Minha relação com objetos como
cintos e sacos plásticos nunca foi parecida com a de outras pessoas. Devo dizer
que minha peculiaridade começou antes de eu ter acesso a estes perigosos
instrumentos. Iniciei minhas atividades com as infinitas possibilidades das
mãos. Não, não. Para regredir ainda mais, acho que minha condição foi
determinada já durante o parto. Posso dizer que nasci assim.
Agora que estou ofegando novamente
no hospital, por ocasião bem diversa, vêm-me à mente diversos momentos
disparatados de minha vida.
Eu quase morri quando estava
saindo do ventre de minha mãe. Houve um problema pouco antes de eu irromper no
mundo e, por alguns momentos, fiquei sem respirar. Foram poucos segundos, mas o
suficiente para alarmar os médicos e desesperar minha mãe. Eu parei no meio do
caminho, não conseguiam tirar-me de lá e foi exatamente neste momento que o ar
parou de entrar em meus pulmões. Me expulsaram com força e conseguiram
reviver-me. Logo depois de receber os tapas procedimentais do médico em posição
vertical e o beijo amoroso de minha genitora, fui colocado na UTI e, da forma
mais torturante, metido dentro de uma incômoda estufa de oxigênio.
Às vezes penso que aquela parada
acidental não foi um mero acidente.
Por conta deste percalço, fui
tratado com enorme cuidado e o máximo de carinho que meus pais eram capazes de
dar. Eu era um milagre, uma dádiva. Era perceptível que vivia o melhor dos
mundos quando me comparava ao tratamento das outras crianças do meu bairro, com
menos brinquedos e menos atenção.
A vida, porém, não é perfeita, e
meus pais foram obrigados, em certo momento, a colocar-me sob os cuidados de
uma babá. Ela não me considerava um milagre ou dádiva alguma. No entanto, eu já
me havia acostumado àquela vida, visto que era a única que eu conhecia. Minha preceptora
havia tido uma vida bem diferente, e eu não a culpo por isso. Foi por conta de
encontros fortuitos como este que meu destino foi sendo progressivamente
traçado.
Estava brincando com um de meus
inúmeros bonecos do exército e joguei alguns deles na direção da janela,
simulando uma explosão que definiria o lado vencedor daquela carnificina. Um
deles bateu numa jarra cheia de leite sobre a cômoda que, por sua vez, caiu
sobre a cama e verteu seu conteúdo também sobre o carpete. Eu sequer dei
atenção ao fato e continuei brincando, agora utilizando o leite como leito de
um rio onde os mortos esquartejados jaziam. Foi quando a babá entrou e viu o
espetáculo.
Ela me repreendeu e começou a
limpar, enquanto eu logo voltava a sorrir entretido com a brincadeira. Neste
momento, algo dentro dela partiu. Provavelmente, pensou que eu estava rindo
dela ou, na melhor das hipóteses, que eu era indiferente ao trabalho que lhe
dava diariamente. Foi a gota d’água, a última gota de leite derramado que iria
suportar calada. Diante da minha gargalhada com outra explosão sanguinária,
resolveu acabar com ela apertando meu pescoço até que eu lhe implorasse para
soltar. Ah, se eu pudesse explicar o que senti naquele momento! No entanto,
poucos são os bem-aventurados capazes de compreender.
Eu não pedi desculpas. Em vez do
que minha benfeitora esperava, eu a olhei fixamente. Profundamente. Ela então
cedeu e logo percebi o estranhamento no fundo de seus olhos. Acho que ela
também viu algo no fundo dos meus, e teve medo.
Depois daquele episódio, passei a
provocá-la de todas as maneiras possíveis. Ela, todavia, nunca mais encostou a
mão em mim. Pouco
depois foi embora e nunca mais voltou a minha casa. Não me recordo mais se foi
demitida pelos meus pais, diante das claras evidências de que eu me tornara
mais endemoninhado, ou se ela se demitiu, por não suportar mais os meus jogos
infantis.
Desenvolvi uma obsessão, que
perdurou por toda a minha adolescência, por mulheres que tinham mãos com dedos
longos. Aliás, nunca entendi como podiam estranhar meu fetiche, diante da
imensidão de homens com sua insólita devoção aos pés ou aos quadris. Em minha
modesta opinião, não há sequer comparação. Mãos são muito mais atraentes do que
pés. Portanto, nunca levei a sério que minhas confissões sobre meu grande
objeto de desejo fossem recebidas com estranhamento, enquanto os outros
esperavam que eu recebesse suas confissões com naturalidade.
Depois de muitas buscas em vão e
muitos relacionamentos insignificantes, namorei finalmente uma mulher com dedos
longos e fortes, capazes de circunscrever diâmetros consideráveis. Após alguns contatos
anódinos, tomei coragem para pedir-lhe no meio do ato que me apertasse o
pescoço. Meu pedido pegou-a desprevenida. Sua pele ficou pálida, ficou imóvel, não
soube o que falar. Foi quando tomei a sua mão e lhe mostrei como fazer. Ela sorriu.
Foi meu momento de glória.
Conheci a felicidade plena por
dois anos, cinco meses e catorze dias. Eu andava por aí em estado de nirvana.
Era como se tivesse fones de ouvido tocando eternamente a música celestial
reservada somente aos anjos. Nada mais me importava. Irritava os outros com
aquela cara de adolescente perdidamente apaixonado. Comia pouco. Dormia pouco.
Era incapaz de me concentrar em qualquer coisa que não tivesse a ver com minha
grande história de amor. Minhas notas na escola nunca foram tão medíocres, sendo
que antes eu costumava estar entre os melhores estudantes. Meus pais chegaram a
cogitar uma terapia. Embora eu lhes reiterasse constantemente minha alegria,
eles temiam que minha enorme dependência tornasse uma eventual separação algo
insuportável para mim. E foi.
Quando Beatriz foi embora para
outra cidade, com outros homens e outros pescoços, levando o éden consigo,
perdi a vontade de respirar. Cada dia parecia durar séculos. Perdi a vontade de
sair da cama, de escovar os dentes ou tomar banho, tinha desgosto de sair à
rua. Meus pais me colocaram em três terapias diferentes quando me viram perder
peso como se tivesse uma doença grave e incurável. Afundei-me nos mais diversos
remédios. Alguns com tarjas vermelhas e pretas, outros sem tarjas ou
embalagens. Mas eu sabia que droga alguma me curaria daquela falta. Uma parte de mim havia sido amputada. Sem
aviso, sem anestesia, sem substituto possível.
Fui submetido a contínuas
lavagens cerebrais e estomacais até conseguir tornar-me um ser humano
ordinário, destes que se vê em cada esquina e que sorriem quando se conta uma
piada. Fui tomando fôlego, perdi a forte
ansiedade e voltei à vida diária. Logo, conheci uma mulher maravilhosa, em
cujas mãos sequer reparei, que me deu a paz de que eu precisava.
Mais tarde e bem menos miserável,
já na faculdade de medicina e morando longe de meus pais, uma pesquisa sobre
alguns tipos de distúrbios me levou a descobertas vitais. Estava na internet
buscando o que havia de mais atual a respeito de algumas compulsões e,
acidentalmente, reconheci-me de imediato no relato de um holandês traduzido
para o francês. Perdi a respiração. Era como se o mundo se mostrasse subitamente
de novo, como se as portas da felicidade se abrissem, depois de tantos anos de
negação.
O que as pessoas buscam na arte,
na ciência, nos entorpecentes e nas religiões, eu obtive isso tudo e muito mais
em simples objetos presentes nas residências mais ordinárias. Não há lugar no
mundo contemporâneo em que eu não tenha acesso ao paraíso. As visões inefáveis,
as sinfonias de sensações, o êxtase antes reservado aos deuses em suas elevadas
montanhas, tudo disponível com o simples uso de cordas comuns, cintos, sacos
plásticos, gases ou até aparelhos mais sofisticados, disponíveis em casas
especializadas.
Foi nos momentos de isolamento,
longe de minha vida pública, em viagens clandestinas, que entendi o casamento
de Eros com Tânatos, que tomei a coragem de viver uma vida no limite com vistas
a atingir o clímax. Os aventureiros, os destemidos, os praticantes de esportes
radicais não obtêm nada perto das emoções que tenho a chance de experimentar.
Já tive as visões mais etéreas, já tomei o néctar e comi a ambrosia, fui a
lugares que a quase nenhum homem foi dado conhecer.
Admito que é preciso coragem para
abandonar o vício medíocre em
oxigênio. Mas os benefícios do acúmulo de gás carbônico no
cérebro são comprovadamente verificados e praticados desde pelo menos o século
XVII. Muito antes da invenção do LSD e das anfetaminas. Os fumantes, os que
tiram prazer em dirigir em avenidas movimentadas, os suicidas por enforcamento
ou asfixia são para mim covardes que misturaram as coisas, que não conseguiram
ir até o fim ou nunca tiveram a ideia óbvia de misturar seus prazeres com o que
há de mais absoluto na vida das sensações, ou seja, o orgasmo.
Eu não estou sozinho. Meu amor ao
prazer e ao perigo simultâneos é compartilhado provavelmente por milhões de semelhantes
no mundo, muitos dos quais ainda temem seguir sua linha do destino. Não tenho a
pretensão de esconder que muitos de nós já morremos por passar do limite numa
atividade cuja natureza implica estar no limite. Estas mortes, porém, mesmo
sendo milhares ao ano, muitas confundidas com suicídio, comprovam a nossa
incontestável existência. Apesar disso, sou obrigado pela sociedade, da maneira
mais cruel, a manter uma vida hipócrita.
Tenho família, tenho amigos,
tenho emprego e uma vida mais do que respeitável. Sou, aliás, um conhecido
psiquiatra e já salvei ou viabilizei inúmeras vidas. Os que me rodeiam têm
apreço por mim. No entanto, é sozinho em quartos de hotel durante conferências
médicas, enquanto me atraso ao próximo compromisso, em momentos de profunda
solidão ou de encontros clandestinos, que sigo minha verdadeira vida, com
arrebatamentos que quase ninguém sonhou em alcançar, a ponto de perder a
consciência ou de não ter a mais remota ideia de quem sou. São minhas petites mortes.
O que os outros conhecem por
minha vida é em realidade a minha mortificação, a minha condenação ao degredo,
minha post-coital tristesse.
Ontem, com a visão enturvada por
uma música com sons de uma pessoa enforcada, tive um acidente. Eu voltava de um
lugar comprometedor e talvez seja obrigado a explicar o que estava fazendo. Ou
talvez morra aqui mesmo, tal como nasci, torturado por um tubo de oxigênio.
Exijo a dignidade de sobreviver e
contar a minha história.
Depois disso, caso eu morra realmente
em busca do âmago do meu ser, sei que alguns terão vergonha de mim ou mesmo
cuspam sobre meu caixão. Minha mulher e meus filhos sofrerão, embora sejam os
que mais tentei proteger, em nome do amor que tenho por eles. Mas não me
intimidarei diante das barreiras construídas pelos vulgares. Se posteriormente
eu for encontrado com o rosto negro ou azulado numa luxuosa suíte de hotel
europeu de cinco estrelas pendurado por um cinto de uma marca luxuosa e caríssima,
ou quem sabe no quarto do bordel mais promíscuo da cidade mais sórdida com um
saco plástico de padaria ao redor do meu rosto, meu último desejo é que tomem
consciência das verdades escritas aqui e gravem na minha lápide o contrário do
que reina na atmosfera asséptica dos ressentidos:
Vale a pena.
4 comentários:
Mais uma vez, muito bom!!
Beijos queridão!!
Excelente, Matheus! Parabéns!
Adorei Matheus! Coincidência porque estou lendo um livro de contos do Rubem Fonseca, e este me lembrou muito os dele! Beijos!
Obrigado pelos comentários, pessoas queridas. A verdade é que sei que pouca gente tem paciência de ler e depois ainda escrever algo. Por isso, fico feliz de terem feito isso.
Estou tentando ver se consigo fazer uma série de textos sobre pequenas obsessões com grandes consequências. É bom pra continuar escrevendo, né. Vamos ver!
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