Como prometido a D.
31.12.2011
Será hoje. Quando der meia-noite.
Talvez pouco depois. Vou entrar no novo ano com estilo. Com roupas novas para a
ocasião. Gastei um dinheiro que não poderia gastar, mas agora não importa. Há
anos não me sentia tão bonito. E assim vou para o lugar perfeito, o lugar secreto
que descobri. Finalmente estarei lá, e não poderia haver lugar melhor.
Renovação completa. O sonho de todo ser humano. Tenho esta excelente sensação
de antecipação, que sinceramente não esperava. Sou pessimista até no
pessimismo. Já conversei com as pessoas que me importam: minha mãe, tio
Anselmo, a Livia. Não há mais quase ninguém. Mas não tenho rancor. Disse que
iria viajar no Réveillon. Fui sincero, afinal, realmente estava já quase
tomando o ônibus quando pus o telefone no gancho. Já me sinto mais leve. Subo,
subo, subo, vou flutuar. Esta noite será uma dança no ar. Flutuarei acelerando
a 10 metros
por segundo ao quadrado. É rápido. Estarei a 1500 quilômetros
de onde moro. A 5000 km
de onde nasci. Não trouxe absolutamente nada senão a roupa do corpo. Quase
nenhum dinheiro. Vou para onde ninguém precisa de dinheiro. Não encontrarão
meus pertences. Doei-os a pobres de outras cidades. Ah, o altruísmo de quem não
tem nada a perder. Herança nunca foi doação. Não vale nada. Eu sei. Fui
mesquinho. O resto joguei no lixo no meio do caminho. Sou livre. Agora sou
livre. Nunca mais vão ouvir falar de mim. Sem tristeza. É impossível que achem
meu corpo. Nunca vi lugar mais alto. Os peixes devoram o que sobra. Não haverá
documentos, não haverá roupas reconhecíveis, minhas digitais estarão carcomidas
pela água. Serei parte do mundo. Antes tarde que nunca. Me integrarei. Adeus,
semanas inteiras sem pronunciar palavra. Adeus, coração partido e braços
vazios. Adeus, lembranças dolorosas. Adeus, futuro perdido. Adeus. Ninguém
sentirá minha falta. Muito menos eu. Vou
sair de mim.
03.01.2012
Não consigo parar de pensar
nisso. Como pôde alguém ter exatamente a mesma ideia e resolver executá-la no
mesmo lugar e na mesma hora? A imagem horrenda de um corpo em direção ao
precipício, sumindo no nevoeiro. Sem ruído de queda. Ou talvez eu não estivesse
em mim. Mas
assisti a tudo. A tudo. Quando me aproximei, já era tarde demais. Talvez até
tenha feito porque me viu. Não consegui ver seu rosto. Tinha o cabelo parecido
ao meu. Tinha também roupas parecidas às minhas. Peças novas. Pulou antes de
mim. E estragou meu próprio plano. Não consegui segui-lo. Preciso descobrir
quem era. Não faz sentido, claro, não faz nenhum sentido. Eu também queria
fugir anônimo. Mas as pessoas precisam saber. Eu preciso saber porque ele fez
isso. Porque desistiu. Se se precipitou. Fui à delegacia e perguntei se havia
registro de alguém desaparecido. Nada. Andei pela cidade, todos comemoravam o
ano novo. E alguém havia morrido poucas horas antes. Andei atônito pela cidade.
Um senhor me acolheu na casa dele quando me encontrou dormindo na praça. Não me
lembro como fui parar lá. A noite mais longa e mais breve. Disse que iria pagar
a estada. Fui fazer um bico num bar. Recebo em alguns dias. Enquanto isso, faço
a investigação. Eu vou saber. Depois, aí sim, também me vou. Exatamente como
ele.
12.03.2012
Ainda não consegui descobrir quem
era. Lembrei-me que me olhou antes de pular. Me viu e, ainda assim (ou talvez
por isso), se jogou. E riu. Acho que ele riu. Não sei dizer. Acho que sim.
Talvez estivesse feliz por sua resolução. Talvez estivesse rindo de meu
desconcerto. Agora é tarde demais. A Ângela me disse que registraram a
ocorrência de um desaparecido. Não parece ser ele. Ela está desconfiando de eu
puxar tanto papo perguntando se não há pessoas desaparecidas por aqui. Às
vezes, pergunto também sobre objetos extraviados. Finjo que sou curioso. Um
colecionador de coisas e pessoas perdidas. Mas ela já notou que tem algo por
trás.
21.06.2012
Liguei para minha mãe. O
Francisco acabou me convencendo. Esse negócio de ficar conversando toda noite a
noite toda com o Francisco acaba me fazendo agir de maneiras muito inesperadas.
No entanto, ele tinha razão. Uma coisa era eu ter morrido e minha mãe ter esperanças
de eu estar vivo. Outra é eu estar vivo e minha mãe temer que eu esteja morto.
Liguei. Ela chorou um pouco. Ficou tranquila quando eu disse que tinha refeito
minha vida em outro lugar e que era melhor que ela não soubesse onde eu estava.
Eu disse que ligaria de vez em quando. Pedi-lhe que avisasse ao tio Anselmo. Com
a Lívia não falo mais. A Lívia foi a pior melhor coisa que podia ter
acontecido. Agora é passado. Ângela me ligou. Vou encontrar-me com ela no bar
onde trabalhava. Continuo sem descobrir nada sobre o suicida. Já viajei para
todas as cidades vizinhas. Pelo menos há gente que me ajuda nisso na delegacia,
além da Ângela. O Francisco e a Silvia sempre estão de olho nos jornais. Uma
hora encontro algo.
31.08.2012
A Ângela me confirmou que está
mesmo grávida. Disse que vai ter o filho. Eu não tive coragem de propor nada
que contradissesse isso. Ela é minha melhor amiga. Hoje encontrei um anúncio de
jornal promissor sobre a minha busca. Viajo amanhã. Depois penso em que fazer.
09.09.2012
Estou juntando dinheiro. Meu
emprego está melhor, ganho mais do que ganhava antes de vir aqui. Tive que
visitar minha mãe para pegar a segunda via do meu diploma universitário. Ela
ficou contente. Francisco está feliz, Anselmo está feliz. Todos comemoram minha
anunciada paternidade. Estou começando a gostar da ideia.
21.10.2012
Estou apaixonado pela Silvia. Não
posso negar. O sol brilha mais no cabelo dela do que no de qualquer outra
pessoa. Estou perdido. Preciso conversar com alguém sobre isso. Que estado lamentável.
Estou perdido. Extasiado. Perdido para além ou aquém da razão.
11.11.2012
Onze meses e nada. Tenho andado
muito ocupado juntando dinheiro para o nascimento da Gabriela. Ângela decidiu
que estamos melhores como amigos. Podemos compartilhar a guarda, caso eu mude
de ideia. Francisco me olha às vezes com medo, pensando que o Ano Novo está
chegando. Nunca contei nada à Ângela,
quero preservá-la de qualquer desgosto, ainda mais neste momento importante.
Ela está uma grávida linda. Espero que a Gabriela seja a cara dela. Bonita.
Sempre me senti feio. Mas eu sou pouco importante aqui. Aliás, não importo
mais. Importa apenas que a Gabriela seja feliz.
31.12.2012
Falta pouco para a meia-noite.
Tento recordar o que aconteceu há exatamente um ano atrás. Meus sentidos me
enganavam. Trêmulo como alguém prestes a morrer. Imaginação? Minha memória é de
mim próprio caindo. Ou não. Não consigo me lembrar do rosto dele. Tentei descer
ali, ninguém tem coragem de entrar na corredeira para procurar algo que nunca
pude dizer o que era. Basta. Francisco parou de desconfiar de que eu possa
fazer algo nesta passagem de ano. Sinto que 2013 será o meu ano. Um minuto para
os fogos de artifício e as taças de champagne.
5 comentários:
Muito bom Matheus! Lembrou a Longa queda do Nick Hornby!!
Beijos!
Muito triste, mas gostei!!!
Matheus,vc escreve como se estivesse conversando com alguém a sua frente, e com muita simplicidade,é prazeirosa a leitura. "Ano Novo" é um dos textos (crônica) que mais gostei. Essa vontade de sucumbir e de se encontrar,é um pouco de todo mundo.Muito legal! Continue escrevendo (se quiser) porque eu quero ler. Muito bom !
Muito bom. Um quê de Camus, um quê de realismo fantástico latino-americano, uma pitada de Hemingway. Você tem estilo!
Gostei, de novo...
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