quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bolo de cenoura

Na frente do meu trabalho, descubro um rapaz que vende bolos e alguns outros quitutes, praticamente toda tarde. Eu nunca o havia notado. Subindo os degraus da escada, e dando um furtivo olhar nos doces (eu já estava com fome, pouco depois do almoço), descubro algo que não comia há tempos: bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

Assim como o olhar havia sido furtivo, foi também a primeira mordiscada, entre alguns papéis aos quais eu deveria estar prestando mais atenção. O bolo de cenoura na minha boca, o chocolate derretendo no palato, pregando nos dentes, a massa pouco a pouco absorvida e revelando seu gosto. Meu deus, bolo de cenoura com cobertura de chocolate!

Foi um sabor que me lembrou bastante de outros tempos mais felizes e inocentes. Por que eu nunca mais comi, eu não sei. Mas que saudades daqueles velhos tempos! O bolo de cenoura, essa semana, foi o meu chá da Madeleine. Mas eu não me chamo Marcel. Ao invés de sete livros, escrevo essas linhas (ainda) furtivas.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vida e época de Michael K (Life and Times of Michael K), de J. M. Coetzee

O livro "Life and Times of Michael K", do sul-africano (depois naturalizado australiano) J. M. Coetzee, rendeu ao autor o Booker Prize, em 1983, e maior notoriedade no meio literário internacional. Estou buscando ler mais literatura contemporânea, algo que não fazia antes, e, agora, estou tentando ler mais livros em inglês, por dois motivos: aprimorar uma língua que não consigo aprender direito e ter mais contato com a vasta literatura que não conheço muito bem.

O livro conta a história de Michael K, uma pessoa simplória e de aspecto desagradável (possui lábio leporino) vivendo em meio à guerra civil na década de 1970. Em meio à violência vigente na cidade do Cabo, sua mãe enferma pede-lhe que a leve para uma fazenda em Prince Albert, que se torna, para ela, o Éden perdido e nostálgico que poderá reparar os estragos feitos pela guerra. Michael K improvisa um desajeitado riquixá, depois de perceber que não obterá permissões para deslocar pelo país, instala sua mãe no aparato e sai puxando-a por estradas secundárias, para evitar postos de controle. No meio do caminho, sua mãe piora, devido às condições precárias do transporte e do tempo, e morre em um hospital. Seu corpo é cremado sem autorização do filho, que resolve levar suas cinzas aonde sua mãe nasceu, tal como havia prometido.

K, entre vários contratempos, consegue chegar a Prince Albert, e encontra uma fazenda similar à descrita pela mãe. Lá, passa a viver precariamente - abatendo ovelhas, tentando retirar água de um açude, comendo larvas – até a chegada de um dos proprietários da terra, desertor de guerra, que tenta transformá-lo num servo pessoal. O protagonista, então, vive um tempo nas montanhas, até que é encontrado semi-vivo por funcionários do governo, que o levam a um campo de refugiados. Lá, tem de trabalhar para comer, em fazendas ou reparando estradas e ferrovias. Não satisfeito com a falta de liberdade, e após testemunhar diversos abusos depois da explosão de um prédio na cidade vizinha, K foge do campo e volta à fazenda, já abandonada. Tenta, novamente, viver da terra, plantando abóboras e melões, mas sua quase inexistente alimentação faz sua condição piorar, até que, novamente, é encontrado por pelotões do governo, que o tomam por ajudante dos conspiradores que vivem nas montanhas.

Michael segue, então, para um hospital em outro campo, e é tratado por um médico que, malgrado K recuse a alimentação, nega-se a deixá-lo morrer e dá-lhe tratamento especial. O protagonista continua a definhar, mas consegue, finalmente, fugir do hospital improvisado numa pista para corridas de cavalos, e volta ao lugar onde começou, a cidade do Cabo. Percebe a cidade ainda mais devastada pela guerra, conhece um bando de amigos e tem, provavelmente, sua primeira experiência sexual, com uma provável prostituta do grupo, que lhe faz sexo oral. O livro termina com a divagação de Michael K de que poderá voltar para algum lugar onde, novamente, tentará viver da terra, com recursos mínimos com os quais conseguirá sobreviver.

O livro é narrado em terceira pessoa. Porém, o narrador não é onisciente, e confunde-se com seu personagem principal, muito simplório, pois não apresenta reflexões além do que ele seria capaz de oferecer. Também há utilização do discurso indireto livre, assim como de diálogos, ao longo do texto. No entanto, a interiorização precária do protagonista e a falta de onisciência do narrador leva a um texto descritivo, frio e estéril como a guerra em meio à qual vivem os personagens. Enquanto ocorrem as piores violências e arbitrariedades, os maiores contratempos e tragédias, a proximidade da morte, não há uma reflexão de Michael K sobre a situação que vive, com raras exceções. A situação só muda no segundo capítulo, relativamente curto, cuja narração fica a cargo do médico que assiste K. Somente aí há uma tentativa de explicação da trajetória de Michael K, mas ainda essa tentativa de explicação é insuficiente, visto que o médico não consegue arrancar do protagonista mais do que algumas vagas palavras.

Então, o que se oferece ao leitor é um texto sem muitos adjetivos, com poucos diálogos e poucos reflexões. O livro é, em suma, uma grande descrição da viagem e das desventuras de Michael K, que parece não entender muito bem o que se passa, e busca viver alheio à guerra que o envolve. Coetzee, ganhador do Nobel de Literatura em 2003, tem grande força expressiva em todas as descrições: é extremamente preciso em cada ação e movimento, em cada substantivo e seus qualificativos. Para um leitor que, como eu, não domina o inglês, o desafio é imenso. São vários os tipos de ruído e de movimentos corporais, as alterações do tempo e da condição do protagonista, o detalhamento na descrição dos mecanismos com que se lida. Coetzee cria, realmente, um mundo vivaz. Algumas vezes, o leitor tem a impressão de que aprende a construir um carrinho de mão com rodas de bicicleta e um eixo roubado de um depósito, a consertar uma bomba d’água e, à medida que a fome se apodera, como o corpo transforma-se e o que se sente nesse processo.
A força descritiva é tão envolvente que cheguei a ler resenha afirmando que o segundo capítulo, o único com alguma reflexão, seria o maior defeito do livro. Diante da crueza da história de Michael K em si, não haveria necessidade de um narrador mais consciente, a dar um sentido à sua peregrinação. O ideal seria o próprio leitor buscar seu sentido, diante de tudo que lhe é exposto. Confesso que não sei se estou de acordo. A pessoa que busca dar sentido é um dos personagens, e muito mal informado, e não há razão para que o leitor aceite sua autoridade ou dê-lhe credibilidade. O que se tem é uma interpretação possível da aventura de K, e nada impede que o leitor discorde dela. Talvez, na falta total de impressões alheias, o livro ficasse com ausência de alguém com quem ter empatia. É como alguém com quem se possa conversar sobre o que, afinal, quer dizer toda a trajetória do livro. O livro, porém, não oferece sentido pronto. A fuga de K representa também sua discordância daquele que o mantém sob seu jugo, mesmo que supostamente benevolente.

As interpretações do livro, portanto, são várias. O fato de o personagem chamar-se Michael K foi lido como uma aproximação de Kafka, cujos personagens costumam encontrar-se num emaranhado de acontecimentos que não conseguem entender, e do qual não podem desvencilhar-se. É uma possibilidade, pois Michael K tem isso em comum com Joseph K, por exemplo. Outros vêem Michael K como alegoria do próprio escritor: seria abreviação aproximada de John Maxwell Coetzee. A leitura, a meu ver, fica mais rica ao fazer tais aproximações que, provavelmente, não são gratuitas, ao tratar-se de um escritor tão consciente do ofício e professor de literatura, com livros publicados e muito respeitados. Outra interpretação seria a de que o personagem principal seria uma alegoria de todos os negros da África do Sul, sendo o lábio leporino a marca visível de sua posição social, ou mesmo de toda a população devastada pela guerra, que não encontra sentido em meio a uma guerra cuja causa todos já esqueceram. Finalmente, sequer seria preciso localizar a guerra na África do Sul: os campos de concentração, a exploração mútua, a violência generalizada, as precárias condições de vida e a própria banalidade da morte podem ser situadas em qualquer conflito bélico.

A narração do livro também é bastante peculiar. Não é narrador externo, nem participante: trata-se, afinal, de uma mistura entre os dois. É um narrador que transita entre a consciência do protagonista e a terceira pessoa. Isso dá ainda mais margem à divagação. O narrador só é claro durante um breve período do texto, quando o médico assume a narração. Mas esse lapso logo é cortado, para que a narração siga como era inicialmente, até o fim do texto. Essa narrativa permite que o narrador utilize um vocabulário altamente preciso, que dificilmente seria dominado pelo protagonista, e que não faça divagações além do que a inteligência de K seria capaz.

No final, só me senti atordoado. E não soube dizer, afinal, que papel coube a Michael K com base na epígrafe do livro: "War is the father of all and king of all./ Some he shows as gods, others as men./ Some he makes slaves, and others free". Dependendo do ponto de vista, Michael K poderia ser deus ou homem, escravo ou homem livre. Cabe a cada um criar sua própria interpretação.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

De corpo e alma

Costelas espaçadas
Hélix curvada
Amputada enxertada
Será colocada
Prótese mini-texturizada
Jamais será rejeitada
Sua anatomia facilita a cirurgia
Deus te criou para intervenções
Em todas as regiões
À sua imagem e semelhança
Não consigo sair desse corpo
Não te pertence
A alma aprisionada
Merece músculos tonificados
Hoje se quer se parece
Eu pareço melhor que
O próximo me apóia me disse
Agora mais um corte
No meu pós-moderno
Culote.