quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sobre Andrei, uma casca de banana e um inquérito policial

- Por favor, vocês têm que me ajudar a encontrar meu irmão. Sinto tantas saudades dele. É um menino muito bom. Ele não é doente, ele não é louco. Eu juro. Não está bem, só isso, está um pouco perdido. Eu sei que ele não quis desaparecer. E eu tenho medo, ele não tem condições de ficar tanto tempo sozinho. Alguém pode ter se aproveitado dele. Ele é muito jovem. Ai, meu deus. Tudo bem, tudo bem. Eu vou contar mais ou menos o que aconteceu. Foi uma fatalidade, quer dizer, foi só um acaso. Acho que tudo começou com uma discussão em sala de aula que a diretora depois transmitiu aos nossos pais. Não. Pensando bem, acho que tudo começou um pouco antes. Sim, sim. Me desculpe, é difícil para mim. A diretora chegou um dia na casa dos meus pais e perguntou se meu irmão estava doente. Não, me confundi de novo. Desculpe. Eu ia contar a conversa que tive com ele antes disso. Foi o seguinte: ele me contou que tivera uma estranha e forte sensação pouco depois do almoço. Ele estava andando pela rua quando, de repente, pisou numa casca de banana e por pouco não se espatifou no chão. Disse que, primeiramente, quase morreu de rir da situação. Onde já se viu, na vida real, alguém escorregar numa casca de banana? Isso era coisa de desenho animado, de cartum barato de jornal, de programas de televisão ruins no sábado à noite. E foi então que ele fez uma observação que me intrigou. Agora, depois de tudo o que ocorreu, as coisas se encaixam. Disse que, na sequência, começou a se perguntar se ele não era um personagem de alguma história. Primeiro, começou a imaginar que as inúmeras câmeras de circuito interno na rua poderiam ser, na verdade, uma simples desculpa para que o filmassem continuamente para algum programa de entretenimento para pessoas mais sábias e menos ingênuas do que ele. Mas logo desistiu dessa ideia, depois de perceber que ninguém o olhava de soslaio, que não havia câmeras que o seguiam. Em outras palavras, o mundo era indiferente a ele, e o pensamento que havia tido logo o envergonhou, por ter tido a ingenuidade de se achar especial quando, na verdade, não passava de mais um dos bilhões de habitantes deste mundo. Ele disse, pelo menos, que valeu a risada e que nunca se esqueceria da sensação de ser um personagem de ficção. Disse ainda que sentiu um calafrio quando pensou nisso. Agora, sinceramente, acho que foi bem aí, foi aquela casca de banana jogada por um idiota sem educação, que tem coragem de jogar lixo no meio da rua que fez o meu irmão se perder. As pessoas podiam ter mais noção do que fazem. Há alguns dias atrás, quase pisei sem querer numa barata no meio da calçada, de tantas infestações na rua hoje em dia. E ninguém tem consciência das consequências que isso pode acarretar. Logo os chineses vão começar a catar baratas nas ruas da nossa cidade para cozinharem o jantar. Que nojo.

- Nem sabia que ele era de família rica. Conheci ele na rua. Achei estranho um menino de rua tão branquinho, com rostinho tão saudável, barba rala, morando na rua. Achei que era drogado fugido de casa ou abandonado pela família. Mais um perdido pro crack. Depois descobri que não. Ele ficava morrendo de medo de alguém conhecê-lo, ficava perguntando o tempo todo se as pessoas eram enviados dele. Dele, quem? Do pai? Acho que nem ele sabia responder. Depois que conversava mais, se acalmava. Falava que tinha tido uma revelação. Era gente boa. Isso de ser iluminado, de ter revelação, esse tipo de coisa nem me chamou a atenção, eu tenho muitos conhecidos da rua que falam que são iluminados, que compreendem tudo e que a gente não sabe de nada, que não tem condição de compreender. Mas estão morando na rua que nem eu. Mas, como eu disse, ele nunca ficava no mesmo lugar. Perambulava pela cidade inteira, deve ter passado por todos os bairros que existem aqui. Esse medo dele era mesmo muito forte. Acho que, nessa altura, já deve ter pego um ônibus e deve estar bem longe daqui. Ele tinha uns olhos brilhantes. Morador de rua, em geral, costuma ter os olhos bem perdidos. Ele, não. Ele tinha uns olhos diferentes.

- Sempre soube que esse menino ia se perder. Sempre o achei meio sinistro. Especialmente depois da minha conversa com a sua professora de história. Eu não vi a discussão, mas me senti obrigada a reportar isso aos pais do garoto. Hoje em dia, com esses massacres que a gente vê nas escolas pela televisão, que ficaram tão comuns em outros países, eu me sinto na obrigação de verificar como estão todos os alunos. A nossa escola se preocupa com o bem estar de todos. Eis o ocorrido: a professora de história estava discorrendo sobre religiões e decidiu perguntar, como mote para a aula, a religião dos integrantes da classe. As respostas dos alunos não tinham nada de fora do comum, ela disse. Depois, questionou se havia alguém que não acreditava em deus ou que era agnóstico, e dois estudantes se manifestaram nessa posição. Acho estranho haver jovens assim hoje em dia, mas todos são livres para escolher, especialmente na nossa escola, que é muito liberal, mesmo que isso possa implicar algo ruim depois da vida deles. Pois justamente o Andrei não se enquadrava em nenhuma das perguntas, tinha sido o único a não levantar o dedo em nenhuma das questões. Ela, então, decidiu perguntá-lo que crença professava. Ele respondeu que não acreditava em deus algum, nem que deixava de acreditar. Achava que o problema maior era se nós éramos manipulados. A professora passou a discorrer algo sobre manipulação dos meios de comunicação, mas ele a interrompeu dizendo que não era a isso que se referia. Ele queria saber se nós éramos manipulados por algo acima de nós. Perguntou o que era exatamente destino. Acrescentou que tinha horror a frases como “tudo acontece por uma razão”, “tudo tem um sentido maior”, que nós não estávamos aqui à toa. A aula se perdeu por aí, provavelmente, com todos discutindo ao mesmo tempo se estávamos aqui por acidente ou se havia uma razão por trás de tudo. O debate havia sido arruinado. A professora me contou que o achava interessante, inteligente. Diferente!, ela disse. Eu achei melhor conversar com os pais dele para perguntar se ele estava agindo normalmente fora da escola. Você sabe, esses massacres. Eu me preocupo, eu tenho que me preocupar. Os pais andam processando as escolas, os professores, até mesmo os zeladores. Se a gente toma medidas disciplinares contra os jovens, também entram na justiça pedindo danos morais. Se eles se dispersam, se reprovam em alguma matéria, transferem-no imediatamente para outra escola. E também nos processam, nos denunciam, nos caluniam na internet. Assim, não vejo outra opção a não ser conversar com eles sobre os filhos, antes que venham em cima de nós. Tem pai que nem sabe direito o último corte de cabelo do filho. Os dele até que sabiam, mas não educaram direito. Agora sumiu, quer dizer, ninguém sabe onde está!

- Ele me deu uma dica que mudou minha vida. Eu pedia dinheiro na rua, não conseguia arrumar emprego. Já viu, sargento, com esse meu lábio estragado aqui ninguém quer me empregar. Também não tenho estudo. Pedia esmola na rua e o que eu ganhava quase não dava para comer. Dormia na praça ali no centro, que foi o lugar onde conheci o rapaz. Ao ver meu estado, me deu umas roupas limpas e disse que eu tinha que pedir dinheiro com roupas que me fizessem parecer gente fina e rica, sabe. E eu pensei e falei pra ele: porque iam dar dinheiro para alguém que já parece ter dinheiro, que coisa mais maluca! Ele me respondeu que a lógica era essa, que as pessoas costumam dar dinheiro para pessoas parecidas com ela, do mesmo grupo. Quem pode dar dinheiro tem dinheiro, então tem que parecer que tem dinheiro pra poder ganhar dinheiro deles. Ele me mostrou como era. Durante uma semana, eu  acompanhava ele em semáforos espalhados pela cidade. Ele enchia o cabelo de tinta e de farinha, dizia que precisava de dinheiro por causa de um trote dos calouros da faculdade. E ganhava muito! Fazia mais em uma hora do que eu fazia em um mês! Todo mundo dava dinheiro pensando que ele era um playboyzinho que tinha que arrecadar dinheiro pra pegar suas roupas de volta na universidade com os veteranos. Como eu sou mais velho, passei a vestir uma camisa limpa e ajeitada, uma calça bem passada e dizia que tinham roubado minha carteira e que eu precisava de dinheiro pra tomar um táxi de volta pra casa. Rapaz, comecei a ganhar notas de 20 pra cima. E eu quase nunca ganhava nem moeda de 1! Hoje alugo uma casinha que é uma beleza, e compro muitas roupas ajeitadas pra continuar. Tenho pena dos pedintes normais, que usam uns farrapos de dar dó e ficam o dia todo implorando por umas míseras moedinhas de centavos. Eles não sabem que gente que necessita de verdade não ganha dinheiro por questões ideológicas do povo que tem dinheiro sobrando. Mas isso eu não espalho. O segredo é a alma do meu negócio. Até vou fazer plástica na boca e, espero, ter ainda mais sucesso.

- Sei que outras pessoas devem me julgar mal, mas sempre foi enriquecedor dar aulas ao Andrei. Suponho que a diretora já tenha mencionado o episódio das religiões na aula, já que, da maneira mais inesperada, meu relato a levou a chamar os pais dele ao colégio para esclarecimentos, encontro do qual eu tive que participar. Naquela ocasião, eu já pensava que estavam preocupados por motivos equivocados. A questão central daquela conversa não era se Andrei acreditava em Deus ou se essa eventual dúvida na sua cabeça significava algum estado de espírito depressivo ou, quem sabe, perigoso. O que me chamou a atenção foi que ele manifestou repulsa à ideia de que as pessoas não vivem à toa, que exista um sentido, um propósito maior para tudo isso que chamamos de vida ou de história. Isso eu nunca tinha visto antes em sala de aula. Enfim, notei que ele mudou muito naquele período. Tornou-se mais disperso, olhava para o lado o tempo todo. Para evitar que piorasse seu rendimento, pensei em chamá-lo para conversar durante um recreio, mas deixei isso para lá e agora me arrependo de não ter feito isso. O fato de Andrei ter tomado conhecimento da ida dos pais à escola deve ter precipitado ainda mais suas atitudes posteriores.

- Can you translate that? Oh, you speak English. Yes, he applied for a visa. He was under age, so we told him to ask his parents to sign the forms he had filled in, but he never showed up again. I was told he went to other Embassies as well. That is all am aware of, all I can testify.

- Meus pais vão saber disso? Não? Vocês prometem? Tá bem. Pô, eu matei umas aulas e cheguei a conversar com ele algumas vezes naquele boteco de sinuca da esquina da escola. Ele era até bom de sinuca, mas eu era mais bem treinado. Um dia ele veio com um papo de que estava cansado de aulas e tudo isso, que não queria ser mais como todo mundo. Eu penso a mesma coisa, tá ligado. Esse negócio de ir pra escola, depois trabalhar, casar, ter filhos, netos, só pensar em dinheiro, essa merda toda, não tem nada a ver. Todo mundo igual, todo mundo padronizado. Eu sou diferente, sou original. Sou mais eu. Pior que isso só ser policial pra vigiar se tá todo mundo se comportando direitinho, segundo as regras, tá ligado, sem querer ofender, no maior respeito. Ele disse que ia fugir da própria vida. Achei um papo suicida, daí troquei uma ideia com ele e vi que ele não queria se matar. A gente jogava sinuca, sei lá, eu me lembro disso. Estava tocando Placebo, tinha tudo a ver. Enfim, sei lá. Acho que ele fumava maconha, tá ligado. Eu nunca fumei, nem sei como é.

- Um dia, chegamos em casa. O quarto dele estava praticamente igual. Achávamos que ele tinha saído de casa para ver a namorada. Ele era muito apaixonado. Posteriormente, notamos que ele não voltava, e decidimos ligar para a casa dela. Ela tampouco sabia de nada. Depois de algumas horas ligando para alguns amigos, parentes, sem notícias, nos desesperamos e entramos em contato com vocês, para nos ajudarem. Já faz meses que ele sumiu. Eu não aguento mais isso, eu não entendo como foi acontecer. Eu não entendo, não entendo, de verdade. Ele sempre foi amado pela família. Demos de tudo o que ele podia precisar.

- Ele me disse que não sabia mais se me amava para sempre. Começou a me dizer que não gostava de pensar que tinha nascido para mim. Eu achava que tinha nascido para ele. De verdade. E disse isso a ele e chorava quando ele dizia que ele não tinha nascido para mim. Era tão cruel, eu achava que ele dizia isso de maldade ou só para me testar. Eu acho isso, ainda, que nós estamos predestinados. Eu sinto isso. Sinto que ele se lembra de mim. Mulher sente essas coisas. Mas não sei se vou esperar para sempre.

- Alucinação. Alucinação completa. Ele dizia que a vida o perseguia. Quero dizer, que tipo de conversa é essa? Ele disse que havia um plano de fazer com que todo mundo fosse um personagem de uma história que era escrita, ou pensada, ou imaginada, ou tramada, ou era assistida, sei lá, por alguém e da qual ninguém conseguia escapar. E que ele sentia que algo mais forte do que ele o forçava a voltar a viver a vida de sempre, mas que ele tinha consciência disso e que ia fugir. Que nada na vida dele seria imutável, que nada estava assentado. Que ele era livre, que ele era o autor da vida dele. Se você perguntasse o nome dele, ele alucinava. Começaram a chamá-lo de Noia. Mas, para te falar a verdade, ele não agia tanto como louco. Era só essa ideia fixa que ele tinha. Era uma coisa arraigada bem no fundo dele. Teve um papo de casca de banana, mas não me lembro direito disso. A gente riu muito. A filosofia da banana! Estudava em escola cara, parecia sabido. Mas era bem pirado, sempre preocupado com a possibilidade de alguém estar espiando. Sim, tinha algo a ver com possibilidades, com sorte. Que azar ele teve. Tem lanche aqui? Estou com fome.

- Todo dia a gente conversava até tarde, antes de ele voltar para a casa dele. Ele me deixou um presente pouco antes de sumir, um colar com o símbolo do infinito.

- Andrei? Ele tinha documentos com outro nome, mas a foto confere. Tinha cabelo meio desgrenhado, dizia que iria viajar durante um tempo. Que só voltaria quando tivesse certeza de que tinha realmente escolhido tudo o que tinha acontecido a ele. Era bastante articulado. Impossível cogitar que tivesse fugido de casa ou fosse dado como louco. Eu gostei muito dele, mas nem endereço de e-mail me passou. Fiquei apaixonado, mas ele alegou que só era gay aquela noite, que depois era outra coisa. Fiquei triste. Mas foi sincero. Eu sempre admirei a sinceridade. Ele queria morar numa cidade bem diferente. De preferência, um país diferente. Disse que estava buscando o outro. Não entendi, daí ele me disse que não acreditava na busca de si, que era apenas mais uma prisão. Ele ia buscar o outro. Foi um acontecimento. Ele tinha esses olhos brilhantes e sinceros.  

- Não sei o nome, mas é esse mesmo da foto. Conversamos no bar. Acho que era líder de uma seita na cidade vizinha. Tenho certeza de que foi ele quem roubou minha carteira aquele dia.

5 comentários:

Carolina Pelegrini disse...

o Andrei parece ser um cara interessante!! Muito bom!!

Jana disse...

Mathias, no início pareceu até irmãos karamazov, mas depois pareceu ser você e depois pareceu ser todo mundo.. acho que eu tô despertando o Andrei dentro de mim também..e nem escorreguei numa casca de banana.. muito massa, avise de novo no próximo post..

itaney disse...

Também achei muito legal, meio caleidoscópico, com relatos sobre vários ângulos, observações subjetivas e objetivas dos personagens e verossimilhança que impressiona. Matéria rica pro Italo, como psicanalista, traçar um perfil psicológico dos personagens...Muito bom, Matheus...um abraço afetuoso!

José Carlos Camapum Barroso disse...

Todos nós conhecemos alguns Andrei na vida. Ou temos alguns dele dentro de nós. Pode não ser com esse nome, mas certamente a fotografia sempre nos fará lembrar de algum momento da vida dele. O texto é vibrante e segura o leitor até o final. Gostei muito. Parabéns.

juracema Camapum Barrroso disse...

Achei os personagens interessantes, intensos, dando um pouco de nós, ou de todo mundo, me senti aqui e acolá, durante a narração . Bravo ! Excelente !