quarta-feira, 25 de março de 2009

Tatuagem

- Bom dia!
- Bom dia. Até que não acordei com ressaca. Queria só tomar um banho antes de sairmos.
- Tá. Acho que é melhor você já levar tudo e deixar no locker da estação central. De lá, fica mais fácil depois ir pro aeroporto.
- Tudo bem.
Engraçado como mal vejo meu corpo quando faz frio. Até estranho ver minha pele de novo. Sempre avalio se estou igual, se ainda tenho o mesmo corpo desde a última vez que o vi. Pele seca, sempre, no inverno. Acho que não estou acostumado. Quem sabe, se eu morasse aqui por anos, minha pele mudaria.

(Um acesso. Meu interior. Como chegar? Se eu cortasse minha pele inteira, veria primeiro fluir sangue e, a seguir, minhas entranhas, meus órgãos, um a um, mostrando suas formas e superfícies meu coração, meu cérebro, fígado, pâncreas, fêmur, masséter, estômago. Assim por diante. Meu corpo׃ eu?).

- We’re leaving! Goodbye!
- Oh, I didn’t know it. Well, t’was very nice to meet you.
- It was very nice to have met you. Hope you enjoyed the party last night. Come back soon?
- Well, hope so. I liked the party very much. So, bye bye!
- Goodbye. Have a nice trip back. You’re going to Geneva, right?
- Yeah. Then I go back to Brazil.
(…)
- Eles são legais, né! O Luke é muito gente boa.
- São, sim. Acho que ele ficou meio perdido ontem. Talvez mais perdido do que eu, que não conhecia ninguém.

(Quem eu realmente sou. Ao proferir a frase, ao proferir qualquer frase, penso imediatamente sobre ela como algo exterior a mim. Passado, não presente. A frase tentou me definir, não define mais. Um eu que não existe mais).

- Você está chateado por causa de ontem?
- Não, nossa, nem me lembrava mais disso. Parece que tá mais frio hoje.
- Eu achei o contrário. Vamos ver se dá pra gente passear um pouco. A gente come num restaurante afegão baratinho, 5 euros e pode comer o que quiser. Depois passeamos um pouco.
- O restaurante é bom? Tipo... é barato e bom?
- Claro, a gente adora.

(Tenho comigo minhas opiniões. E as dou numa série infinita e enjoativa de palavras. E logo após dar essas minhas opiniões, penso: mas é essa a sua opinião? Sou cheio de opiniões sobre minhas opiniões. E opiniões sobre elas, também. Sempre contraditórias. Eu simplesmente não me reconheço).

- O aeroporto é mais distante do que eu me lembrava. É engraçado ver a paisagem pela janela. Sempre acho triste essas árvores sem folhas. Tudo se resume a tons castanhos e cinzas. No Brasil, isso nunca acontece. Por outro lado, no verão europeu, parece haver mais árvores coloridas: vermelho, amarelo, verde, branco. No Brasil, as árvores quase sempre se resumem a vários tons de verde.

(Papel de mim mesmo, representação de mim mesmo. Performance. E um espectador de mim mesmo, lugar privilegiado na platéia vazia e escura de um enorme teatro. Apreciei algumas de minhas pecas, deplorei outras. Vez por outra, não reconheço o protagonista. Tenho a impressão de que não sou o autor das pecas em que o ator atua. Ao tomar consciência disso, revolto-me. Quem são esses eus em mim? Math/eus. O princípio da identidade falhou comigo. Eu = outro= não-eu. E esses “eus” revezam-se tão depressa, não há nada que os controle ou que dê sentido a eles. Isso é outro clichê. Isso já foi dito antes. “A característica da consciência é ser uma descompressão de ser; é impossível com efeito defini-la como coincidência consigo” - Sartre. Eu odeio esse eu comum).
.

- Olha, seu vôo foi cancelado! Oba, você vai ficar mais um dia!
- Nossa, não acredito! Eu tenho de trabalhar amanhã!
- Klfsdmkwfmk afmkpaggfrmo pvgfrmpvg...
- I’m sorry, I don’t speak German.
- Oh. Well, sir, we can put you in another flight to Geneva, with connection in Munich, instead of Zurich.
- Is it today?
- Yes. At 7pm. Would that be ok?
- Sure.
- Can you register the miles on this company?
- TAM, of course. My Brazilian friends always tell me they don’t like TAM.
- Yes, it’s true. A few friends of mine think alike. But it’s the major company, we cannot escape it. Some people are afraid because of a terrible accident.
- Your bording pass, sir.
- Well, I got upgraded. Business class. Thank you. Goodbye.

(E ainda há tantos outros. Serão todos assim? Não posso saber. Os outros existem? Estarão em mim? Sempre que me apaixono, tendo a pensar como a pessoa por quem estou apaixonado. Penso que penso como ela pensa. Ou seja, penso que penso como eu penso que ela pensa. E assim indefinidamente. Se é que realmente pensamos alguma coisa. Sinto-me triste e perdido quando acho que ela pensa diferente de mim. Sinto-me pior, porque eu queria ser sempre como a pessoa por quem estou apaixonado. Eu a quero em mim. Eu = ela? Não, isso é impossível. E nem seria desejável).

- Dá tempo pra gente tomar mais um café. Vamos ali em cima.
- Nossa, um café por 4 euros. Que absurdo!
- Sabia que você ia fazer esse comentário, haha! Em aeroportos, tudo é mais caro.
- Claro, eu sou sem grana, meu filho!
- Eu pago o café.
(...)
- Bem, agora eu vou mesmo. Vou pra área de embarque.
- Tchau. Te amo.
- Eu também. Vou ficar com saudades.

(Se me canso, é o oposto. Penso que penso exatamente o contrário do que penso que ela pensa. Eu sou tão irritante, inclusive para mim. Por outro lado, é por saber que não existe uma pessoa que seja o contrário do que aprecio – ao qual me identifico – é que não consigo odiar ninguém. Não por muito tempo, ao menos).

Olho para trás, ela está chorando. A sentimental da família. Quer dizer, nem é. A família é sentimental, acho. A única que demonstra. A gente sempre discute e, no final, sempre sinto falta dela. Impressionante. Queria ser como ela, no fundo. Demonstrar as coisas que sinto. Eu choro, mas só por dentro. Não posso mais ver a cena. Aceno: “tchau”. Dirijo-me à sala de embarque, já com saudades.

(A mesma coisa com o amor. Sei que só amo totalmente pessoas ideais. Quando confronto a pessoa que amo, dia após dia após dia, percebo que não amo tudo nela. Talvez esse seja o desafio do amor, do amor que quer durar. Ser bom diante do que não se é ou se gosta. Tentar entender o que não é eu. Em nome do que há de bom no amor. Neste amor concreto, claro. O amor platônico é um erro. O amor romântico é um erro. Eu já errei com tanta gente, tanta gente errou comigo. Se é que me amaram. Talvez tenha sido tudo um sonho).

- Do you have a laptop? If so, you have to take it from there.
- I have no laptop here. Do you think I have to take off the watch?
- It’s not necessary. Please remove any metal objects you have in your pockets.
- Ok, thank you.

(O amor concreto é uma aposta. Eu não acredito em “eu”. Se “eu” existe, não o conheço. Esse eu não é alcançável, muito menos definível. A tentativa de teorizar o eu é uma tentativa de controle que não aprecio e ao qual meu eu sempre foge. E teorizar o outro, ainda menos. “Eu amo você”: a frase não tem sujeito nem objeto estáveis. Mas o verbo - esse sentimento – existe: amar é um verbo transitivo de um algo que não é esse algo a outro algo que não é esse algo. Ainda assim, o amor existe. Não sei dizer como, mas já o senti. O amor é a conversão da ignorância em virtude. O amor, realmente, é uma aposta. A gente pode ganhar ou perder. Não importa o resultado, a aposta em si é uma vitória. Quando penso, aqui sozinho no meio de um país estranho, quando penso naquela vez em que você me sorriu, bem pertinho do meu rosto, eu sorrio junto. E você nem está aqui, está tão longe. Você exerce tanto poder sobre mim. Você está em mim. Como? Eu gosto disso).

- Your passport.
- There you go. There’s a revalidation on page 18.
- Revalidation? I’ve never seen something like it…
- Well…
Silêncio. Por alguma razão, ele olha todos os carimbos espalhados pelo passaporte. Lê a extensão da validade do meu passaporte por muito tempo, como se ele fosse revelar-se com o tempo. Olha para o meu rosto. Folheia novamente o passaporte.

(Resolvi converter minha ignorância completa a respeito de mim mesmo e do mundo numa série de apostas - ou seja, de atos. Porque eu sei que, como sofro, outras pessoas também sofrem. Mais a maioria das pessoas tem bem mais motivos – reais - para sofrer do que eu. Muitas vezes, penso que minha situação privilegiada me retira o direito de sofrer. Mas eu sou só um ser humano e não consigo ser sempre o que eu acho que deveria ser. Falho, incompleto. Eu acredito que, diante do sofrimento, que é real - sentimentos são reais -, a falta de fundamento do agir - que é só uma idéia -, que poderia justificar uma ética baseada na inércia, é insignificante. Em respeito aos que sofrem, resolvo tomar posição e agir.)

- Ok.
- Thank you.
Ele liberou porque meu passaporte é oficial. Se fosse o regular, eu provavelmente seria encaminhado ao chefe dele. Se fosse o normal, o desprezado passaporte de país em desenvolvimento seria visto como o documento de um imigrante ilegal. Mas meu passaporte é de categoria superior. É de imigrante ilegal de categoria superior. Ele tem de pensar mais antes de impedir minha passagem.

(Sei que não tenho fundamentos sólidos, além da própria crença de que os outros sentem coisas similares ao que sinto. Estando esses outros aqui ou em outro lugar ou mesmo em mim. Eu posso estar errado em agir, ou agir de modo errado. Quero ser humilde diante disso. Mas algumas vezes me esqueço, por isso já me desculpo. Muitas vezes aferro-me a uma opinião e penso que ela é a melhor. Muitas vezes, sou mesquinho, orgulhoso, arrogante. Ainda que não deixe transparecer. Tenho preconceitos. Em várias ocasiões, como a maioria das pessoas, adoto opiniões pré-fabricadas por ter preguiça de pensar. Por ser muito mais cômodo pensar como todo mundo pensa. Porque as pessoas gostam mais de você quando você pensa como elas. E eu, como todo mundo, também quero ser amado).

Os passageiros ao redor, na classe executiva. Um nerd alemão rico que estuda um livro, aparentemente de física. Uma executiva? Bonita. Um pouco mais velha. Sim, eu quero champagne. Sim, eu quero comida de avião melhor do que a que o pessoal de trás irá comer. Vinho. Eles cancelaram meu vôo. Precisam me compensar, me tratar bem.

(Agir porque quero ter a impressão - mesmo que falsa - de que sou o autor da minha vida. Quero pensar que estou onde estou por causa de minhas escolhas, não pela falta delas. Porque eu também quero ser feliz, eu tenho de escolher coisas concretas que fazem bem para mim. E porque também é preciso, no mínimo, me defender das agressões dos outros. Ontem mesmo, tomei a decisão de não mais conversar com alguém de quem já gostei muito. Descobri que ela zombou de mim por aí. É muito possível que ela seja uma pessoa melhor do que eu. Reconheço que sou ridículo muitas vezes - eu poderia enumerar diversos aspectos ridículos desse meu eu bem mais ridículos do que o que ela lembrou. Do fato de ela poder estar certa, porém, não segue que eu deva conviver com - muito menos admirar - quem esteja me ridicularizando. Porque quem faz isso com uma pessoa o faz com mais. Porque é muito fácil se deixar influenciar por essa atitude. Porque quero ser tratado como ser humano, não como objeto. Porque tenho o direito de escolher).

- Ladies and gentlemen, we just arrived at Munich airport. The local temperature is 7 º C...
Etc, etc, etc.

(Minhas sensações revezam-se mais uma vez. O ser humano - por extensão, eu - não é estável e não é definível. Por não acreditar em essência de ninguém, por não acreditar em almas, penso que o julgamento de um ser humano é uma impossibilidade. Mas o ser humano age. Somente atos podem ser julgados).

Só mais um vôo. Pouco tempo de conexão. Todo mundo lendo na área de embarque. Eu, também. Finalmente, entro no vôo para meu destino. 50 minutos. Tempo para servir outro sanduíche ruim. Pelo menos eu já considero-o minha refeição noturna. Chego.

(Só agora me lembro porque estou pensando essas coisas: por causa da tatuagem que estou pensando em fazer. Tatuagem é algo que vai, por um lado, contra tudo o que pensei hoje. Inscreve um sinal permanente sobre meu corpo - sobre mim - a partir do qual ele pode ser julgado. Não gosto de ser julgado. E a permanência do sinal contrasta com a decadência e envelhecimento do corpo. Pode tornar-se uma ridícula tentativa de juventude num corpo já muito marcado pelo tempo. Mas compensa atormentar-me por um futuro que possa nunca ocorrer? Por outro lado, a idéia da tatuagem é escrever, no original grego, uma frase escrita na entrada de um templo e que mudou bastante a história: conhece-te a ti mesmo - γνῶθι σεαυτόν. Um projeto condenado, de antemão, ao fracasso. E que, não obstante, deve ser sempre empreendido. Um trabalho de Sísifo que se altera a cada vez que o realizamos. Nem sei se a farei. Não sei o que pensarei amanhã. Por isso meu medo de tatuagens. Eu não concordo com o meu eu do passado).

- Thank you very much.
- Thank you, sir. Good night.
- Good night.

(E estes pensamentos de hoje também se perderão. A própria tentativa de me definir parece mais nobre do que sou. Eu simplesmente não me reconheço. Sou cheio de defeitos, não consigo guiar-me pelos ideais que já proferi. Acredito nas coisas concretas, não em idéias ou opiniões. Eu quero voltar às coisas. Dizer uma falha metafísica é dizer nada. Minhas falhas são concretas. Um problema sério com horários, dormindo e acordando tarde, chegando atrasado ou mesmo não indo a eventos a que prometi ir. Eu falo demais. Escrevo demais. Sou ingênuo em relação às pessoas. Faltei a muitas lições de etiqueta à mesa. Aliás, faltei a várias aulas durante minha vida. Começo e não termino tantos livros - minha estante está repleta de livros que não li. Sou irônico em ocasiões inadequadas. Não tenho um milésimo da sensibilidade, inteligência e criatividade de várias pessoas que conheço. Sou preguiçoso. Cometo erros de português e, não obstante, odeio revisar meus textos).

Será que a bagagem chega dessa vez? Sempre tenho dúvidas se o tempo de conexão foi suficiente para que a bagagem seja transferida para o outro avião. Tá demorando... O que tenho mesmo dentro da mala? Pelo menos, é pouca roupa. Não me lembro de nada de valor. Presentes. Ela vai chegar, vai chegar, vai chegar. Ah, finalmente. Já me via reclamando, mais uma vez, da bagagem. Sei o procedimento de memória. Sei o modelo da minha mala de memória. O comprovante da bagagem está no meu bolso.

(Ao menos tenho o conforto de saber que não uso esses defeitos para argumentar que “sou assim”, que as pessoas têm de me aceitar como sou. Tenho enorme dificuldade em mudar, mas ao menos tenho intenções. Não recrimino, além disso, aqueles que esperam – com razão – que eu não vá chegar na hora determinada. Não argumento em contrário. E como poderia, aliás? O único argumento seria fazer o oposto do esperado. Surpreender os outros. Surpreender a mim mesmo).

- Votre passeport.
Silêncio durante um tempo, enquanto ele folheia meu desacreditado passaporte.
- Vous êtes ici à quoi faire?
- J’suis ici à travail, pendant une semaine de plus.
- À travail... Ok.
- Merci. Bonne soirée.
Silêncio.

(Ora, não tenho do que reclamar. Agora mesmo, subitamente, lembrei-me mais uma vez do sorriso dela, penso que gosto de olhar os olhos dela e de fitar os olhos dela, quando estão bem próximos dos meus. Ela é a menina mais linda do mundo. Basta gostar de alguém, é essa impressão. E não muda: tenho certeza de que ela é a menina mais linda do mundo. E tenho um ataque de riso, sozinho aqui no meio do não-lugar que é um aeroporto, e vejo o quanto sou bobo por acreditar em coisas que sei não serem reais. Contente por saber que estou feliz com as coisas tais como estão, que vivo cada vez mais o presente e renuncio a um futuro que possa nunca se concretizar. É preciso gostar do caminho. Penso mais uma vez nos olhos dela, no quanto eu gosto de estar ao lado dela e concluo que, afinal, às vezes é muito bom eu ser eu. Mesmo que isso seja tão instável, que signifique pouco, afinal. E esse sorriso vale esse momento. A felicidade desse momento. Só isso existe. A vida é uma viagem longa para lugar algum. Travessia).

- Bonsoir
-Bonsoir.
- Est-ce que vous pourriez m’informer si les trains vers la gare Cornavin passent encore?
- Oui, jusqu’à minuit. Vous descendez les escaliers au fond et voilà
- D`accord, madame. Merci beaucoup. Bonne soirée!
- Au revoir.