Não
poderia mais haver dúvidas de que Sara estava grávida. Mal rompia o dia, ela
acordava mais uma vez enjoada, depois de outra noite com sonhos intranquilos.
Há alguns dias, já não pensava em nada além disso. Se houvesse alguém em casa
com quem conversar, talvez pudesse esquecer e voltar a viver sua vida, ter assuntos
variados como toda a gente. Não era o caso. Não desse dia.
Sara
sai da cama preocupada, passa pelo corredor e decide tomar um banho. Há algum
tempo, passou a reparar minuciosamente em todas as mudanças que seu corpo tinha
sofrido nos últimos três meses. Ao tirar a roupa, verifica novamente em sua
nudez que os mamilos estão definitivamente mais escuros e largos do que antes.
Apalpa-os. Gostava de sentir seus seios macios contra seus dedos, especialmente
enquanto se ensaboava, mas agora sente um pouco de dor quando os aperta com um
pouco mais de força. Durante a ducha quente, perde-se uma vez mais em seus pensamentos
e torce para que a água leve tudo embora, para que seus devaneios e fixações possam
descer com a sujeira pelo ralo. Depois de desligar a ducha, ela sai do box, usa
o vaso sanitário para urinar pela segunda vez desde que se deitou na noite
anterior e parte para a cozinha, na outra extremidade do corredor.
Abre
a geladeira e entrevê a comida deixada pela empregada no dia anterior, que lhe causa
um embrulho súbito no estômago. Abre o congelador e acaba optando pelo sorvete
que havia comprado na última noite, sem saber por que - não costumava comer
doce, inclusive sorvete, desde os dez anos de idade, mais ou menos. Era
evidente, não era? Só uma idiota como ela poderia levar tanto tempo para
constatar o óbvio. Uma covarde. Só uma panaca completa poderia acreditar que
aquelas pequenas manchas de sangue que apareceram irregularmente nos últimos
três meses eram iguais às que sempre via desde que tinha onze anos. Três meses.
Precisava conversar com alguém.
Eis
que o telefone toca. Ela tem certeza de que é Ivan e que vai chorar ao telefone
sem razão, mas atende e ouve a voz da mãe. Está tudo bem, sim. Não, não. Vou
ficar por aqui hoje. Tenho que terminar alguns expedientes. Claro que sinto
saudades de você, mãe, é que ando muito ocupada. Não estou estranha. Está tudo
bem entre Ivan e eu, você sempre pergunta isso. Isso e, claro, se eu estou grávida. Se estou? Não, não estou,
mãe. Sempre que tinha alterações súbitas de humor ou ia muito ao banheiro, sua
mãe oferecia aquele olhar de quem procura enxergar a verdade no fundo dos meus
olhos. Se sua mãe fizesse isso hoje, ela certamente se entregaria. Melhor ler
um livro, tomar um café, fumar um cigarro. Mentira. Ela não era capaz de
concentrar-se em livro algum, tem sentido asco do gosto de café e não tinha a
audácia de fumar um cigarro fazia três semanas. Queria o colo da mãe, contar
tudo e esperar que ela a consolasse enquanto acariciava seus cabelos longos e castanhos.
Ela
liga o computador e comprova que a internet está infestada de páginas que
evidenciam, sem nenhum espaço para dúvidas, que Sara está grávida. Algumas parecem
ter o seu nome escrito no título, acima dos textos com os sintomas que a faziam
sentir como a grávida mais típica que o mundo já conseguiu produzir, um
verdadeiro clichê com barriga e pernas doloridas, pronta para irromper na aula
de educação sexual da sétima série com olheiras profundíssimas para repreender
adolescentes que não utilizam métodos contraceptivos. Como podia ter deixado isso
acontecer? Não se lembrava de tomar pílulas todo dia. Droga de aula de educação
sexual. Não serviu para nada. Merda.
Por
que ela não contava a Ivan? Viviam juntos e eram cordiais um com o outro. Costumavam
trocar suas impressões dos respectivos empregos, trocavam confidências e gargalhavam
contando anedotas das pessoas que adoravam detestar. Ela o ama e ele a ama. Não
consegue pensar na sua vida sem ele. Quanto tempo fazia já que estavam juntos? Quatro
anos e oito, quase nove meses. Moravam juntos há um ano e três meses. Seus pais
tiveram a Julia com um ano e meio de casados. Por todas as convenções, nada
havia de condenável. Ivan vai ficar feliz, não vai? Ele certamente sorriria,
diria “estou tão feliz, meu amor”. Com algumas exclamações. E depois o que? Não
sabia. Ou talvez dissesse “acho que não era o momento”. Lhe contaria um segredo. Aquele que jamais
teve coragem de revelar. Ia contar o motivo da distância cada vez maior, que se
sentia nas conversas cada vez mais monótonas e formalizadas. Nos silêncios cada
vez mais longos. Ela não sabia dizer se aqueles silêncios eram um sinal de mais
intimidade ou de distanciamento, e concluía que não sabia nada da vida. Ele
certamente vai dizer “não estou feliz com você” e vai procurar o endereço de
uma clínica de aborto e propor que depois disso devemos nos separar. Vai falar
que se sente sozinho. Que “nós não somos mais o que costumávamos ser”. Que ela
mudou muito. Ela mudou muito? Ficou velha, seu corpo não é mais tão bonito como
quando se conheceram. Ela se divertia andando nua no quarto para que ele
a olhasse e pensasse: “ela é linda”. Agora, prefere usar um pijama velho à noite.
É cruel saber que ele já não gosta mais tanto do seu corpo quanto gostava no
início. Afinal, ele a conheceu quando ela estava no auge de sua autoconfiança,
quando via que outros queriam arrancar a sua roupa e vê-la assim pelada pelo
quarto como ele sempre podia. Agora coloca roupas para perambular pelo
apartamento. Queria ser jovem de novo e era cada dia mais velha.
Ele
está sempre viajando a trabalho, sempre longe dela. Quando se conheceram,
pensava que ia romper porque não conseguia ficar tão junto quanto ele tinha
vontade. Ele queria casar, queria ter filhos, queria já ter netos se pudesse
fazê-lo. Era tão seguro das decisões que ela talvez tivesse se casado porque
ele tinha tanta certeza que dava para os dois. Ela tinha medo da rotina e
depois odiou a rotina que de fato surgiu. Sentiu-se vítima de uma armadilha
social. Tinha se casado cedo demais. Tinha vontade de fugir. Provavelmente
Ivan, também. Mas ela não queria que ele fugisse. Ele é bonito, é inteligente,
é charmoso. Muitas mulheres o cobiçam. Ela ia perde-lo, com certeza. Em
contrapartida, às vezes sentia apenas um tédio enorme em sua companhia. Ela não
sabe o que quer. Ela odeia não saber o que quer. Ela é uma coitada na vida. Uma
imatura. Um caso perdido.
Mas
um filho podia mudar tudo isso. Ia ser o fim da rotina. Ele vai parar de viajar
a trabalho e vai dizer ao chefe “não posso sair tanto, tenho que cuidar da
minha mulher, que está grávida”. E nossas conversas tomarão um novo rumo. Vamos
ler livros sobre gravidez e sobre criação de filhos, ele vai admirar cada vez
mais meu corpo e suas alterações, todo mundo vai (minha mãe, como vai me
idolatrar, e meu pai, quando eu anunciar minha nova condição, os dois sorrirão
em estado de graça admirando a minha barriga!). Ela termina de tomar duas taças
de sorvete, volta pelo corredor de paredes brancas até o escritório, e tenta
imaginar aquele cômodo com a parede azul, ou talvez rosa, coberta de papel de
parede ou de adesivos espirituosos para crianças. Como ele - ou ela - vai ser
feliz. Não precisam pedir dinheiro emprestado para dar-lhe uma ótima educação.
Ela vai ter brinquedos, vai ser a criança mais amada do mundo. Será muito mais
alegre do que ela, mais inteligente do que ela, menos panaca do que ela, vai
viajar, vai conhecer o mundo todo, vai falar dez línguas, vai tocar seis
instrumentos, vai ser linda e vai sempre se lembrar da mãe onde quer que
esteja, e vai telefonar sempre para saber como ela vai. E ela será a mãe mais
orgulhosa do mundo. Terão uma vida inteira juntas pela frente. E tudo vai começar
aqui, neste cômodo. Sara fantasia os brinquedos espalhados pelo chão, a boca de
lábios tão vermelhos e macios pedindo chupeta, falando as primeiras palavras -
e a primeira palavra será indefectivelmente “mãe”! -, as fraldas estocadas na
área de serviço, os contos de fadas antes de dormir. Vai começar o período mais
feliz e autêntico da sua vida.
O
nascimento de uma criança (“da meu filha!”) é sempre um acontecimento especial.
O mundo não será mais o mesmo, será renovado porque haverá um ser (“o meu filho!”)
único, diferente de tudo o que a humanidade tinha visto até agora, e por isso é
preciso que se deposite todas as esperanças nele. Sua vinda será uma bênção,
mudará o mundo mesmo que imperceptivelmente, e a existência dela toda será virada
de cabeça pra baixo, e ela vai ser a mãe mais abobalhada do mundo. Será alegre por
ter a honra de cuidar de alguém, de colocar todas as suas forças por um ser
frágil não poderá se proteger sozinho. Se depender dela, ninguém causará nenhum
mal a esse anjinho. Deslumbrava-se pensando nele, ou nela, com dois meses, com
seis meses, com dois anos, com dez anos, com quinze anos, com dezoito anos... e
se extasiava.
No
meio de seu idílio, que deve ter durado algumas horas, seu celular toca. Ela retorna
ao quarto e vê o nome do contato piscando na tela: “Dentista”. Decide não
atender. Todavia, a chamada tem um efeito perturbador sobre seu estado de
espírito. Todas as imagens vividas até aquele momento, os planos para o futuro,
o anjinho que acalantará sua alma, são destroçados por aquela chamada do
“dentista”, nome que encobria a verdadeira identidade da pessoa no outro lado
da linha.
Era
André quem tinha acabado de ligar. Não restava mais sombra daquela noite fria,
nove meses atrás, em que ela havia conhecido André e iniciado um caso com ele. Uma
noite de solidão e desesperança do casamento que acabava no bistrô, sozinha, ao
lado de uma mesa com outra pessoa igualmente só. Depois, os dois no carro dele.
Os olhos fechados. Lábios úmidos com lábios ardentes que esperavam o beijo. Violento,
prolongado, inevitável, desesperado. As mãos passando pelos cabelos, descendo
para a cintura, para as pernas. Outras mãos próximas ao beijo, os olhos sempre
fechados: uma tentativa cega de tocar o próprio beijo. De senti-lo mais. A
respiração profunda e os suspiros desencontrados. E tudo tão frio lá fora. Suas
mãos mais frias, ainda. O calor de dentro. A visão embaçada dentro do ambiente
com vidros mais embaçados ainda. A petrificação daquele momento. Novos rostos
no mesmo beijo. A infelicidade mútua provisoriamente esquecida. O império
absoluto e precário do desejo. A ausência do tempo. O mundo inteiro dissolvido.
O caos interno. O sonho acordado. A inteira falta de pensamento. A falta da
linguagem, dos debates, das discussões. Somente fluidos, pulsações, circulação,
carinhos. O estranhamento feliz de perceber que, apesar de achar que o amor
estaria enterrado e longe de sua vida por muito tempo, ele voltava assim tão
mais inesperadamente, subrepticiamente, do que jamais costumava agora permitir-se
pensar. A constatação de que algo profundo emergia e criava algo que iria
prolongar-se por muito e muito tempo. A convicção de que era certo, no tempo e
no lugar em que inexoravelmente deveria ocorrer. A vontade de explicar o que se
passava naquele momento dentro dela. A completa falta de palavras.
Então,
em um momento que não consegue precisar, a ilusão se dissolve. Ela acorda do
sonho e abre os olhos. A promessa da aventura e do renascimento de sua
personalidade submerge com o tempo e com o aparecimento de uma nova rotina. Uma
rotina, todavia, marcada por desentendimentos cada vez mais frequentes e por
cenas de ciúmes cada vez mais intoleráveis. E os atos de vingança e de rancor
que ela jamais pensara poder protagonizar. Aquilo foi tornando-se tão intenso e
tão difícil de conter ou ocultar que o afastamento foi inevitável. O casamento
de Sara tornou-se, inesperadamente, um refúgio da sua pretensa história de
paixão. O contrário do que esperava quando conhecera André e vira nele o refúgio
de seu casamento. O segredo perdera sua aura de beleza e adquirira a cor do aborrecimento.
O que não impedia certas recaídas como a que o dentista tivera agora, ao ligar
para seu celular, provavelmente após ter dormido com alguém para convencer-se
de que não precisava dela e para se vingar do fato de que ela nunca considerara
seriamente separar-se do marido. Ela própria escolhera uma vida de hipocrisia
que prometia a redenção e que agora só inspirava-lhe medo e insegurança. Tinha
pena de si mesma e de sua fraqueza. A segurança de Ivan a humilhara, lhe
causara aversão ao longo do tempo. Talvez por isso tenha fugido para uma tola
fantasia de uma história tórrida que não haviam trazido nenhuma revelação, mas
somente a reincidência do seu espírito na busca de algo que ela mesma não sabia
dizer o que era. Desejava que aquela sensação incessante de falta a abandonasse
de vez, mas sabia, no fundo, que era improvável.
Seu
último encontro com o “seu dentista” havia ocorrido há dois meses, e dele não
se arrependia tanto. O problema havia sido aquele de exatamente três meses
atrás. Era a mancha que pesava sobre todos os seus planos para o futuro. Por
isso, ela tentava fugir dessas lembranças. E poderia perfeitamente ignorar
André pelo resto de sua existência, e esperar até que aquilo se tornasse um
sonho ruim, difícil até de recordar. Mas André podia descobrir sua condição e
persegui-la, obrigá-la a revelar o seu segredo e despedaçar tudo o que tinha planejado.
E, mesmo que não o fizesse, poderia ela viver com a noção de estar ocultando a
verdade de todos (inclusive da própria criança inocente) e fingir que seu
marido não criava o filho biológico de outro? E se o menino nascesse loiro como
André? Se tivesse aqueles olhos carentes e verdes? Podia tentar mentir, claro, e
as pessoas podiam naturalmente enxergar uma semelhança inexistente no rosto do neném
com o de Ivan por mera sugestão. Mas iria ela suportar o peso? Iria passar o
resto da vida com falsas virtudes estampadas no rosto? Viver uma vida que não
era a sua?
Por
outro lado, o bebê poderia ser de Ivan. Ela poderia fazer um exame de DNA às
escondidas, roubando por exemplo um fio de cabelo do marido no travesseiro, e
confirmar uma paternidade legítima. Neste caso, não teria peso de consciência e
poderia retornar ao conto de fadas que vivia há pouco. Manter a vida da classe
média e mediana que desprezava quando era universitária e que agora abraçava
com todo o ser. Ansiava por acreditar, como todos aparentemente acreditavam, no
casamento com filhos, no almoço em família e nas conversas sobre o cotidiano de
cada um dos comensais. No beijo de boa noite antes de dormir. Quem sabe até nas
orações, nas cantigas de ninar, nas reuniões à beira da piscina do quintal com
vizinhos e parentes. Mas, para ela, aquilo tudo também era uma mentira. As
certezas de Ivan, a segurança de Ivan, a arrogância de Ivan, implicavam para
ela uma mente obtusa e um comportamento pusilânime. Como poderia criar um filho
com alguém que não mais admirava e que respeitava apenas exteriormente?
Era
claro que aquela criança não podia nascer senão depois de uma série de
confrontações com que Sara não podia lidar. Caso contasse a verdade, seria
repelida pelos que a estimavam, até, ou talvez principalmente, por sua própria
família. E teria que criar o filho sozinha. Mesmo que a perdoassem, entendia
que não queria estar presa o resto da vida nem com Ivan, nem com André. Ela
detestava tudo aquilo, tinha repulsa de si mesma. Uma criança não podia nascer
no meio disso, era desumano. Sara não podia conceber que se castigasse alguém inocente
pelos seus próprios pecados.
Já
era noite quando Sara imergia nestes sentimentos e soluçava no sofá da sala.
Tinha pesquisado sobre clínicas clandestinas de aborto e lido as histórias mais
horrendas. Além disso, para encontrar uma clínica e torcer pelo melhor, era
preciso indagar suas amigas sobre o assunto. Em suma, era indispensável contar
a verdade a alguém. E arriscar que a conversa se disseminasse. E, depois das
fofocas e das intrigas, quem sabe morrer exangue no banheiro de algum hotel,
depois de profanarem o seu útero e darem várias estocadas em seu filho com um
pedaço infectado de metal. Expelir os restos do seu crime (do seu anjo) na
banheira ou no vaso sanitário.
E
depois viver como se nada tivesse acontecido. Continuar mentindo, como já mentia
agora. Sob qualquer perspectiva, sofreria uma condenação. Não havia sido capaz
de amar sinceramente ninguém, muito menos a si mesma. Escondera de todos e de
si mesma os pensamentos mais verdadeiros, muitos dos quais eram os mais belos,
e outros, os mais reprováveis, os mais escandalosos. Por dentro dela havia
tanta podridão. E agora havia também um bebê que estava se alimentando do lixo
que ela carregava em suas entranhas, que estava imundo, sufocando e agonizando
dentro dela.
Recorda
os sonhos que tem tido. Sonhou diversas vezes que estava em um gramado cheio de
crianças, filhas dos adultos que estavam lá (que se alternavam entre amigos,
primos, conhecidos ou desconhecidos), brincando em algum parque. Em um dado
momento do sonho, descobria que aquelas crianças eram na verdade filhos dela, e se desesperava por estar sendo
negligente e por sua ignorância de sua própria condição de mãe. O sonho daquela
última noite havia sido distinto. Sonhara que amamentava um bebê e que de seu
peito emanava veneno, e que portanto estava assassinando o próprio filho. Não
obstante, não parava de amamentá-lo. Permanecia assim, tranquilamente. Por mais
que sentisse pavor da ideia, não afastava o filho, que chupava o líquido
avidamente, até o momento em que acordava subitamente imersa em suor e em culpa.
Sara, esgotada, dorme no sofá. A tristeza profunda muitas vezes é tão intensa que joga a pessoa na única coisa que pode reparar uma dor espiritual lancinante: o sono. Dormir provê o descanso que possibilita o seguimento da vida, que muitas vezes é insuportável. Ou não, porque neste caso Sara acordou, depois de meia-noite, chorando e soluçando ainda mais forte, sem saber da razão. Olha o relógio. Sente o ar abafado, não consegue
respirar e irrompe para a sacada, como que asfixiada. Admira o céu limpo e estrelado.
Em seguida, fica um longo tempo com a cabeça virada para o chão, quase que em
transe, sem enxergar realmente nada. Quando foca o cimento da calçada, ocorre-lhe
então que bastava tirar os pés do chão do apartamento e todo o peso de sua
cabeça desapareceria, e ela teria paz. Fica um momento calculando a altura do
oitavo andar, sondando se uma queda a mataria instantaneamente. Sobe no
parapeito e permanece equilibrando-se por alguns minutos. Não consegue saltar.
Suas pernas estão trêmulas. Sente vergonha de não conseguir sequer extinguir a
sua dor. Chora de novo sobre o tapete. Caminha para a cozinha em busca de
calmantes. Se não houvesse o suficiente para aniquilá-la, ao menos haveria para
dormir por horas ou até dias. Puxa uma cadeira da mesa e arrasta-a para
apoiar-se e inspecionar as portas do armário.
Então,
entre as canecas de chá, encontra uma faca de cortar carne que a empregada
havia deixado ali. Tudo adquire um aspecto de inevitabilidade. Parece que toda
a sua vida sucedera de modo que chegasse este momento. Não havia mais dúvidas sobre
o que fazer. Sara tenta segurar a faca com firmeza, apesar da agitação de seu
corpo. Não consegue sequer descer da cadeira onde se apoiou para examinar as
prateleiras. Tem que ser ali mesmo.
Por
um brevíssimo momento, Sara tem a sensação de que aquilo não passava de uma
crise, pensa em largar a faca e deixá-la cair no chão. Mas ela havia levado uma
vida de irresoluções e a oportunidade de redimir-se estava agora em suas mãos.
Examina a barriga e posiciona sua ponta na parte inferior do seu ventre. Permite-se
um tempo para parar de soluçar. Depois, penetra lentamente a faca, até
traspassar completamente o útero e dar o golpe de misericórdia ao inocente que
finalmente expiraria dentro de seu organismo seco e inóspito.
Sara
sente tonturas, perde o equilíbrio, cai da cadeira e tomba sobre o piso.
Somente agora, com a queda, sente dor. Com o corpo todo em frenesi, consegue
retirar a faca e supõe enxergar a saída de litros de líquido amniótico com o
filho lambuzado, mas o chão vai se cobrindo apenas de um líquido vermelho
escuro. Ela escuta um choro de neném, tenta mover-se para niná-lo mas não
consegue e, então, suspira pela última vez.
Dias depois, a autópsia do corpo de Sara revela
um útero inutilmente perfurado - e completamente vazio.
7 comentários:
Emocionante!
Muito criativo, interessante, capaz de segurar o leitor até o final, mas esse final ultra dramático talvez soe um pouco inverossímel, não sei...e se ela constatasse que, nada verdade, era uma gravidez psicológica? Também me parece que a carga trágica do desfecho talvez exigisse uma descrição mais pormenorizada, sofrida, quase insuportável...Foi muita rápida a descrição para o auge da narrativa..ainda assim, alcança e afeta a sensibilidade do leitor. Sem querer um final feliz, eu adotaria outro desfecho (se bem que não conseguiria desenvolver a trama até chegar lá..) Muito legal. Parabéns! Forte até!!
um texto que começou com sonhos intranquilos Kafkianos, seguido de um enredo criativo e um final Rodriguiano surpreendente.
muito bom, Matheus!
vai firme.
abraços
Ufa! Li de cabo a rabo, num único respiro! Muito bom, Mat!
Minha opinião comunga, em grande parte, com a do seu pai.
Achei ótimo a forma como foi descrita o devaneio dela em relação à suposta gravidez bem como o primeiro encontro com o amante!
Relativo ao final, acredito que um final mais curto, como foi feito, foi ideal, já que o leitor fica com aquela sensação de estupefação, de ter que refletir todo o texto para tentar compreender uma atitude tão dramática por parte da protagonista.
Por um outro lado (sei que é chato ficar dando pitaco, mas é o intuito do blog, não?) acho que também deixaria o desfecho diferente, algo talvez mais próximo da "realidade": ela poderia estar realmente grávida, poderia ocorrer um aborto espontâneo e, aí, acho que todo o drama psicológico que ela viveu até aquele momento (em relação à publicidade da gravidez, à paternidade, família, etc) ficaria pequeno perto da não realização de sua maternidade - que, me parece, estava presente nela, mesmo que de forma inconsciente.
Bom, em resumo, gostei muito e nunca é demais dizer que você está seguindo um caminho literário muito interessante!
Abraços
Um final surpreendente, mas porque não? Gostei, acho que você já tem um estilo próprio e interessante, um jeito de levar o leitor até o final com intensidade . Parabéns !
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