimento. Olhe para ela. Eu te asseguro: ela não possui agora sequer a metade da beleza que tinha antes de eu descobrir que andava ocultando os sintomas daquela moléstia. Olhe para ela, eu te ordeno. O Povo irá adorá-la ainda mais depois de conferir a sua beleza insuportável, que não passa de um sopro da era quando eu a conheci. Sua beleza só podia ser comparada à sua generosidade. Ninguém tem mais consciência da perda que todos sofremos do que eu. E é justamente esta consciência que me impele a dizer que, apesar da aflição que inunda meu coração, é preciso esquecer para seguir em frente. Se o corpo de minha mulher seguir indefinidamente em exibição no prédio vizinho, de onde tirarei forças para liderar o Povo, consciente do vazio de minha vida sem ela? Não. Por mais que eu me martirize agora, evitando o contato com quem mais amei nesta vida, creio que somente a aceitação desta perda me permitirá seguir vivendo neste mundo da qual ela se ausentou tão prematuramente. Minha decisão, portanto, está tomada.

O Correligionário pede permissão para retirar-se do cômodo. O Grande Líder assente e dá-lhe as costas para novamente fitar o corpo iluminado e imóvel de sua consorte.

*

Após o encerramento de uma reunião ministerial, o Grande Líder regressa a seu gabinete, acompanhado do Correligionário. Assina alguns papeis que este lhe entrega enquanto vai também tomando nota de alguns assuntos pendentes mencionados há pouco. O Grande Líder percebe que o Correligionário tem um ar apreensivo. Apanha uma pasta e pergunta:

- Algo lhe preocupa, meu caro?

- Senhor, por dever de ofício e pela confiança em mim depositada, sinto-me na obrigação de informá-lo sobre algumas inquietações que pairam no espírito do Povo. Já faz algum tempo que passaram a comentar sobre sua proximidade cada vez maior com a Secretária de Assuntos Privados.

- Você se refere à Martha?

- Receio que sim. Circulam fotos do Senhor sorrindo para ela após o café da manhã oficial com o Líder do País Vizinho, correm testemunhos sobre caminhadas pelo jardim da Residência Oficial, e crescem agora boatos sobre a presença dela no Retiro da Nação durante as férias do Senhor.

- Não tinha conhecimento de que o Povo estava tão preocupado com minhas amizades.

- Na verdade, os rumores são de que sua relação com a Secretária de Assuntos Privados ultrapassa os limites de uma mera amizade. Alguns consideram até que o Senhor estaria apaixonado por ela. Eu próprio - e peço antecipadamente perdão se estiver cometendo alguma indiscrição – reparei que o Senhor tem passado mais tempo com a Secretária, e que ultimamente o Senhor tem andado menos sério, mais sorridente. Ouso dizer, se o Senhor não considera meu comentário inoportuno, até mesmo mais jovial. Tendo em conta sua alta exposição pública, suponho que estas mudanças sejam perceptíveis até mesmo para pessoas de fora do círculo mais íntimo do Senhor. Senhor, insisto que eu não quero intrometer-me em seus assuntos privados. Minha intenção é apenas informá-lo sobre quaisquer desdobramentos políticos e sociais que possam ocorrer.

- Entendo. E quais seriam, então, seus pensamentos sobre o assunto? O Senhor acha que eu tenho o direito de me apaixonar, caso estas suposições estejam corretas?

- Desculpe-me... Quer dizer, o Senhor, claro que... Todos têm direito a sua vida privada.... Bem, todo mundo tem o direito de se apaixonar. É impossível dominar completamente as paixões. É algo humano. Ultrapassa a mera vontade.

O Correligionário toma um momento para refletir. Depois, limpa a garganta e avança:

- Muitos filósofos, no entanto, nos aconselham a refletir antes de deixar-nos dominar pelas paixões. Mas o Senhor, nosso Grande Líder de nossa grande Nação, certamente possui a sabedoria necessária para ponderar sobre esta questão. Meus pensamentos poderiam parecer-lhe muito simplórios.

- Caro Correligionário, peço-lhe humildemente que seja sincero comigo. O Senhor estava do meu lado durante o funeral da minha esposa, há nove anos. Desde então, acompanhou-me em quase todas as minhas atividades oficiais. Trocamos impressões sobre inumeráveis assuntos, inclusive pessoais. O que o Senhor pensa sobre a possibilidade do Grande Viúvo da Nação apaixonar-se quase dez anos depois da morte de sua esposa? O Senhor acha que eu estaria traindo a memória dela?  

- Não, claro que não, Senhor. Quer dizer que o Senhor confirma que está apaixonado? Perdão pela intromissão. Não me concerne, não me concerne em absoluto. Senhor, eu me preocupo com as reações do Povo a esta notícia, caso haja mesmo uma notícia. Enfim, o Senhor compreende que, depois que o corpo de sua esposa foi embalsamado e passou a ser exibido no Salão Adjunto do Palácio da Nação, a adoração a ela aumentou extraordinariamente. Nunca esteve, aliás, tão forte. Tivemos que mudar todo o esquema de segurança para permitir que uma multidão crescente entre diariamente para contemplá-la, reverenciá-la e até mesmo chorar e suplicar diante dela. O Senhor tem acompanhado o alvoroço em torno dos rumores sobre o atendimento de orações e a realização de milagres. O Povo agora divide-se entre as designações Nossa Guia, Santa Guia e Santa do Povo. Ademais, depois que ela faleceu, tornaram-se célebres várias imagens do Senhor chorando diante de seu mausoléu. O Povo passou a admirá-lo também por sua devoção e por sua lealdade a ela. Todos sabem o quanto o Senhor padeceu pela morte dela.

- E o Povo acha que eu devo seguir de luto? Seguir padecendo? 

- Eu acho que, diante destas circunstâncias, o Povo poderia ter dificuldades de conceber que o Senhor possa amar alguém de novo. Quer dizer, se o Senhor amou a Nossa Guia, idolatrada como nunca pelo Povo, porque trocaria a memória dela por uma relação com outra pessoa? O Povo pode ter dificuldades para assimilar. Pode ter interpretações equivocadas. Minha avaliação é a de algo desta natureza poderia colocar em risco as conquistas alcançadas até o momento e as esperanças depositadas no Senhor durante todo este tempo. Poderia haver algum tipo de comoção pública ou até mesmo casos de violência.

- Obrigado por suas importantes palavras, Correligionário. Após ouvi-las, estou convencido de que você se equivoca ao considerar-me um sábio. Não havia considerado nada do que você agora me revela.

- Peço desculpas por ter ultrapassado minha competência, Senhor. No entanto, peço sua permissão para fazer uma última ponderação. Independentemente da decisão que o Senhor tomar, cabe considerar desde logo a segurança da Secretária de Assuntos Privados. Desde o início destas especulações, as opiniões do Povo sobre ela estão cada dia mais severas. Muitos reclamam, quando pouco, sua demissão do cargo. Julgo que, persistindo estas insinuações, será necessário  armar um esquema de segurança para ela.

- Vou refletir sobre suas observações. Agradeço-lhe a sinceridade.

*

Ao redor da cama do Grande Líder encontram-se o Médico Oficial, o Correligionário e o Secretário de Assuntos Privados. O Grande Líder pede que o Secretário tome nota de tudo. Dirige-se então ao Correligionário - agora conhecido como Novo Líder da Nação – para mencionar importantes decisões sobre assuntos de Estado. Em seguida, o Grande Líder, com olhos trêmulos, dá suas últimas instruções:

- Eu quero ser enterrado após a minha morte. Não quero que meu corpo seja embalsamado para ficar exposto em algum prédio público. Tenho, além disso, outro pedido. Rogo encarecidamente que retirem o corpo embalsamado de minha esposa do Salão Adjunto para que eu seja sepultado ao lado dela. Ainda poderão peregrinar para vê-la, apenas deverão dirigir-se a partir de agora ao seu túmulo. Mas eu suplico: por favor, nos deixem descansar em paz. Diga ao Povo que o espírito dela e o meu estarão sempre com eles. Prometa-me que fará isso.

Dois dias depois, o Novo Líder anuncia ao Povo os desígnios do Grande Líder.

O enterro do Grande Líder acontece quatro dias depois e é acompanhado por uma multidão inédita na história desta grande Nação. A cerimônia conta com todas as homenagens dignas de um grande herói. Incontáveis cidadãos optam por assistir ao Ato Oficial ao lado do Salão Adjunto do Palácio da Nação, pois havia rumores – que todos queriam conferir de perto - de que os olhos embalsamados de Nossa Guia poderiam derramar lágrimas em razão de sua morte.

Após a cerimônia, o turbilhão de gente foi pouco a pouco deixando o Cemitério dos Patronos da Nação. O ruído cada vez mais distante dos passos foi sendo substituído pelo silêncio ao redor de seu túmulo. O Grande Líder, porém, não descansa sozinho. O Grande Líder está no coração do Povo.

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