domingo, 26 de agosto de 2012

A conversão de Saulo


A bola passava de pé em pé para Saulo para Pedro para João para Lucas quando repentinamente toma uma pancada para fora do campo de terra improvisado e bate no parapeito ponteagudo do sobrado ao lado e, como que dissolvendo toda a agitação, explode. 

Desamparo.

Saulo não podia acreditar no que jurava não enxergar. Tinha feito três gols, caminhava para a artilharia do campeonato do bairro. Havia treinado exaustivamente com o dono da bola. Augusto, o dono da bola, deixava-o brincar com a dita cuja de quando em quando, desde que não saísse do seu quintal e desde que ele jogasse (e desde que ganhasse). A inutilização daquela bola era uma tragédia em todas as esferas da vida de Saulo. Depois de Augusto, que podia cismar com algo e partir, Saulo era quase sempre o primeiro a ser escolhido para integrar o time. Isso já era uma vitória pessoal. Existe uma hierarquia no futebol infantil de rua, e Saulo havia duramente ascendido nela, contra todos os prognósticos.

Afinal, é um menino rodeado pelo sexo feminino. A mãe criara-o sozinho e nunca mencionou, uma só vez sequer, algo sobre seu pai. Como família, tinha somente uma tia, que desempenhava o papel de segunda mãe. Era tímido de nascença e se refugiava em casa durante praticamente o dia todo. Acordava, ia para a escola, voltava para casa, almoçava, assistia desenhos animados, fazia as tarefas de casa, lia revistas no quarto, saía do quarto para comer, ficava com a mãe depois que ela chegava do trabalho, e ia dormir. Entre poucas surpresas, passava os fins-de-semana na casa da tia ou acompanhava sua mãe em compras ou visitas a parentes que moravam em outros bairros. Alguns deles caçoavam de seu cabelo liso e negro, com uma franja que o cabeleireiro insistia em cortar irregularmente. Estes passeios o perturbavam, além disso, porque ao andar de ônibus ou metrô achava que todos reparariam suas pernas finas e seu jeito desajeitado. Era um menino solitário, mas de maneira alguma melancólico.

O momento mais aterrorizante do seu dia era a hora do recreio do colégio. É o momento em que se torna patente quem pertence a cada grupo, quem transita entre vários, quem se destaca em algum esporte, quem é mais engraçados e até mesmo quem é mais caçoado. Neste instantâneo fotográfico, Saulo sairia desfocado, ou buscando aparecer no fundo, ou relegado a um canto imperceptível da composição. Não era especialmente popular nem impopular, não era engraçado ou tedioso, não era ridicularizado, não implicava com outros alunos. Sentava-se e observava, simplesmente. Saudava uns que passavam por perto, outros ignorava. Muitos não lhe davam bola. E assim os dias corriam.

Até que um episódio ínfimo, de que ninguém se deu conta (salvo, obviamente, Saulo), veio mudar sua vida. Um dia, voltando para casa, escutou seu nome. De início, pensou que tinha ouvido mal, até que o aumento do coro (eram agora três gritando) tornou impossível seguir a caminhada indiferente. Pedro, que morava a cinco casas dele, chamara-o porque precisava de alguém que completasse seu time. A mãe de um dos que participavam do jogo havia intimado-o para casa porque seu pai estava no hospital (“é um bebum”, esclarecera João) por ter sido atropelado. Saulo inventou uma desculpa e disse que tinha que voltar imediatamente para casa (declarou que sua mãe lhe daria uma surra). A insistência, contudo, foi enorme: seria impossível jogar sem três pessoas de cada lado, eles só tinham mais uma hora antes que dois deles tivessem que voltar para casa, era a primeira vez que conseguiam a bola emprestada do primo de Fulano, começaram a entoar frases como “bicha, bicha, bicha”... Saulo não teve escolha e aceitou.

O futebol não era estranho ao mundo de Saulo. Tinha um time para o qual torcia, o Botafogo, e costumava proclamar por aí que este era o time de futebol pelo qual seu pai torcia ardorosamente. Em certa ocasião, afirmara que seu pai havia desaparecido na multidão depois da brilhante partida do Botafogo contra o São Paulo, em 4 de março de 1998 (sabia a data de memória), quando o Botafogo conquistara o Torneio Rio-São Paulo. Neste dia marcado pela alegria, ocorrera algo na saída do Maracanã que impediu seu pai de voltar pra casa e presentear-lhe com uma camiseta do time de seu coração, como havia prometido. Saulo, no entanto, mantinha esperanças na volta do pai para casa, e com o uniforme do Botafogo nas mãos. Por isso, seguiria honrando a tradição familiar com fidelidade eterna à equipe. Muitas vezes, ele próprio acreditava nesta história, que supunha ser a única explicação plausível para não ter a presença nem recordações de seu pai.  

Sim, seus pés já haviam tocado uma bola de futebol. É muito simples: quando se nasce onde Saulo nasceu, é impossível que não tenha jogado bola na vida. Mas Saulo era este menino solitário e tímido diante de outras pessoas e não praticava e estava apavorado diante do convite feito naquele momento, tanto pelo temor de fracassar quanto pela consequente desaprovação do grupo. Havia cedido diante da pressão também por medo de ser rechaçado, caso se obstinasse em sua recusa inicial.

Encontrava-se num estado lamentável: uma mistura de coração acelerado, mãos suadas, pernas trêmulas, respiração ofegante, acompanhados de uma tentativa patética de ocultar tudo isto. Tudo tão novo: a infância é a época dos sustos, das surpresas, das primeiras vezes. Não era diferente com ele. Quando a bola começou a rolar, Saulo sentiu dificuldade em bloquear ataques adversários, em roubar a bola, em conferir a posição dos rivais e dos companheiros ao mesmo tempo, em driblar, em estar de olho nos dois gols. Mas foi em frente. Claro que perdeu a bola, que sofreu dribles, que errou passes, mas estava longe de jogar mal. Até fez um gol. E, graças a seu desempenho, conquistou uma vaga cativa no campinho e a estima, ainda que precária, dos demais jogadores. Depois do jogo, foi chamado para lanchar na casa de um deles e logo a brincar com eles na rua. Voltou para casa no início da noite. No caminho, não conseguia parar de rir, era impossível contê-lo.

Êxtase.

É bem provável que, se Saulo repensasse toda sua vida muitos anos depois, depois de paixões variadas, diversas conquistas, alegrias e sofrimentos, num estágio de maior experiência, talvez recordasse desse dia como o mais feliz de sua vida. Pelo contraste com o que sua vida fora até então, e pela descoberta de que existia outra, de que agora desfrutava muito intensamente.

Quando chegou, e era a primeira vez que chegava tarde em casa, não foi repreendido pela mãe. Foi até recebido com um sorriso cúmplice. Não entendeu nada. Estava tão agitado que narrou seu dia como se cada chute na bola, cada passo de uma corrida, cada detalhe mínimo daquele período curto e mágico, fosse único. E, de fato, era. Em seguida, saiu correndo para o quarto, para reviver tudo de novo sozinho.

A reação da mãe de Saulo realmente não condizia com sua tendência protetora. Entretanto, havia passado bem ao lado do campo improvisado enquanto ele jogava tímido, porém com convicção. Depois de anos observando seu filho taciturno dentro de casa, aquela visão encheu-a de contentamento. A solidão que sentia já era suficiente para todos os dois. Ela tinha medo de que seus hábitos cada vez mais reclusos, agravados pela necessidade de trabalhar muitas horas, pudessem de alguma maneira contagiar o filho. Não que fosse infeliz. Sua vida com o ex-marido era conflituosa, de modo que a vida solitária, embora difícil às vezes, era ao menos tranquila. Tinha plena consciência disso. Queria agora dedicar-se a Saulo, queria que ele fosse feliz, já que ela própria não pôde sê-lo. E a criança, com sua mania de solidão, trazia-lhe pensamentos cada vez mais inquietos. E eis que, do nada, lá estava ele, jogando bola. Que aquilo durasse o máximo possível. A infância é uma só.

Para Saulo, a infância não tinha nada de maravilhoso. Não podia entender como alguns adultos dissessem isso. Sofria, testemunhava outras crianças sendo vítimas das mais terríveis brincadeiras, das mais divertidas ofensas, e não compreendia como alguém podia considerar aquilo a era de ouro da vida. Só podia ser falta de memória ou, pior, o fato de que as fases posteriores seriam ainda piores. Como os adultos continuavam sorrindo, achava que era mesmo só falta de memória. Quanto a sua mãe, supunha que ela não tivesse essas fantasias pela expressão dos seus olhares em direção a ele. Achava que a mãe entendia que a infância em si não era fácil, e não que a sua infância não fosse fácil. Estava certo de que a conhecia perfeitamente. Vivia a tão comum ilusão de saber tudo sobre sua mãe. Por outro lado, tinha momentos em que era acometido pela sensação de que não sabia absolutamente nada sobre ela. Um claro enigma. A familiaridade e o estranhamento. Exatamente como o primeiro amor. Exatamente como todos os amores posteriores.

Na manhã seguinte, o mundo de Saulo adquiriu um significado completamente distinto. A escola passou a ser mero intervalo entre a aurora do acordar, seguido do almoço com a tia, e as tardes de companheirismo e de futebol. Seus primeiros amigos de verdade. Seu bairro adquiria sentido. A geografia só faz sentido pela via da intimidade. Só quer conhecer outro mundo quem não se sente bem neste, por não ter com ele a necessária intimidade, ou por talvez estar cansado de uma já antiga e aborrecida intimidade. Esses devaneios, porém, não faziam parte da cabeça de Saulo. Pois agora Saulo estava jogando bola, e ficando cada dia mais habilidoso.

E o caminho das pedras do futebol infatil foi sendo progressivamente percorrido. Com o tempo, começou a tomar a bola do adversário, a driblar em vez de sempre tocar para o companheiro de time quando confrontado com um zagueiro mais forte, a correr mais, a posicionar-se melhor, e a coroa de tudo isto: passou a marcar mais e mais gols. E, depois, passou a fazer gols bonitos. Sem falta modéstia e sem arrogância. Sabia que o esporte só funcionava em equipe. E, sobretudo, considerava que o futebol havia sido uma dádiva da amizade, não o contrário. Em suma, Saulo jogava apaixonadamente.

Assistia sempre aos jogos do seu Botafogo de Futebol e Regatas. Não lhe importavam derrotas ou vitórias, o importante era observar quão bonito jogavam os profissionais inspirados. Assistia vídeos no computador da escola e passou a idolatrar figuras como Garrincha, Nilton Santos, Didi, Gérson, Jairzinho. Expandiu seus horizontes para outras equipes, brasileiras e de outros países. Gostava de mostrar como havia aprendido a escalação de times do presente e do passado, a história das Copas do Mundo, e passou a sentir-se digno de estima quando notava que alguns passaram a prestar atenção quando falava sobre o assunto.

Criou coragem e tornou-se candidato a jogar na quadra da escola. Passou a ter amigos no colégio que frequentava. Posteriormente, passou a não mais fazer parte do grupo de meninos que tiravam a sorte para escolher as equipes. Um esclarecimento: bons jogadores raramente tiram a sorte para escolher os integrantes de sua equipe. Eles devem, querem, exigem, e no fundo anseiam, ser escolhidos. E a ordem de escolha dos integrantes na infância é como a mercado dos passes dos jogadores no futebol profissional. Sendo esta bolsa de valores muito instável, necessita de constante reafirmação por meio da escolha diária dos que entrarão em campo. O time campeão, naturalmente, só sai de campo quando perde. Por isso, para quem é ruim de bola, convém escolher. Quem escolhe bem não sairá de campo jamais, e talvez melhore seu desempenho rapidamente por meio da prática constante. Saulo, no início, buscava escolher os integrantes da sua equipe. Quando não o fazia, costumava entrar em campo na segunda partida (porque não era selecionado por ninguém). Em seguida, passou a ser o quarto ou quinto integrante escolhido para algum dos lados, até entrar gloriosamente no seleto grupo daqueles que sempre são eleitos, e que, por consequência, jamais se preocupam em tirar a sorte.

Nas proximidades da sua casa, único lugar que sua mãe deixava frequentar enquanto estava no trabalho, havia somente um garoto da idade dele que possuía uma bola de couro. Os meninos mais velhos se recusavam a partilhar a deles e não permitiam a entrada de “pirralhos”. E eis que aquela única bola acessível a seus pés furava subitamente.

Depois de dias, de semanas de tédio, Saulo constata que nenhum amigo conseguirá dinheiro para comprar outra bola. Roubar de alguém parecia-lhe um sacrilégio. Ele próprio não tinha dinheiro para adquirir uma, nem sua mãe podia dar-lhe uma agora. Resolveu agir. Iniciou uma pesquisa de mercado para saber o preço de uma bola razoável, que não estourasse ou adquirisse calombos na primeira semana. Pedro, o mesmo garoto que o havia chamado naquela já longínqua tarde (na infância, tudo parece longínquo depois de alguns dias, um ano assemelha-se mais à eternidade, e a morte parece um devaneio absurdo), comoveu-se com a convicção e persistência do amigo e decidiu ajudá-lo em sua missão. Por ter maior liberdade de movimento pela cidade (sua mãe trabalhava tempo demais num lugar muito afastado para poder controlá-lo em suas andanças), foi Pedro quem encontrou, num bairro mais afastado, a loja que oferecia o menor preço para o modelo de bola escolhido pelos dois.

Fizeram as contas e urdiram artimanhas e atividades que pudessem ser lucrativas. Pediram contribuições de pessoas próximas ou mesmo de passantes ou clientes de estabelecimentos vizinhos. Como não podiam ser contratados por conta de sua idade, passaram a prestar pequenos serviços para donos de pequenas empresas e para particulares. Pagavam contas, faziam entregas, limpavam o chão, recolhiam garrafas de bares. Com a confiança de algumas pessoas plenamente adquirida, passaram a estabelecer acordos mais amplos e estáveis. Começaram a levar para reciclagem objetos que não tinham mais serventia para esses mesmos adultos, após o conselho de um deles. Pedro, às vezes, tinha seus dias de desânimo, mas Saulo seguiu com uma vontade inabalável em direção a sua grande meta e prioridade. Sempre contava o dinheiro já conquistado, e nunca trocava as bolas quando alguém eventualmente perguntava quanto faltava para juntar. Alguns amigos, preguiçosos mas confiantes, contavam ansiosamente os dias para que alcançassem a quantia necessária. Até que, no final de mais um dia, Saulo e Pedro foram contar o montante total e descobriram que tinham o que era preciso. Como já era tarde e a loja, distante, tiveram que esperar até o outro dia.

Saulo descobriu o que era ansiedade naquela noite. Não conseguia dormir. Até segundos demoravam a passar. Quando cochilava, tinha pesadelos. Acordava e pensava que tinham aumentado o preço da bola e que não era mais possível comprá-la com o que tinham. Refletia um tempo, ainda confuso, e concluía que sonhara aquilo. Depois, que todas as bolas já haviam sido vendidas. Acordava sobressaltado, pegava a lata de dinheiro no fundo do armário para contá-lo novamente. Pegava no sono, vivia a agoniante sensação de que não conseguia andar em direção à loja, embora não houvesse nada que o segurasse nem qualquer defeito físico visível. O chão como que fugia dos seus pés. Acordou em pânico. A manhã não foi menos penosa. Não conseguiu engolir o café da manhã, não conseguiu entender as lições ditadas pelos professores, sequer conseguiu entender o que era discutido pelos companheiros de sala. Envelheceu um ano naquele dia.
     
Quando soou o sinal, Saulo desembestou em direção ao ponto de encontro marcado com Pedro. Este também tinha a expressão fatigada. Tiveram que tomar um ônibus, depois um trem, e finalmente subir uma longuíssima ladeira. Fizeram tudo correndo como se estivessem fugindo de algo. É certo que crianças têm dificuldades para andar em ritmo normal. Não entendem porque adultos insistem em hábitos como andar, especialmente quando estão atrasados e e poderiam simplesmente correr em direção a seu destino. Não entendiam tantas coisas do absurdo mundo dos adultos, que tampouco estes compreendem. Na carreira, alcançaram seu destino em pouco tempo.

Chegou na loja, Saulo perguntou ao proprietário pela bola. Ela estava no estoque. Consultou o preço, exasperado. O preço seguia o mesmo. Então, numa fala ao mesmo tempo triunfante e tímida, afirmou que iria comprá-la. O dono indagou se eles tinham tanto dinheiro com eles. Saulo, ainda mais confiante, tirou o dinheiro do bolso e mostrou-lhe. O dono contou as notas sob os olhares atentos dos meninos e propôs embrulhar a bola. De imediato, Pedro e Saulo disseram que não era preciso. Agarraram-na e saíram para a rua.

É difícil descrever o que sentiram depois que saíram da loja: sensações totalmente desencontradas, corações em polvorosa, sangue acelerado, cabeça pulsando, pernas tremendo. Por inércia, pelo efeito da adrenalina ou - mais poeticamente - pela emoção, os corpos deles ainda tremiam. Depois, tudo foi adquirindo um aspecto de tranquilidade. Haviam travado uma dura batalha e vencido.

Paz.

A pressa da ida deu lugar à necessidade de saborear aquele momento em sua plenitude. Caminhavam devagar, acariciavam a bola, sorriam-se mutuamente. Admiravam tanto aquele objeto que fizeram o acordo tácito de ainda não fazê-lo tocar o chão. Parecia inconcebível que aquela coisa tão valiosa, tão frágil, tão delicada, pudesse ser manchada, muito menos chutada, por qualquer pessoa que fosse. Tinham pavor de deixá-la cair. Seguravam-na com força. Não conseguiam olhar para mais nada. O mundo havia desvanecido por completo.

Arrebatamento.

Os passos silenciosos dos dois foram subitamente interrompidos por alguns estalos secos, ouvidos após um breve lapso de tempo. Olharam ao redor, vários transeuntes corriam desordenadamente. Ficaram alguns segundos atônitos, tentando entender o que ocorria. Encararam-se e resolveram correr. Pedro saiu em disparada em direção ao muro de uma das casas com a intenção de transpô-lo. No meio do percurso, olhou para o lado e percebeu que Saulo não o acompanhava. Olhou para trás e viu a bola quicando no chão, descendo lentamente o asfalto. Divisou Saulo mais adiante, deitado no chão.

Um segundo pode passar lentamente.

Algumas coisas mudam completamente em um segundo.

Saulo havia sentido uma pancada na barriga, seguida de uma leve pontada. Devia ser o susto de começar a correr subitamente. Mas logo sentiu-se fraco, perdeu o equilíbrio e deixou a bola soltar-se. Quando quis sair em sua direção, caiu. Olhou para a camiseta e percebeu que ela tinha uma mancha vermelha na lateral. Quando Pedro retornava, ele estava levantando a peça para tentar entender como tinha se machucado. Havia sangue saindo de um ferimento pequeno. Sentiu o cheiro de carne queimada. Pedro levantou-o, ajudou-o a caminhar para fora da rua. Pouco a pouco, as pessoas foram reparecendo na via e aproximando-se para inteirar-se do que havia sucedido. Pedro percebeu que também havia outras duas pessoas caídas a certa distância, com mais curiosos ao redor.

Saulo sentia dificuldade para respirar. Começou a tossir. Uma tosse úmida insuportável, que se intensificava. Parecia que estava se afogando. Embora alguns gritassem e fizessem sinais, e outros tivessem saído em busca de ajuda, a primeira ambulância levou mais de uma hora para chegar no local. Era difícil saber, quando o colocaram na maca para dentro do veículo, se Saulo continuava respirando. Pedro tentou entrar com ele, mas foi impedido por um dos paramédicos. O carro branco saiu velozmente logo depois de o acomodarem com uma máscara de oxigênio em seu rosto umedecido.

Pedro olhou ao redor, estava perdido. Havia um tumulto de gente ao redor de policiais. Olhou para a mancha no chão, quis afastar-se de lá. Começou a caminhar pela ribanceira e lembrou-se da bola. Procurou-a brevemente e não a encontrou. Pensou em ir embora, depois mudou de ideia e saiu atrás do objeto. Embora não soubesse precisar o tempo, calculou que devia ter ficado mais ou menos duas horas inquirindo pessoas e verificando todos os caminhos possíveis por onde a bola poderia ter rolado. Procurou alguém jogando futebol nas redondezas. Concluiu que a bola havia desaparecido e resignou-se. Tomou o caminho de casa, completamente catatônico.

Quando chegou ao bairro, quis depois saber o que havia acontecido com o amigo. Caminhou em direção a sua casa. Não havia ninguém. Alguns vizinhos disseram que sua mãe, quando recebeu a ligação da polícia, insistiu que era um equívoco, argumentando que seu filho nunca estivera no local da ocorrência. Em seguida, quando ouviu a descrição exata do seu filho, inclusive com as roupas que vestia naquele dia, saiu desesperada para o hospital. Alguns demonstraram preocupação por sua tia, que tinha desaparecido.

Já escuro, Pedro viu a mãe de Saulo na televisão. Ela gritava, desarticuladamente e entre soluços, que a violência daquela cidade tinha chegado a um nivel insuportável. Que ninguém esclarecera quais eram os responsáveis por aquilo tudo. Que ninguém no hospital lhe dera qualquer notícia de Saulo. Quando perguntada, declarou que ele era seu único filho. Seus olhos eram o abismo da noite sem lua e sem estrelas.       

De madrugada, Pedro não conseguiu dormir. Amaldiçoava o dia em que contou ao amigo da loja onde compraram a bola. Depois, recordou também que fora ele que havia chamado Saulo para jogar bola na rua pela primeira vez. Começou a contorcer-se na cama. Sua mãe encontrou-o encharcado e gritando na cama, e passou toda a noite em claro tentando inutilmente acalmá-lo.

3 comentários:

chrys disse...

Desculpa Matheus, mas tô de mal.

itaney disse...

Gostei, Matheus...não sabia que vc tinha alguma afinidade com futebol, para, de certa forma inserir o tema no conto, embora é claro o foco central não seja o esporte...A meu sentir, o conto vai num crescendo até o desfecho trágico e lamentável, de Saulo caído, sangrando na rua...é um flash, um episódio que se repete na inacreditável violência das grandes cidades, brasileiras sobretudo...ao cabo da leitura, resta um gosto amargo, um sentimento de pesar pela infância perdida, pelo sonho tragado pela violência..Achei densa a trama...há dois termos que vc deve corrigir (acessível e dar-lhe e não assessível e dá-lo). Bela criação, legal, parabéns! Um beijo paternal...Itaney

Matheus Carvalho disse...

Obrigado! Ainda estou chocado por ter cometido erros básicos, espero que seja o fato de ficar falando, ouvindo e lendo em outra língua grande parte do meu tempo.