Escrever, escrever
até se perder
E se encontrar
em outro lugar.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
Ex abrupto
O Calango tinha despirocado de
vez. Tinha perdido a conta de quantas vezes tinha dito aquilo. Tinha prevenido
até a Gabi. Mas “não, ele era muito exagerado”. Estava “puta passando mal”.
Agora, quem ia lá verificar se ele tinha surtado ou se estava vivo hoje? Não
atendia o telefone de jeito nenhum. Porra, Calango. Aquela calça já não entrava
mais nele. Tinha que diminuir a cerveja. Ou poderia diminuir os petiscos. Como
todo mundo podia ter achado normal uma pessoa ficar enfurnada em casa três
meses seguidos? Se é que ficou. Ninguém se deu ao trabalho de saber. O cara
tinha largado o emprego e passado a trabalhar online nesse treco de webdesign,
somente para ganhar o suficiente pra continuar adquirindo café, cigarros,
maconha e pizza no delivery em
quantidades suficientes para sobreviver. Alguém tinha que interditar aquela
profissão de webdesign, que permite a
um cara esquisito ganhar dinheiro suficiente para viver à parte da sociedade, só
na base de entrega a domicílio. E interditado o Calango, especialmente. Que só
assistia seriados baixados na internet toda noite, a noite toda.
Alguns chegaram a visitar o cara.
Só no início, é claro. Depois, todo mundo sumiu. Quando ele aparecia, o Calango
ficava lá, olhando pro lado, assistindo televisão e falando umas paradas sem
sentido. O cara estava pirando, mas sempre na maior calma. Queria sair? Não.
Tinha uma temporada nova de um seriado norte-americano qualquer pra assistir.
Queria ir ao cinema? Não. Tinha trampo. Bar? Não. Nada. O cara até arrumou o
telefone de um lugar que entregava cigarros em casa. E todo mundo achando
tudo aquilo muito normal. Alguém devia era pegar a lista com os nomes dos caras
que pedem para entregar cigarro na casa deles e mandar para alguma instituição
psiquiátrica. Para fazer um tratamento preventivo. Mas sempre que ele
comentava, era um “pô, Roneba, deixa o cara” ou um “deixa de viajar”. Era o
mesmo papinho da ex dele. “Não é que você esteja super trabalhando, meu
querido”. Caralho. O cara estava definhando e ninguém achava esquisito.
Ele precisava ligar imediatamente
o computador. Sua cabeça estava quase explodindo. Não fazia muito sentido ter
acordado ali na cama dele (travesseiro com fedor de cigarro) depois daquilo.
Gosto ruim na boca (de cigarro na língua e na gengiva), uma caca nas mãos
(cheiro de tabaco e de nicotina). Parecia que havia sonhado com uma mulher
afogada. Ou atropelada. Era tipo uma ressaca sem que tivesse rolado álcool na
noite anterior. Será que aquela história da ex do Calango era verdade? Mas aí
ele não teria ficado em casa aquela noite. O computador lento de tão abarrotado
de músicas e filmes e livros que ele não escutava nem via nem lia. Cheiro de
pasta de dente na boca de manhã era bom. Ele podia agora cuspir o nojo e a
angústia. Tinha de tomar banho naquele banheiro onde deveria haver uma placa
avisando: “inapropriado para visitas”. Inapropriado até para o morador. No
entanto, depois do café da manhã, viraria outra pessoa. A cachola com ideias
mais claras. Precisava de café.
Mas não tinha café na casa. E não
existia nada pior do que nescafé. Ou, pensando bem, pior do que nescafé, por si
só, era tomar o resto do pó do nescafé que a ex-qualquer-coisa tinha deixado na
casa dele uns 9 meses antes. A escrota tinha ido embora, já estava namorando de
novo, e ele continuava com o pó de nescafé dela
no armário da cozinha (além de duas blusas misturadas com suas cuecas, na
gaveta de cima do guarda-roupa, dos produtos de maquiagem espalhados pelo
banheiro inabilitado há meses para visitas – e para moradores - e do cheiro
dela, que impregnava a casa inteira). Nescafé era uma porcaria, mas ele ia
tomar porque precisava de café, embora aquilo não pudesse ser considerado café.
E aquela porcaria nem despertava ninguém. Ainda por cima um nescafé com o
cheiro da Aline. Lembrou da sua viagem pro Chile. Lá, ele tinha que pedir “café
café”. “Café”, pura e simples, era nescafé, pura e simples, por mais incrível
por possa parecer. Nescafé. Como uma nação inteira podia achar que nescafé poderia
ser equivalente a café? E ainda tinha os Estados Unidos. Se brincar, o café
americano do Starbucks era ainda pior que nescafé. Ele tinha discutido isso com
a ex-qualquer-coisa (ele falava assim, às vezes, e às vezes até pensava assim,
mas sempre se lembrava que a ex era a Aline: a não-mais-sua Aline) várias
vezes. Saudade da máquina de espresso. Ele deveria ter ficado com ela. A Aline tinha
levado tudo o que havia de melhor na casa, mas tinha largado o nescafé. Que
deixa esse gosto desgraçado na boca. Na hora do vamos-ver, de dividir as
coisas, não ouviu defesa alguma do nescafé. E esse barulho insistente? Cadê
aquele celular (nove chamadas não atendidas), que não parava de tocar? O
celular, claro, estava entre as almofadas do sofá furado e inapropriado para
visitas onde ele havia dormido.
- Alô! Quem? Ah, fala, Batata.
Putz... Sério? Caralho... Puta que pariu... Então é isso mesmo... Estirada na
rua? Eu ainda não estava certo dessa parada desde que eu acordei... Foi.
Agorinha. Pode crer... Agora tô aqui lembrando: tentei falar com ele de
madrugada, mas ninguém atendia. Mas o Calango também não atende o telefone de
ninguém já faz uns dois meses. Será? Cara, tenho medo de especular. Não tô
sabendo de nada. Mas também não duvido. Vou me arrumar por aqui e vou dar uma
chegada na casa dele. Tá por dentro de algo sobre a família dele? Alguém chegou
por aqui? Se ele tem algo a ver com isso? Você acha? Puta merda. Ele disse
isso? Não, não sei. Não sei de nada. Eu vou lá agora mesmo, bicho. Melhor eu
checar o cara. Falou.
Precisava dar uma olhada no
computador. A notícia estava disseminada. Coitada da Luiza. Era tão linda. Não
que fosse pior por ela ter sido tão linda. Mas ela era. Linda, digo. Coitada.
Às vezes, era meio convencida, mas até que era gente boa. E linda, além do mais.
Largada no meio da rua, daquele jeito horrível... A Elis havia dito que tinha
acontecido no início da subida da avenida Humaitá. Mais ou menos à 1h da manhã.
Todo o pacote da morte de jovem do sexo feminino em uma avenida deserta no meio
da madrugada. E já haviam começado as correntes: as de ódio aos criminosos e as
de pensamentos positivos para a alma da Luiza e para a família e para os
amigos. Ele odiava correntes. Alguns já estavam postando teorias e insinuações sobre
o Calango. Mais uns minutos e começaria o linchamento moral. Filhos da puta. Tinha
que sair, mas não queria dar de cara com ninguém no ônibus. Resolveu encher os
pneus da bicicleta que ele não usava havia dois anos.
Saiu para a rua meio ansioso, mas
com um único desejo imediato: não encontrar ninguém conhecido. Poderia até
mesmo cruzar com o assassino da noite anterior. Isso não lhe traria, afinal,
nenhuma angústia. As caras são, afinal, sempre as mesmas. Ouvia o barulho
incessante das buzinas. Ele poderia, talvez, cruzar com uma namorada antiga
(desde que não fosse a escrota da Aline). Não veria sequer uma marca,
provavelmente sequer uma lembrança, de que ela já tivesse lhe dado um beijo
algum dia. Percebeu uma velha com um cachorro, na calçada. Estava lá, agora,
passeando calmamente com o cachorro cagando pela calçada inteira, enquanto o
marido estaria tendo um ataque fulminante do coração. Seria bom ver um
acidente. Poderia tirar sua cabeça daquilo. No dia anterior, tinha morrido um
ciclista, atropelado. Mas nem repercutiu. “Acidente”. Mas o negócio da Luiza
seria diferente. Não tinha sido“acidente”. E ela era jovem. E linda. E até
gente boa, na opinião de alguns. Mas, acima de tudo, ela era rica. Alguém ia se
ferrar. Chegara a seu destino. Um prédio velho, com cor de lata de lixo velha.
Como faria ele pra subir com a bicicleta naquele prédio sem elevador?
Três lances de escada. O porteiro
tinha dito que ele estava. Mas ninguém atendia. Ele ia ter que descer as
escadas. Merda.
- O Carlos não está atendendo a
porta. Toquei a campainha várias vezes. Bati na porta. Esperei uns 10 minutos,
e nada. Certeza que ele está no apartamento?
- Vou falar uma coisa pro senhor.
Certeza que ele está aí. Ele entrou faz pouco tempo. Pode ser que esteja
dormindo. Passou a madrugada inteira fora. Vou falar pro senhor porque sei que
o senhor é amigo dele. Mas a polícia veio aqui perguntando por ele e levou ele
pra delegacia. Foi o porteiro do turno anterior que me contou. Depois eu fiquei
sabendo do negócio da namorada dele. Era uma moça bonita que só, mas nunca mais
tinha visto ela aqui no prédio. A notícia está se espalhando rápido. Tem
morador aqui que está com medo. O senhor sabe se saiu mais alguma coisa na
televisão? Veio uma mulher aqui perguntando por ele, parecia jornalista, mas eu
achei que era melhor não dizer coisa nenhuma. Vai que. Mas ele está lá, sim.
Ele voltou faz umas 2 horas. Eu posso interfonar lá pro senhor.
O típico porteiro fofoqueiro.
Conta tudo pra todo mundo e diz que só está comentando aquilo com você. Ele
deve estar com medo. Ninguém entende uma coisa dessas. Mas todo mundo começa a
julgar imediatamente. E todo mundo adoraria dar uma opinião e aparecer no
jornal.
- Se você puder interfonar...
- É... Senhor Carlos? O seu
amigo, o Ronaldo (é este o seu nome, né?), está aqui embaixo... - O porteiro,
então, olha pra mim, com uma cara interrogativa, quase de súplica, e diz com a
cara enrugada: – O seu Carlos disse que o senhor pode subir.
Subiu de novo e viu a porta
semiaberta. Depois que entrou no apartamento, o Calango, sem dizer nada,
assomou com uma cara de quem não dormia havia um mês. Deu um “oi, cara”, olhou
para os dois lados do corredor depois que ele entrou na sala, e fechou a porta
a chave. O apartamento estava encoberto de fumaça de cigarro. O cheiro era de
incenso misturado com tabaco. Que lixo. Estava ainda pior que o apartamento
inapropriado dele. Aquele apartamento não via uma faxina havia pelo menos seis
meses, a julgar pelo aspecto dos restos de comida sobre a pia da cozinha. A
televisão, como sempre, estava ligada. Perguntou como ele estava.
- Você viu o que aconteceu? Todo
mundo já sabe? No jornal? É... Eu estava aqui, de boa, quando me interfonaram
dizendo que a polícia estava lá embaixo querendo subir pra falar comigo. Pra
você ver como eu estava por fora de tudo, a primeira coisa que eu fiz foi
apagar o baseado que estava meio aceso na mesinha de centro e jogar fora toda a
maconha que eu tinha aqui em casa pela privada. Enquanto eu puxava a descarga,
já tinham começado a bater forte na porta, mandando eu abrir. Depois de entrar,
os dois guardas começaram a gritar comigo, perguntando o que eu tinha feito nas
horas anteriores. Mal comecei a falar, eles me perguntaram da Luiza. Surtei.
Não tinha sacado porra nenhuma. Me fizeram umas perguntas sobre facas, sobre
estupro, e já me deram logo uns 3 tapas bem fortes na cara, me levaram pro
corredor do prédio e revistaram todas as minhas coisas. Sem mandado, sem porra
nenhuma. Depois de uns 15 minutos, me levaram pra delegacia. Fiquei
praticamente a noite inteira lá. De passagem, vi o irmão da Luiza, estava com a
cara inchada, conversando com outros policiais. Mas foi tudo muito rápido. Depois,
me interrogaram por horas. Perguntavam sempre as mesmas coisas, várias vezes.
Eu não tinha nenhum álibi. Insistiram muito na escada de incêndio. Como o
porteiro disse que não tinha me visto saindo, concluíram que a única maneira de
eu ter deixado e entrado de volta no prédio seria por ali.
O Calango gostava de usar aquela
saída por fora quando ia comprar cerveja ou cigarros no meio da noite. Para
evitar algum vizinho que pudesse estar puto com o barulho da música e da
conversa alta. Às vezes, era até exagerada a frequência com que usava uma
escada de incêndio cujo estado era, pra dizer o mínimo, precário. Mas não era
horar de fazer nenhum comentário. Era tudo muito desconfortável. Não sabia se
devia dizer algo. E o Calango desse jeito maluco beleza dele, acendendo e apagando
o mesmo cigarro várias vezes, até resolver continuar a história.
- Ainda não consigo acreditar que
a Luiza tenha morrido. Isso só ficou claro pra mim depois de muito tempo na
delegacia. Eu continuava com a cabeça no lance do baseado, dos vizinhos, sei
lá. Até que me veio, tipo assim como uma martelada na cabeça. Eu não consigo
deixar de pensar como ficava o tempo todo pensando que minha vida poderia estar
bem melhor se ela nunca tivesse existido, ou se eu nunca a tivesse conhecido. E
eis que. Me sinto culpado. É como se tivesse acontecido algo que eu estivesse
desejando loucamente por meses. Foi a primeira coisa que passou pela minha
cabeça. Depois de ter pensado isso, me desesperei. Vi que nunca mais poderia ver
a Luiza na vida. Eu ainda pensava bastante nela. Gostava muito, só que ao
contrário, entende. Foda. Ela era... – ele senta no sofá manchado por diversas
cascas de comida e com alguns rasgos, como se ali morasse um gato invisível –
...ela era linda. Sei que todo mundo acha que eu ainda não tinha conseguido superar
o fim do relacionamento. Mas eu estava de boa aqui. Um maluco recém-solteiro,
em geral, vai a todas as festas, bebe mais do que devia e passa a vida entre a
bebedeira e a ressaca, ficando com todas as pessoas que vê na frente. Como eu
não fiz isso, pensam que enlouqueci. Louco é quem pensava que eu estava dando
pala aqui.
Enquanto ouvia os devaneios do
Calango, achou melhor fumar outro cigarro (a história de fumar tinha
definitivamente ido pro pau). Mencionou que alguns amigos dele (não ele, é
claro) poderiam estar bolados com ele, talvez de forma exagerada. Mas que era para
o bem dele.
- Enquanto eu estava na delegacia,
só queria ir embora. Depois que saí, saquei que o pior ainda estava por vir.
Meu celular estava abarrotado de mensagens me xingando de filho da puta pra
pior. Você não tem ideia de como estava meu perfil do facebook, que eu já
deletei. Uma carta anônima cheia de ameaças foi passada por baixo da porta do
meu apartamento. Nem sei como o cara entrou no prédio. Eu já sou culpado para
todo mundo. Eu estava na viagem de ir ao enterro dela, mas agora estou certo de
que seria linchado se aparecesse por lá. Estou com medo de que algum morador
venha até aqui pra me matar. O pior é que eu entendo essa parada. É muita dor.
Só espero que esse sofrimento todo não se transforme em ódio contra mim.
Engraçado como as expectativas da gente mudam rápido. Eu queria ser acolhido
pela família dela, e agora só espero que não me matem. Até ontem, eu tinha
vontade de ficar mais sozinho. Agora, isso não é mais questão de escolha: eu
estou irremediavelmente sozinho. Não tenho ninguém. Você foi o único que falou
comigo, além dos meus pais. Estão providenciando um advogado. Ainda bem que, de
tanto ter ficado em casa, elaborei um esquema que me permite quase não sair pra
manter uma parada básica de sobrevivência. Peço quase tudo via internet ou pelo
telefone. Te contei que eu descolei o telefone de um serviço de entrega de
cigarros? Acho que vou perder todos os freelas que tinha arrumado. Vou ver se
pego emprestado algum dinheiro com meus pais. Enfim, rodei.
Decide acender outro cigarro. O
Calango fuma um atrás do outro. Mantém os olhos para baixo, como se estivesse
procurando alguma coisa naquele chão imundo. Então, começa a tossir para limpar
a garganta.
- Você não tem ideia. Pelas
mensagens que recebi, as pessoas estão convencidas de que a Luiza foi
estuprada. Só que, depois de horas de interrogatório, um policial deixou
escapar que não havia evidência alguma de violação. Mas, para todo mundo, eu
sou assassino e estuprador. Você acha que isso vai mudar? Eu duvido. Se
disserem que não houve estupro, vão dizer que eu subornei a polícia. Se nunca
descobrirem quem a matou, vão sempre apontar para mim como o escroto que
conseguiu enganar todo mundo. Eu já me ferrei, de qualquer maneira. E pior que
ainda me sinto mal por reclamar. Quem se ferrou de verdade foi a Luiza, que não
merecia aquilo. E a família dela. Houve um momento em que os policiais quiseram
me mostrar o corpo dela. Eu me recusei a ver. Depois de ter saído da delegacia,
fiquei pensando no cadáver dela. A imagem está encravada no meu cérebro. É uma
punição. Eu desejava secretamente que ela não existisse mais, e agora que ela
morreu, eu tenho que sofrer as consequências por ter sonhado tanto com isso. Faz
sentido.
Não fazia nenhum sentido. Ele
estava surtado. O que ele mais desejava naquele momento era que o avião com os
pais do Calango pousasse na cidade nos próximos minutos e tentasse conter
aquela bomba relógio. Vai que ele tentasse o suicídio, por exemplo. Ou que
fizesse uma confissão sem ter cometido o crime. Tinha ânsia de retirar todos os
objetos cortantes daquele apartamento. O caos, no entanto, era espantoso. Era
preciso encontrar uma faxineira antes mesmo de contratar um advogado. E aquele
monte de lorotas que ele estava falando ali. Ou ele era um completo idiota, ou
estava mentindo descaradamente sobre essa história de dizer que tinha superado
a história com a Luiza. Era o único que não percebia o óbvio. Tinha medo de
deixá-lo sozinho com a cabeça pirada daquela maneira. Por outro lado, tinha
medo também de ficar sozinho com ele e ficar com a cabeça pirada daquela
maneira. Precisava sair para pensar um pouco. Aquele ambiente estava irrespirável.
Inventa uma desculpa, de que os pais dele estavam esperando-o em casa, e se
despede do Calango. Ele diz “beleza”, e abre a porta. Enquanto percorre o
corredor do condomínio, percebe que o Calango confere novamente os dois lados
do corredor, antes de trancar a porta do apartamento.
O Calango usava aquela escada de
incêndio todo o tempo. Estava se sentindo culpado demais. Tão culpado que
aquilo podia ser indicativo de algo. E se ele de fato tivesse surtado e matado
a Luiza? E se ele nem se lembrasse de ter feito isso? Ou, pior, e se ele
fingisse estar surtado para poder sair impune? Mas ele não tinha conversado
nada direito com ele. Tinha permanecido lá, só ouvindo, com cara de retardado.
E pensar que, ainda há poucos
meses, costumavam sair “de casal”. Calango com a Luiza, ele com a Aline. A
Luiza, claro, com sua atitude ligeiramente superior, mas disfarçada de
“pessoa-que-gosta-de-passar-umas-dicas-legais”. E a Aline com sua mania de
nunca deixar passar nenhuma fala que pudesse ser um ataque disfarçado a ela, o
que basicamente era qualquer coisa que a Luiza falasse. Não era à toa que ele
rapidamente se acostumara a estar sem a Aline. Menos aos domingos. Ela aparecia
com uns filmes surpreendentes. Ele não poderia, por exemplo, divulgar sua lista
de filmes preferidos porque ela certamente veria e comentaria algo do tipo “fui
eu que mostrei todos pra você”. Ela era insuportável. Não entendia como podia
ter durado tanto tempo. Mas já quase não pensava mais nela. Não estava como o
Calango, fumando baseados e assistindo seriados enlatados, com a barba por
fazer, eternamente em
casa. Não. Estava socializando em bares, em festas, em todo
lugar. Uma vida saudável. O número de contatos de sua agenda era 60% maior que
três meses antes. Ela, como era de se esperar, começou a namorar logo depois. Ele
nem ligou. Ele não sentia saudades. Não sentia saudade alguma. Talvez, quem
sabe, um domingo ou outro. Se a Aline morresse, subitamente, ele não passaria
por um colapso mental. Definitivamente, não seria o principal suspeito do crime.
Este papel agora caberia ao novo namorado. Ele estava livre.
A não ser que todo mundo achasse
dele o que pensavam do Calango. Que ele não tivesse superado a relação com a
ex-qualquer-coisa. Seria possível? Ele definitivamente não estava despirocado
como o Calango. Definitivamente não pensava mais na Aline. Definitivamente,
não. Mas, e os outros? Era possível que todos achassem que ele era o único a
não enxergar o óbvio? Não... Nada a ver. Nada. Não tinha nada a ver pensar
naquilo. Tem que pensa agora no Calango. E no caso da Luiza. O caso da Luiza
era mais importante agora.
Mas não podia fazer nada com
relação à morte da Luiza. Tinha acabado de falar com o Calango. Amanhã,
voltaria à casa dele, para ver se a família havia chegado. E para ver se ele
colocaria o parafuso de volta. Naquele exato momento, porém, estava em frente a
casa da Aline (Aline, não: ex-qualquer-coisa). Não custava nada interfonar. Afinal,
mostraria a ela e a todos que poderia perfeitamente ser amigo daquela menina que
levara a máquina de espresso mas deixara o nescafé. Precisava mostrar a todo o
mundo. E a ela, especialmente. Estava decidido. Ele deixou a bicicleta
acorrentada no poste habitual, tentou remover um pouco do cheiro de tabaco da
roupa, comprou um chiclete no quiosque do Chico (“há quanto tempo, Roneba!”) para
tirar o bafo, sentou-se por cinco minutos nos degraus da escada na entrada do
edifício. Após certa hesitação, apertou o botão do interfone do apartamento
304. E começou a suar e tremer. Não esperava isso. Certamente, era por medo do
gênio dela. Por isso. Não sentia saudade alguma dela.
Ela atendeu o interfone. Depois
de perguntar duas vezes quem era e reconhecer a sua voz, perguntou se ele
queria subir. Ele disse: “quero, sim”, de uma maneira bem tranquila,
descompromissada. Enquanto esperava o elevador, perguntou-se várias vezes se
deveria estar ali. Mas convenceu-se de que havia tomado uma excelente decisão.
Não podia deixar que acontecesse com ele o que havia ocorrido com o Calango. O
que ele se dizia, enquanto o elevador subia, era que, com ele, seria diferente.
Logo, ela precisava saber, por ele, que tudo estava perfeitamente bem. Era
melhor dar só uma olhadinha no espelho e praticar antes de tocar a campainha: “Olá,
Aline! Tudo certinho?”
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