Era uma vez um comboio que
chegava a um lugar muito distante, um lugar diferente de todos os outros
lugares que tinham existido. Aquele comboio aproximava-se lentamente de uma
rampa que indicava o final do percurso da estrada de ferro. Os vagões do
comboio eram destinados ao transporte de animais, mas estavam cheios, repletos
mesmo, de pessoas. As pessoas eram bem magrinhas, tinham a pele bastante
ressecada e pareciam exaustas.
A paisagem daquela terra era admirável.
Parecia um reino encantado. Havia algumas construções de madeira espalhadas e,
no centro, um edifício em alvenaria com uma grande chaminé. Seus arredores eram
cobertos de vegetação natural. Era um campo típico de clima temperado, com suas
árvores e caminhos forrados de pedras. Era uma noite de inverno e fazia muito
frio. A temperatura era de 15 graus negativos. Nevava. Apesar do friagem, os
anfitriões estavam todos do lado de fora, diligentemente preparados para a
chegada daquele comboio. Diversos funcionários aguardavam junto ao trem a
abertura das portas por onde sairiam as pessoas.
Então, enquanto a neve caía
lentamente sobre os chapéus dos oficiais, as portas se abriram e os visitantes foram
ordenados, aos gritos, a sair dos vagões. Para que não se demorassem, começaram
a receber cassetadas na cabeça, nas costas, nas pernas. Logo saíram todos muito
apressados, tentando desajeitadamente desviar-se das investidas, que pareciam
vir de todos os lados. Os vagões, então, foram esvaziando-se. Algumas pessoas, todavia,
permaneceram dentro do comboio, apesar do grande incentivo oferecido pelos
golpes. Estavam prostradas pelo chão. Foram, então, retiradas pelos empregados
e levadas para um canto.
Aqueles que estavam em fila foram
instruídos a deixar seus pertences do lado direito. Uma montanha de malas,
caixas, sacolas e outros objetos formou-se instantaneamente. Os oficiais
explicaram que os artigos deveriam ser amontoados cuidadosamente, para que chegassem
ilesos ao local onde todos estariam hospedados. E eles obedeceram. Depois,
voltaram à fila, onde havia uma pessoa que inspecionava os recém-chegados. Era
um médico. O doutor separava aqueles que estavam mais saudáveis e fortes
daqueles que estavam menos saudáveis e fortes. Os primeiros eram instruídos a
retirar-se da fila. A grande maioria seguia em frente.
Seguindo em frente, havia um
barracão de madeira onde deveriam entrar as mulheres. Os homens eram orientados
a rumar para o flanco exterior da construção. Todos os entes do gênero feminino,
do lado de dentro, e todos os entes do gênero masculino, do lado de fora, eram
orientados a tirar a roupa ali mesmo, apesar de não haver nenhum sistema de
calefação.
Naquele momento, o medo começou a
apoderar-se dos visitantes. Muitos começaram nervosamente a pedir explicações.
Os empregados locais, porém, permaneciam impassíveis. Existiam muitos boatos,
boatos terríveis, boatos inimagináveis, sobre o que acontecia com as pessoas
que eram encaminhadas até o final das linhas de trem. E todos os homens e
mulheres começaram a exasperar-se, a falar cada vez mais alto, até que a
situação culminou em um alvoroço de gritos de desespero. Sem hesitar, os
oficiais e seus auxiliares iniciaram um regime de pesados golpes e pontapés
para convencer os mais indisciplinados. Mas eles permaneceram imóveis,
petrificados. Redobraram-se, pois, os esforços de persuasão. Os gritos de dor
confundiam-se com os gritos de desespero. Esta desordem deve ter perdurado por
alguns minutos.
A neve do piso tinha adquirido
uma coloração vermelho-escura quando surgiram os oficiais que dirigiam aquele
empreendimento. Diante do caos que encontraram, pediram a todos que se
posicionassem organizadamente para ouvir o que tinham a dizer. Mandaram os
homens que estavam do lado de fora a entrar no barracão para ouvir o discurso. Quando
já estavam todos reunidos, o Comandante, que tinha o aspecto de um príncipe em
uniforme de gala, enunciou sua fala com a eloquência de um grande retórico:
- Sei que muitos de vocês fizeram
uma viagem de dois a três dias continuamente em pé e que estão bastante
cansados. Talvez, por isto, estejam com o pensamento confuso. Entendo que
muitos estejam reclamando de sede, pois foi impossível oferecer-lhes água no
caminho. No entanto, não consigo compreender os temores que alguns aqui possuem
sobre como vamos tratá-los. Por isso, vim aqui esclarecer de uma vez por todas
nosso cronograma. Como todos sabem, estamos em um momento muito aflitivo (não
são só vocês que estão em dificuldades, nós também estamos). Por isso,
absolutamente todos os recursos com que possamos contar serão apreciados. Esta
é a razão de vocês terem sido transferidos para cá. Podem estar seguros disso.
Tenho certeza de que todos aqui podem ser úteis. Vejamos. Você, por exemplo, na
segunda fila, qual o seu ofício?
- Sou alfaiate, Senhor.
- Pois estão, precisamos de sua
ajuda para confeccionar e reparar os uniformes de nossos soldados.
O alfaiate sorri, satisfeito. O
Comandante continua sua inquirição:
- Você, de cabelo negro ao fundo,
o que você faz?
- Sou enfermeira, Comandante.
- Pois você é mais necessária do
que nunca. Necessária agora mesmo, para ajudar na recuperação dos incontáveis
feridos e doentes, e para dar conforto aos que sofrem. – O Comandante passa os
olhos pela multidão, aponta outro homem, baixo e de barba espessa, e pergunta:
- E você, à direita?
- Eu era contador, Senhor.
- Pois você pode nos ajudar na
organização deste campo. Precisamos de todos vocês. Peço que abandonem estes
temores que não têm sentido algum. Reflitam melhor. Ainda que vocês suponham
que não tenhamos nenhum apreço por vocês, por que não aproveitaríamos sua
capacidade de trabalhar? Está na hora de parar de acreditar em contos de fadas,
em estórias onde todos, reis e súditos, não passam necessidades. Aqui, no mundo
real, as pessoas sofrem e necessitam de cuidados. Não podemos desperdiçar força
de trabalho. E vocês estão chamados a participar destes esforços. Eu insisto:
nosso tempo, de grandes necessidades, exige a participação de vocês, e não
vamos deixar que ninguém se esquive de suas tarefas. Ao trabalho!
A enfermeira e o contador gracejam,
confortados.
O Comandante acrescenta:
- Mais uma coisa: as crianças e
idosos podem ficar sob a tutela de seus responsáveis. Agora, por favor, exijo a
colaboração de vocês, ou serei obrigado a tomar medidas disciplinares.
Os avós, as mães e os filhos
respiram aliviados.
O Comandante adverte, em seguida:
- Há uma grande epidemia de tifo.
É bem provável que vocês tenham piolhos pela cabeça e pelo corpo, especialmente
após esta viagem. Para evitar que se contaminem os demais ocupantes, que estão
sadios, todos vocês precisam passar por um processo de desinfeccção. Somente
assim poderão ser acomodados e iniciar o trabalho.
O Comandante faz um sinal para
seus companheiros. Imediatamente, alguns sabonetes e toalhas são distribuídos aos
presentes.
- Vocês terão que compartilhar os
poucos recursos de que dispomos. Agora, repito: colaborem. Para que sigamos
corretamente o procedimento e vocês possam tomar seus banhos, tirem a roupa
imediatamente. Disponibilizamos água e café para vocês naquele barracão ali,
após a área de limpeza. Vocês estão tornando tudo mais lento do que o previsto
e vão ter que, lamentavelmente, tomar seu café frio.
Todos começam a despir-se. Os
mais fortes ajudam as crianças e os idosos a despojar-se de suas roupas. As
pessoas, agora nuas, tiritam de frio (a temperatura agora havia baixado para 17
graus negativos com o avançar da madrugada). As roupas se acumularam em um
canto da área de recepção e foram retiradas pelos funcionários. O Comandante agradece:
- Agora, sim. Apressem-se para
tomar o café. Acabam de avisar-me que os galões de água foram reabastecidos.
Vocês serão agora escoltados para a área de desinfecção.
Os homens e mulheres são conduzidos
à área de limpeza. Há placas indicando banheiros. Há sinais com instruções
sobre como limpar-se devidamente. Advertências sobre o perigo de contaminação
por terríveis moléstias. Algumas cadeiras também são disponibilizadas para
descansar enquanto os empregados terminam de limpar o banheiro. Depois de
alguns minutos, todos são orientados a entrar pela porta de metal. As pessoas
vão ocupando o cômodo, preenchido por diversas duchas. Com o fim de economizar
tempo e recursos, é preciso sempre lotar a câmara para que todos os presentes passem
pelo processo ao mesmo tempo.
Já dentro das câmaras, entram novos servidores
locais para aparar os longos fios de cabelo de parte dos visitantes,
especialmente das mulheres. Explicam que aquilo faz parte do trâmite de
eliminação dos piolhos. Algumas mulheres, muito apegadas a suas madeixas,
assentem com lágrimas nos olhos. Todos temem destacarem-se, de alguma maneira,
por uma particular falta de asseio. Os cabeleireiros recolhem rapidamente as
mechas que se espalharam pelo piso e abandonam a sala.
Os funcionários que os haviam
escoltado à câmara diligentemente fecham a porta de metal antes de iniciar o
processo de desinfecção. Naquele momento, era perceptível o absoluto silêncio dentro
da câmara em que estavam trancados. Todos olharam para cima, esperando que a
água começasse a correr pelas chuveiros logo acima de suas cabeças.
Subitamente, todas as luzes são
apagadas. Naquele breu abrupto, começam a ser escutados gritos de terror, cada
vez mais altos. Ouve-se, então, alguns ruídos de latas batendo no chão, que
indicam o início do procedimento anunciado. As pessoas começam a debater-se
umas contra as outras no escuro, em desespero. Algumas
começam a pedir ajuda. Os gritos aumentam. Havia um grande tumulto de ruídos de
corpos contra o chão. Os gritos aumentam ainda mais. Alguns, porém, são
abafados. Depois, começam a diminuir. O
barulho reduz-se cada vez mais, até cessar completamente.
Então, depois de cerca de vinte
minutos de imenso alvoroço, as pessoas sossegam completamente. Uma serena paz
finalmente voltava a governar aquele lugar, um lugar diferente de todos os
outros, que mais parecia um reino encantado. Todos os funcionários aguardavam
em seus lugares a retirada dos calmos visitantes. Suas atribulações estavam
finalmente extintas. Todos estavam sossegados. Eles seriam dirigidos em seguida
para um local muito mais aquecido, para descansar em companhia dos visitantes
que haviam chegado antes e dos que chegariam depois.