Francisco estava decorando a casa
para que Beatriz a encontrasse exatamente do jeito que sempre sonhara. Passava
grande parte do tempo percorrendo-a e fazendo listas dos desejos que ela havia
manifestado antes de partir. E depois buscava colocá-los em prática. Tinha, por
exemplo, replantado todas as flores que eram de seu gosto e retirado os quadros
que ela não achava especialmente bonitos e substituído por novos, comprados
numa galeria modernista no centro da cidade e que haviam custado mais que um
mês de seu salário. Emoldurou cartazes com imagens que certamente a alegrariam
imensamente quando os visse. Pensava em como ela diria: “Francisco, que coisa
mais maravilhosa a nossa casa, vamos ser muito felizes aqui de agora em
diante”.
Aqueles pequenos defeitos das
paredes e do teto, que nunca o incomodaram, resolveu eliminá-los e contratou
alguém para que não sobrasse mais sinal daquelas falhas e rachaduras que haviam
lhe causado tantas perturbações. Tinham tido azar, realmente, mas o que
importava agora é que tudo já estava superado. Os vazamentos da cozinha, as
manchas no móvel da sala, as janelas que
rangiam, tudo havia sumido e não havia mais algo que não estivesse em perfeito
estado. E se, ainda assim, Beatriz não quisesse mais ficar lá, não se
importava: se mudaria de apartamento, construiria uma casa, passaria anos
arrumando tudo de novo, desde que com ela.
Francisco queria aumentar ainda mais
a surpresa que Beatriz teria em sua chegada. Deixou suas leituras usuais e seus
programas de televisão e começou a ler livros sobre os assuntos que a
interessavam, com o objetivo de impressioná-la quando ela viesse falar que era
uma pena que eles não tinham os mesmos interesses para conversar por horas e
horas sobre as coisas que mais a apaixonavam. Começou pesquisando na internet,
leu alguns textos mais longos, assistira alguns filmes, frequentara cursos e até
se pode dizer que passara a ser quase um especialista em alguns assuntos. Já
tinha escutado inúmeras vezes todos os discos que ela deixara, sabia de memória
a letra de todas as músicas. Assoviava algumas enquanto passeava a pé pela
cidade.
Adotou uma gata siamesa e a chamou
de Amélie, pensando que a agradaria. Sempre que Francisco sentia-se sozinho,
Amélie ficava ao seu lado, ronronando e consolando-o.
Às vezes, porém, Francisco se
sentia triste por Beatriz demorar tanto. Via que, pouco a pouco, as marcas que
deixara nele iam se apagando da memória. Não conseguia mais lembrar-se
exatamente da sua voz, por mais que a tenha escutado diariamente por anos. Concentrava-se intensamente, mas não estava
mais seguro de que o tom recordado tinha exatamente aquele seu timbre tão
particular. As feições gerais do rosto se mantinham intactas em sua cabeça, mas
os detalhes também feneciam gradativamente. Adorava as pintas no rosto dela,
espargidas entre umas rugas tão superficiais que só de bem perto era possível
perceber. Nesses momentos de consciência do inevitável esquecimento, abria os
álbuns de fotografia e constatava que o rosto que havia reconstituído
mentalmente não era exatamente aquele que constava dos retratos. Reparava que nem ele próprio era agora o
mesmo daquelas fotos tiradas pouco antes de deixar de conviver com a mulher que
amava tão apaixonadamente. Não podia mais reviver a sensação de percorrer com
os dedos a pele de seu braço tão delicado. Sentia uma nostalgia inacreditável
de seu cheiro. De vez em quando, imerso em todas essas frustrações, respirava com dificuldade, tentava tomar um
banho e chorava embaixo do chuveiro.
Nesse incessante pensamento em
Beatriz, Francisco foi progressivamente afastando-se das pessoas de seu
convívio diário. Negava-se a conversar com os amigos de Beatriz, porque isso
trazia ainda mais recordações e mais angústias. Por outro lado, não tinha
alegria em encontrar seus próprios amigos, que buscavam fazê-lo pensar em
outras coisas que não Beatriz. E só Beatriz importava. Havia que se preparar
para seu retorno iminente.
Contudo, o tempo passava.
Francisco buscava evitar este pensamento e se entregava a alguns atos
desesperados. Um dia, encontrou uma escova para pentear que continha alguns
fios de cabelo dela, e com medo de que a limpeza periódica de sua casa acabasse
com os últimos resquícios do corpo de sua mulher, guardou este tesouro onde faxineira
alguma pudesse matar o que havia sobrado dela. Outras vezes, Francisco ia ao
guarda-roupa, onde tinha mantido todas as peças de Beatriz, e tentava obstinadamente
sentir seu cheiro. Mas tudo o que vinha dos tecidos era um olor de mofo
misturado com resquícios de amaciante.
Pensava sempre no que Beatriz
estaria fazendo naquele momento. Estaria ela num parque, alimentando pássaros? Estaria
ela arquitetando planos para o futuro? Estaria dançando alegremente em alguma
festa? Estaria bêbada e soluçando em uma mesa de bar? Estaria cantando no meio
da rua atraindo os sorrisos interessados de todos? Estaria se divertindo com
seus novos ou velhos amigos? Teria um novo amor? Teria se esquecido dele?
Estaria sofrendo de saudades? Estaria desenhando prédios num banco de praça?
Estaria tendo reuniões com seus novos colegas de trabalho e clientes? Estaria
chorando? Estaria sorrindo? Francisco variava entre as infinitas
possibilidades e não cansava de imaginá-la sempre, todo dia, toda hora, todo
minuto, todo segundo, cada fração de tempo que lhe foi concedida viver.
A verdade, porém, é que Beatriz
não estava fazendo nada do que Francisco imaginava. Ela jazia no lote 272 do
Cemitério da Saudade, na periferia da cidade. Saíra perturbada de casa, dois
anos antes, por conta de uma discussão que tivera com ele. Distraída,
atravessou a rua em prantos e foi atropelada por um caminhão da prefeitura que percorria
a rua a toda velocidade. Francisco, que correra atrás dela, vira tudo.
Acompanhara-a na ambulância até o hospital e recebera a notícia de sua morte
poucas horas depois. Durante seu funeral, parecia catatônico: não dizia nada,
parecia não ver nada, entender nada. As pessoas, ao cumprimentá-lo, o viam
desconsolado para além de qualquer cura. Depois de um tempo, passou a agir como
se nada tivesse acontecido, e a anunciar e ansiar por sua volta.
Muitas vezes, Francisco se sentia
tão pequeno, tão pequeno, tão pequeno. Não tinha mais vontade de trabalhar. Não
conseguia comer nem dormir. Desejava punir-se. Presumia que tinha sido
abandonado por ser uma pessoa ruim. Por ser fraco, por ser ignorante, por ser
feio, por ser egoísta, por ser patético, por ser desprezível.
Periodicamente, saía de casa para
escrever uns poemas curtos e desenhar paisagens urbanas, sempre com carvão ou grafite.
Para ele, o mundo passara a ser em preto e branco.
12 comentários:
Esse texto me fez pensar em várias coisas: a peça closer
Você leu? Tem um final diferente para a personagem da Natalie Portman e é exatamente igual a esse texto. Outras coisas que eu pensei te conto depois por mensagem. Beijos! Ina
Bonito e triste. Bem desenvolvido. Aqueles toques de realidade, como da circunstância de os vestidos rescenderem a mofo, enriquecem o texto, contribuindo para evitar o sentimentalismo piegas. Achei muito interessante também a idéia de que o personagem se alienou da realidade, ficando no aguardo de alguém que nunca virá, porque já morta...Enfim, um texto literário, ainda que catártico...Muito legal, abraços, filho!
Gostei... ele não aceita a morte de sua amada e cria uma nova realidade na esperança de que ela volte...Procura fazer coisas que ele imagina a deixariam feliz. Agora é tarde... Agora não adianta mais...
Bonito... eu fiquei pensando se ele atuaria da mesma forma se ela ainda tivesse vida e seu retorno fosse um fato...
Me fez pensar...em saudade, em valor que se dá, quando já não se tem.
Será que o amor para ser um grande amor, tem de ser sempre triste ou impossível?
Concordo com papai: bonito e triste. E com frases muito bem dilapidadas, como a do mofo misturado aos resquícios de amaciante, e também esta: "desconsolado para além de qualquer cura - não há melhor maneira de expressar o grau de prostração do protagonista, com a morte da esposa. O final é especialmente tocante. Muito bom! Beijo!
Achei realista . Quando perdemos alguém viajamos na saudade. Muito bem relatado, envolvente, como sempre . Escrever é uma arte fantástica ! Prossiga, seus contos são interessantes . Gosto muito do estilo, da narrativa . Estarei torcendo pelo jovem escritor Matheus.Parabéns !
Seus contos são de uma realidade impressionante, parece de alguem que já experimentou muito a vida. Nele o protagonista parece que entrou em depressão profunda.Mas senti certa amargura ou tristeza em seu modo de pensar
,ao expor no papel os personagens criados para esse texto. Como se fosse um desabafo.
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(Carlos Drummond de Andrade)
Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
(Pablo Neruda)
muito bom de ler e sentir, Matheus!!
Gostaria que fosse o primeiro capitulo de um livro, me envolvi bastante, gostaria de poder ler a historia toda. Bjos, Denise
Postar um comentário