Em estado de total imobilidade, cinco
homens em terno e gravata estão postados ao redor do cadáver de uma mulher
luxuosamente vestida. Sua pele pálida contrasta vivamente com seu vestido cor
de púrpura. Os traços finos, intactos, marcam a beleza de uma pessoa muito
jovem, ainda que morta. Seu vestido harmoniza-se perfeitamente com a
suntuosidade da sala. O ambiente é todo iluminado por um grande lustre de
cristais italianos azuis e brancos, que transmitia seus tons ao piso em
jacarandá forrado com tapetes persas e às paredes em estilo francês cobertas
parcialmente por tapeçarias exóticas. O cômodo é conhecido como Salão Azul do
Palácio da Nação.
O mais alto dos presentes, o
Grande Líder, faz um sinal e três deles se retiram. Durante alguns minutos, o
Grande Líder fita intensamente o corpo de sua falecida esposa como que para
ordená-la que se levantasse. O Correligionário, então, após limpar a garganta,
toma a palavra:
- Peço perdão pela insistência, Grande
Líder, mas o Povo espera sua decisão a respeito das cerimônias fúnebres. Há uma
multidão fora do Palácio ansiosa pela oportunidade de despedir-se de Nossa
Guia.
O Grande Líder senta-se em uma
das poltronas próximas ao ataúde. Permanece calado. Levanta-se novamente e olha
para seu assessor:
- O Povo sofre, eu sei, mas eu
também sofro. Testemunhei de perto a deterioração do estado de saúde da minha
esposa, tão nova, tão jovem, recusando-me a acreditar que uma enfermidade que
parecia de início uma febre pudesse chegar ao que agora é irremediável. Ela era
15 anos mais jovem do que eu. Há apenas seis meses, eu pensava que o amor que do
Povo por ela era tão intenso que ela seria minha sucessora. Deus sabe o quanto
ela amava o Povo de volta. Quantas vezes, desafiando ordens médicas, ela não se
postou na janela do hospital para saudá-los e acalmá-los. Eu sempre lhe propunha
ir em seu lugar para oferecer-lhes uma palavra de alento, mas ela insistia que
ela própria deveria fazê-lo, por consideração a eles. Eu, desgraçadamente, por
amor a ela, assentia. Até o dia em que ela não pôde mais levantar-se, e perdesse
a razão, depois os sentidos, até expirar na cama ao lado da qual estava sentado
há dois dias. Apesar de não entender até hoje por que levaram-na tão cedo, de não
aceitar o que me parece ainda uma injustiça, de não compreender nada dos
desígnios divinos, tenho agora que tomar uma decisão imediata sobre sua
despedida. Não obstante o farei, uma vez mais, em nome de meu amor por ela e do
amor dela pelo Povo.
O Correligionário assiste com pesar
a exposição do Grande Líder. Junta suas mãos à frente da cintura, depois atrás
das costas, exasperadamente. Quando concluída a fala, olha mudo para o assoalho.
O Grande Líder continua:
- Você está somente fazendo o seu
trabalho. Não tem que ouvir lamúrias minhas. Desejo apenas ter mais algumas
horas a sós com ela. Quero velá-la esta noite. O Povo compreenderá. Faça todos
saberem que o corpo dela poderá ser visitado a partir de amanhã, por três dias,
após os quais será realizado seu enterro, segundo as formalidades do protocolo
oficial.
Mesmo após assegurar-se de que o
Grande Líder havia terminado, o Correligionário ainda hesitou por alguns
segundos. Em seguida, limpou novamente a garganta e balbuciou:
- Senhor, há rumores, rumores que
provavelmente indicam um anseio do Povo, de que o Grande Líder mandará
embalsamar o corpo de Nossa Guia para que possa visitá-la em momentos de grande
nostalgia ou de sérias incertezas sobre sobre o destino da Nação. Ainda segundo
estas esperanças, Nossa Guia jazeria no Salão Adjunto do Palácio da Nação, para
permitir o acesso de visitas e, sempre que o Senhor julgasse conveniente, ele
seria reservado exclusivamente para Vossa Excelência.
- Estou ciente destes murmúrios. Não
é a primeira vez que me informam sobre este ruído incessante. Nem mesmo é a
primeira vez que você me traz este assunto. Sou obrigado a concluir que nesta obstinação
está subentendido um conselho: Vossas Senhorias pensam que seria mais
conveniente mandar embalsamar o corpo de minha mulher. Muito bem. Pois eu lhe
convido a contemplar o cadáver dela. Ela está ainda mais bela, depois de ser cuidadosamente
maquiada e vestida por ordens de vocês, do que momentos antes de falecer,
quando seu organismo ainda resistia, quando respirava com dificuldade, quando
gemia de dor, quando ainda tinha o rosto todo crispado pelo sofrimento. Olhe
para ela. Eu te asseguro: ela não possui agora sequer a metade da beleza que
tinha antes de eu descobrir que andava ocultando os sintomas daquela moléstia.
Olhe para ela, eu te ordeno. O Povo irá adorá-la ainda mais depois de conferir
a sua beleza insuportável, que não passa de um sopro da era quando eu a
conheci. Sua beleza só podia ser comparada à sua generosidade. Ninguém tem mais
consciência da perda que todos sofremos do que eu. E é justamente esta
consciência que me impele a dizer que, apesar da aflição que inunda meu coração,
é preciso esquecer para seguir em
frente. Se o corpo de minha mulher seguir indefinidamente em
exibição no prédio vizinho, de onde tirarei forças para liderar o Povo,
consciente do vazio de minha vida sem ela? Não. Por mais que eu me martirize
agora, evitando o contato com quem mais amei nesta vida, creio que somente a
aceitação desta perda me permitirá seguir vivendo neste mundo da qual ela se
ausentou tão prematuramente. Minha decisão, portanto, está tomada.
O Correligionário pede permissão
para retirar-se do cômodo. O Grande Líder assente e dá-lhe as costas para
novamente fitar o corpo iluminado e imóvel de sua consorte.
*
Após o encerramento de uma
reunião ministerial, o Grande Líder regressa a seu gabinete, acompanhado do
Correligionário. Assina alguns papeis que este lhe entrega enquanto vai também
tomando nota de alguns assuntos pendentes mencionados há pouco. O Grande Líder
percebe que o Correligionário tem um ar apreensivo. Apanha uma pasta e
pergunta:
- Algo lhe preocupa, meu caro?
- Senhor, por dever de ofício e
pela confiança em mim depositada, sinto-me na obrigação de informá-lo sobre algumas
inquietações que pairam no espírito do Povo. Já faz algum tempo que passaram a
comentar sobre sua proximidade cada vez maior com a Secretária de Assuntos Privados.
- Você se refere à Martha?
- Receio que sim. Circulam fotos
do Senhor sorrindo para ela após o café da manhã oficial com o Líder do País
Vizinho, correm testemunhos sobre caminhadas pelo jardim da Residência Oficial,
e crescem agora boatos sobre a presença dela no Retiro da Nação durante as
férias do Senhor.
- Não tinha conhecimento de que o
Povo estava tão preocupado com minhas amizades.
- Na verdade, os rumores são de
que sua relação com a Secretária de Assuntos Privados ultrapassa os limites de
uma mera amizade. Alguns consideram até que o Senhor estaria apaixonado por
ela. Eu próprio - e peço antecipadamente perdão se estiver cometendo alguma indiscrição
– reparei que o Senhor tem passado mais tempo com a Secretária, e que
ultimamente o Senhor tem andado menos sério, mais sorridente. Ouso dizer, se o
Senhor não considera meu comentário inoportuno, até mesmo mais jovial. Tendo em
conta sua alta exposição pública, suponho que estas mudanças sejam perceptíveis
até mesmo para pessoas de fora do círculo mais íntimo do Senhor. Senhor, insisto
que eu não quero intrometer-me em seus assuntos privados. Minha intenção é
apenas informá-lo sobre quaisquer desdobramentos políticos e sociais que possam
ocorrer.
- Entendo. E quais seriam, então,
seus pensamentos sobre o assunto? O Senhor acha que eu tenho o direito de me
apaixonar, caso estas suposições estejam corretas?
- Desculpe-me... Quer dizer, o
Senhor, claro que... Todos têm direito a sua vida privada.... Bem, todo mundo tem
o direito de se apaixonar. É impossível dominar completamente as paixões. É
algo humano. Ultrapassa a mera vontade.
O Correligionário toma um momento
para refletir. Depois, limpa a garganta e avança:
- Muitos filósofos, no entanto,
nos aconselham a refletir antes de deixar-nos dominar pelas paixões. Mas o
Senhor, nosso Grande Líder de nossa grande Nação, certamente possui a sabedoria
necessária para ponderar sobre esta questão. Meus pensamentos poderiam
parecer-lhe muito simplórios.
- Caro Correligionário, peço-lhe
humildemente que seja sincero comigo. O Senhor estava do meu lado durante o
funeral da minha esposa, há nove anos. Desde então, acompanhou-me em quase
todas as minhas atividades oficiais. Trocamos impressões sobre inumeráveis
assuntos, inclusive pessoais. O que o Senhor pensa sobre a possibilidade do
Grande Viúvo da Nação apaixonar-se quase dez anos depois da morte de sua esposa?
O Senhor acha que eu estaria traindo a memória dela?
- Não, claro que não, Senhor. Quer
dizer que o Senhor confirma que está apaixonado? Perdão pela intromissão. Não
me concerne, não me concerne em absoluto. Senhor, eu me preocupo com as reações
do Povo a esta notícia, caso haja mesmo uma notícia. Enfim, o Senhor compreende
que, depois que o corpo de sua esposa foi embalsamado e passou a ser exibido no
Salão Adjunto do Palácio da Nação, a adoração a ela aumentou
extraordinariamente. Nunca esteve, aliás, tão forte. Tivemos que mudar todo o
esquema de segurança para permitir que uma multidão crescente entre diariamente
para contemplá-la, reverenciá-la e até mesmo chorar e suplicar diante dela. O
Senhor tem acompanhado o alvoroço em torno dos rumores sobre o atendimento de
orações e a realização de milagres. O Povo agora divide-se entre as designações
Nossa Guia, Santa Guia e Santa do Povo. Ademais, depois que ela faleceu, tornaram-se
célebres várias imagens do Senhor chorando diante de seu mausoléu. O Povo passou
a admirá-lo também por sua devoção e por sua lealdade a ela. Todos sabem o quanto
o Senhor padeceu pela morte dela.
- E o Povo acha que eu devo
seguir de luto? Seguir padecendo?
- Eu acho que, diante destas
circunstâncias, o Povo poderia ter dificuldades de conceber que o Senhor possa
amar alguém de novo. Quer dizer, se o Senhor amou a Nossa Guia, idolatrada como
nunca pelo Povo, porque trocaria a memória dela por uma relação com outra
pessoa? O Povo pode ter dificuldades para assimilar. Pode ter interpretações
equivocadas. Minha avaliação é a de algo desta natureza poderia colocar em
risco as conquistas alcançadas até o momento e as esperanças depositadas no
Senhor durante todo este tempo. Poderia haver algum tipo de comoção pública ou até
mesmo casos de violência.
- Obrigado por suas importantes
palavras, Correligionário. Após ouvi-las, estou convencido de que você se
equivoca ao considerar-me um sábio. Não havia considerado nada do que você
agora me revela.
- Peço desculpas por ter
ultrapassado minha competência, Senhor. No entanto, peço sua permissão para
fazer uma última ponderação. Independentemente da decisão que o Senhor tomar,
cabe considerar desde logo a segurança da Secretária de Assuntos Privados.
Desde o início destas especulações, as opiniões do Povo sobre ela estão cada
dia mais severas. Muitos reclamam, quando pouco, sua demissão do cargo. Julgo
que, persistindo estas insinuações, será necessário armar um esquema de segurança para ela.
- Vou refletir sobre suas observações.
Agradeço-lhe a sinceridade.
*
Ao redor da cama do Grande Líder
encontram-se o Médico Oficial, o Correligionário e o Secretário de Assuntos Privados.
O Grande Líder pede que o Secretário tome nota de tudo. Dirige-se então ao
Correligionário - agora conhecido como Novo Líder da Nação – para mencionar
importantes decisões sobre assuntos de Estado. Em seguida, o Grande Líder, com
olhos trêmulos, dá suas últimas instruções:
- Eu quero ser enterrado após a
minha morte. Não quero que meu corpo seja embalsamado para ficar exposto em
algum prédio público. Tenho, além disso, outro pedido. Rogo encarecidamente que
retirem o corpo embalsamado de minha esposa do Salão Adjunto para que eu seja sepultado
ao lado dela. Ainda poderão peregrinar para vê-la, apenas deverão dirigir-se a
partir de agora ao seu túmulo. Mas eu suplico: por favor, nos deixem descansar em paz. Diga ao Povo que o
espírito dela e o meu estarão sempre com eles. Prometa-me que fará isso.
Dois dias depois, o Novo Líder
anuncia ao Povo os desígnios do Grande Líder.
O enterro do Grande Líder
acontece quatro dias depois e é acompanhado por uma multidão inédita na
história desta grande Nação. A cerimônia conta com todas as homenagens dignas
de um grande herói. Incontáveis cidadãos optam por assistir ao Ato Oficial ao
lado do Salão Adjunto do Palácio da Nação, pois havia rumores – que todos
queriam conferir de perto - de que os olhos embalsamados de Nossa Guia poderiam
derramar lágrimas em razão de sua morte.
Após a cerimônia, o turbilhão de gente foi pouco
a pouco deixando o Cemitério dos Patronos da Nação. O ruído cada vez mais
distante dos passos foi sendo substituído pelo silêncio ao redor de seu túmulo.
O Grande Líder, porém, não descansa sozinho. O Grande Líder está no coração do
Povo.
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