segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ano Novo

Como prometido a D.


31.12.2011
Será hoje. Quando der meia-noite. Talvez pouco depois. Vou entrar no novo ano com estilo. Com roupas novas para a ocasião. Gastei um dinheiro que não poderia gastar, mas agora não importa. Há anos não me sentia tão bonito. E assim vou para o lugar perfeito, o lugar secreto que descobri. Finalmente estarei lá, e não poderia haver lugar melhor. Renovação completa. O sonho de todo ser humano. Tenho esta excelente sensação de antecipação, que sinceramente não esperava. Sou pessimista até no pessimismo. Já conversei com as pessoas que me importam: minha mãe, tio Anselmo, a Livia. Não há mais quase ninguém. Mas não tenho rancor. Disse que iria viajar no Réveillon. Fui sincero, afinal, realmente estava já quase tomando o ônibus quando pus o telefone no gancho. Já me sinto mais leve. Subo, subo, subo, vou flutuar. Esta noite será uma dança no ar. Flutuarei acelerando a 10 metros por segundo ao quadrado. É rápido. Estarei a 1500 quilômetros de onde moro. A 5000 km de onde nasci. Não trouxe absolutamente nada senão a roupa do corpo. Quase nenhum dinheiro. Vou para onde ninguém precisa de dinheiro. Não encontrarão meus pertences. Doei-os a pobres de outras cidades. Ah, o altruísmo de quem não tem nada a perder. Herança nunca foi doação. Não vale nada. Eu sei. Fui mesquinho. O resto joguei no lixo no meio do caminho. Sou livre. Agora sou livre. Nunca mais vão ouvir falar de mim. Sem tristeza. É impossível que achem meu corpo. Nunca vi lugar mais alto. Os peixes devoram o que sobra. Não haverá documentos, não haverá roupas reconhecíveis, minhas digitais estarão carcomidas pela água. Serei parte do mundo. Antes tarde que nunca. Me integrarei. Adeus, semanas inteiras sem pronunciar palavra. Adeus, coração partido e braços vazios. Adeus, lembranças dolorosas. Adeus, futuro perdido. Adeus. Ninguém sentirá minha falta. Muito menos eu.  Vou sair de mim.

03.01.2012
Não consigo parar de pensar nisso. Como pôde alguém ter exatamente a mesma ideia e resolver executá-la no mesmo lugar e na mesma hora? A imagem horrenda de um corpo em direção ao precipício, sumindo no nevoeiro. Sem ruído de queda. Ou talvez eu não estivesse em mim. Mas assisti a tudo. A tudo. Quando me aproximei, já era tarde demais. Talvez até tenha feito porque me viu. Não consegui ver seu rosto. Tinha o cabelo parecido ao meu. Tinha também roupas parecidas às minhas. Peças novas. Pulou antes de mim. E estragou meu próprio plano. Não consegui segui-lo. Preciso descobrir quem era. Não faz sentido, claro, não faz nenhum sentido. Eu também queria fugir anônimo. Mas as pessoas precisam saber. Eu preciso saber porque ele fez isso. Porque desistiu. Se se precipitou. Fui à delegacia e perguntei se havia registro de alguém desaparecido. Nada. Andei pela cidade, todos comemoravam o ano novo. E alguém havia morrido poucas horas antes. Andei atônito pela cidade. Um senhor me acolheu na casa dele quando me encontrou dormindo na praça. Não me lembro como fui parar lá. A noite mais longa e mais breve. Disse que iria pagar a estada. Fui fazer um bico num bar. Recebo em alguns dias. Enquanto isso, faço a investigação. Eu vou saber. Depois, aí sim, também me vou. Exatamente como ele.

12.03.2012
Ainda não consegui descobrir quem era. Lembrei-me que me olhou antes de pular. Me viu e, ainda assim (ou talvez por isso), se jogou. E riu. Acho que ele riu. Não sei dizer. Acho que sim. Talvez estivesse feliz por sua resolução. Talvez estivesse rindo de meu desconcerto. Agora é tarde demais. A Ângela me disse que registraram a ocorrência de um desaparecido. Não parece ser ele. Ela está desconfiando de eu puxar tanto papo perguntando se não há pessoas desaparecidas por aqui. Às vezes, pergunto também sobre objetos extraviados. Finjo que sou curioso. Um colecionador de coisas e pessoas perdidas. Mas ela já notou que tem algo por trás.

21.06.2012
Liguei para minha mãe. O Francisco acabou me convencendo. Esse negócio de ficar conversando toda noite a noite toda com o Francisco acaba me fazendo agir de maneiras muito inesperadas. No entanto, ele tinha razão. Uma coisa era eu ter morrido e minha mãe ter esperanças de eu estar vivo. Outra é eu estar vivo e minha mãe temer que eu esteja morto. Liguei. Ela chorou um pouco. Ficou tranquila quando eu disse que tinha refeito minha vida em outro lugar e que era melhor que ela não soubesse onde eu estava. Eu disse que ligaria de vez em quando. Pedi-lhe que avisasse ao tio Anselmo. Com a Lívia não falo mais. A Lívia foi a pior melhor coisa que podia ter acontecido. Agora é passado. Ângela me ligou. Vou encontrar-me com ela no bar onde trabalhava. Continuo sem descobrir nada sobre o suicida. Já viajei para todas as cidades vizinhas. Pelo menos há gente que me ajuda nisso na delegacia, além da Ângela. O Francisco e a Silvia sempre estão de olho nos jornais. Uma hora encontro algo.

31.08.2012
A Ângela me confirmou que está mesmo grávida. Disse que vai ter o filho. Eu não tive coragem de propor nada que contradissesse isso. Ela é minha melhor amiga. Hoje encontrei um anúncio de jornal promissor sobre a minha busca. Viajo amanhã. Depois penso em que fazer.

09.09.2012
Estou juntando dinheiro. Meu emprego está melhor, ganho mais do que ganhava antes de vir aqui. Tive que visitar minha mãe para pegar a segunda via do meu diploma universitário. Ela ficou contente. Francisco está feliz, Anselmo está feliz. Todos comemoram minha anunciada paternidade. Estou começando a gostar da ideia.

21.10.2012
Estou apaixonado pela Silvia. Não posso negar. O sol brilha mais no cabelo dela do que no de qualquer outra pessoa. Estou perdido. Preciso conversar com alguém sobre isso. Que estado lamentável. Estou perdido. Extasiado. Perdido para além ou aquém da razão.

11.11.2012
Onze meses e nada. Tenho andado muito ocupado juntando dinheiro para o nascimento da Gabriela. Ângela decidiu que estamos melhores como amigos. Podemos compartilhar a guarda, caso eu mude de ideia. Francisco me olha às vezes com medo, pensando que o Ano Novo está chegando.  Nunca contei nada à Ângela, quero preservá-la de qualquer desgosto, ainda mais neste momento importante. Ela está uma grávida linda. Espero que a Gabriela seja a cara dela. Bonita. Sempre me senti feio. Mas eu sou pouco importante aqui. Aliás, não importo mais. Importa apenas que a Gabriela seja feliz.


31.12.2012
Falta pouco para a meia-noite. Tento recordar o que aconteceu há exatamente um ano atrás. Meus sentidos me enganavam. Trêmulo como alguém prestes a morrer. Imaginação? Minha memória é de mim próprio caindo. Ou não. Não consigo me lembrar do rosto dele. Tentei descer ali, ninguém tem coragem de entrar na corredeira para procurar algo que nunca pude dizer o que era. Basta. Francisco parou de desconfiar de que eu possa fazer algo nesta passagem de ano. Sinto que 2013 será o meu ano. Um minuto para os fogos de artifício e as taças de champagne.

domingo, 26 de agosto de 2012

A conversão de Saulo


A bola passava de pé em pé para Saulo para Pedro para João para Lucas quando repentinamente toma uma pancada para fora do campo de terra improvisado e bate no parapeito ponteagudo do sobrado ao lado e, como que dissolvendo toda a agitação, explode. 

Desamparo.

Saulo não podia acreditar no que jurava não enxergar. Tinha feito três gols, caminhava para a artilharia do campeonato do bairro. Havia treinado exaustivamente com o dono da bola. Augusto, o dono da bola, deixava-o brincar com a dita cuja de quando em quando, desde que não saísse do seu quintal e desde que ele jogasse (e desde que ganhasse). A inutilização daquela bola era uma tragédia em todas as esferas da vida de Saulo. Depois de Augusto, que podia cismar com algo e partir, Saulo era quase sempre o primeiro a ser escolhido para integrar o time. Isso já era uma vitória pessoal. Existe uma hierarquia no futebol infantil de rua, e Saulo havia duramente ascendido nela, contra todos os prognósticos.

Afinal, é um menino rodeado pelo sexo feminino. A mãe criara-o sozinho e nunca mencionou, uma só vez sequer, algo sobre seu pai. Como família, tinha somente uma tia, que desempenhava o papel de segunda mãe. Era tímido de nascença e se refugiava em casa durante praticamente o dia todo. Acordava, ia para a escola, voltava para casa, almoçava, assistia desenhos animados, fazia as tarefas de casa, lia revistas no quarto, saía do quarto para comer, ficava com a mãe depois que ela chegava do trabalho, e ia dormir. Entre poucas surpresas, passava os fins-de-semana na casa da tia ou acompanhava sua mãe em compras ou visitas a parentes que moravam em outros bairros. Alguns deles caçoavam de seu cabelo liso e negro, com uma franja que o cabeleireiro insistia em cortar irregularmente. Estes passeios o perturbavam, além disso, porque ao andar de ônibus ou metrô achava que todos reparariam suas pernas finas e seu jeito desajeitado. Era um menino solitário, mas de maneira alguma melancólico.

O momento mais aterrorizante do seu dia era a hora do recreio do colégio. É o momento em que se torna patente quem pertence a cada grupo, quem transita entre vários, quem se destaca em algum esporte, quem é mais engraçados e até mesmo quem é mais caçoado. Neste instantâneo fotográfico, Saulo sairia desfocado, ou buscando aparecer no fundo, ou relegado a um canto imperceptível da composição. Não era especialmente popular nem impopular, não era engraçado ou tedioso, não era ridicularizado, não implicava com outros alunos. Sentava-se e observava, simplesmente. Saudava uns que passavam por perto, outros ignorava. Muitos não lhe davam bola. E assim os dias corriam.

Até que um episódio ínfimo, de que ninguém se deu conta (salvo, obviamente, Saulo), veio mudar sua vida. Um dia, voltando para casa, escutou seu nome. De início, pensou que tinha ouvido mal, até que o aumento do coro (eram agora três gritando) tornou impossível seguir a caminhada indiferente. Pedro, que morava a cinco casas dele, chamara-o porque precisava de alguém que completasse seu time. A mãe de um dos que participavam do jogo havia intimado-o para casa porque seu pai estava no hospital (“é um bebum”, esclarecera João) por ter sido atropelado. Saulo inventou uma desculpa e disse que tinha que voltar imediatamente para casa (declarou que sua mãe lhe daria uma surra). A insistência, contudo, foi enorme: seria impossível jogar sem três pessoas de cada lado, eles só tinham mais uma hora antes que dois deles tivessem que voltar para casa, era a primeira vez que conseguiam a bola emprestada do primo de Fulano, começaram a entoar frases como “bicha, bicha, bicha”... Saulo não teve escolha e aceitou.

O futebol não era estranho ao mundo de Saulo. Tinha um time para o qual torcia, o Botafogo, e costumava proclamar por aí que este era o time de futebol pelo qual seu pai torcia ardorosamente. Em certa ocasião, afirmara que seu pai havia desaparecido na multidão depois da brilhante partida do Botafogo contra o São Paulo, em 4 de março de 1998 (sabia a data de memória), quando o Botafogo conquistara o Torneio Rio-São Paulo. Neste dia marcado pela alegria, ocorrera algo na saída do Maracanã que impediu seu pai de voltar pra casa e presentear-lhe com uma camiseta do time de seu coração, como havia prometido. Saulo, no entanto, mantinha esperanças na volta do pai para casa, e com o uniforme do Botafogo nas mãos. Por isso, seguiria honrando a tradição familiar com fidelidade eterna à equipe. Muitas vezes, ele próprio acreditava nesta história, que supunha ser a única explicação plausível para não ter a presença nem recordações de seu pai.  

Sim, seus pés já haviam tocado uma bola de futebol. É muito simples: quando se nasce onde Saulo nasceu, é impossível que não tenha jogado bola na vida. Mas Saulo era este menino solitário e tímido diante de outras pessoas e não praticava e estava apavorado diante do convite feito naquele momento, tanto pelo temor de fracassar quanto pela consequente desaprovação do grupo. Havia cedido diante da pressão também por medo de ser rechaçado, caso se obstinasse em sua recusa inicial.

Encontrava-se num estado lamentável: uma mistura de coração acelerado, mãos suadas, pernas trêmulas, respiração ofegante, acompanhados de uma tentativa patética de ocultar tudo isto. Tudo tão novo: a infância é a época dos sustos, das surpresas, das primeiras vezes. Não era diferente com ele. Quando a bola começou a rolar, Saulo sentiu dificuldade em bloquear ataques adversários, em roubar a bola, em conferir a posição dos rivais e dos companheiros ao mesmo tempo, em driblar, em estar de olho nos dois gols. Mas foi em frente. Claro que perdeu a bola, que sofreu dribles, que errou passes, mas estava longe de jogar mal. Até fez um gol. E, graças a seu desempenho, conquistou uma vaga cativa no campinho e a estima, ainda que precária, dos demais jogadores. Depois do jogo, foi chamado para lanchar na casa de um deles e logo a brincar com eles na rua. Voltou para casa no início da noite. No caminho, não conseguia parar de rir, era impossível contê-lo.

Êxtase.

É bem provável que, se Saulo repensasse toda sua vida muitos anos depois, depois de paixões variadas, diversas conquistas, alegrias e sofrimentos, num estágio de maior experiência, talvez recordasse desse dia como o mais feliz de sua vida. Pelo contraste com o que sua vida fora até então, e pela descoberta de que existia outra, de que agora desfrutava muito intensamente.

Quando chegou, e era a primeira vez que chegava tarde em casa, não foi repreendido pela mãe. Foi até recebido com um sorriso cúmplice. Não entendeu nada. Estava tão agitado que narrou seu dia como se cada chute na bola, cada passo de uma corrida, cada detalhe mínimo daquele período curto e mágico, fosse único. E, de fato, era. Em seguida, saiu correndo para o quarto, para reviver tudo de novo sozinho.

A reação da mãe de Saulo realmente não condizia com sua tendência protetora. Entretanto, havia passado bem ao lado do campo improvisado enquanto ele jogava tímido, porém com convicção. Depois de anos observando seu filho taciturno dentro de casa, aquela visão encheu-a de contentamento. A solidão que sentia já era suficiente para todos os dois. Ela tinha medo de que seus hábitos cada vez mais reclusos, agravados pela necessidade de trabalhar muitas horas, pudessem de alguma maneira contagiar o filho. Não que fosse infeliz. Sua vida com o ex-marido era conflituosa, de modo que a vida solitária, embora difícil às vezes, era ao menos tranquila. Tinha plena consciência disso. Queria agora dedicar-se a Saulo, queria que ele fosse feliz, já que ela própria não pôde sê-lo. E a criança, com sua mania de solidão, trazia-lhe pensamentos cada vez mais inquietos. E eis que, do nada, lá estava ele, jogando bola. Que aquilo durasse o máximo possível. A infância é uma só.

Para Saulo, a infância não tinha nada de maravilhoso. Não podia entender como alguns adultos dissessem isso. Sofria, testemunhava outras crianças sendo vítimas das mais terríveis brincadeiras, das mais divertidas ofensas, e não compreendia como alguém podia considerar aquilo a era de ouro da vida. Só podia ser falta de memória ou, pior, o fato de que as fases posteriores seriam ainda piores. Como os adultos continuavam sorrindo, achava que era mesmo só falta de memória. Quanto a sua mãe, supunha que ela não tivesse essas fantasias pela expressão dos seus olhares em direção a ele. Achava que a mãe entendia que a infância em si não era fácil, e não que a sua infância não fosse fácil. Estava certo de que a conhecia perfeitamente. Vivia a tão comum ilusão de saber tudo sobre sua mãe. Por outro lado, tinha momentos em que era acometido pela sensação de que não sabia absolutamente nada sobre ela. Um claro enigma. A familiaridade e o estranhamento. Exatamente como o primeiro amor. Exatamente como todos os amores posteriores.

Na manhã seguinte, o mundo de Saulo adquiriu um significado completamente distinto. A escola passou a ser mero intervalo entre a aurora do acordar, seguido do almoço com a tia, e as tardes de companheirismo e de futebol. Seus primeiros amigos de verdade. Seu bairro adquiria sentido. A geografia só faz sentido pela via da intimidade. Só quer conhecer outro mundo quem não se sente bem neste, por não ter com ele a necessária intimidade, ou por talvez estar cansado de uma já antiga e aborrecida intimidade. Esses devaneios, porém, não faziam parte da cabeça de Saulo. Pois agora Saulo estava jogando bola, e ficando cada dia mais habilidoso.

E o caminho das pedras do futebol infatil foi sendo progressivamente percorrido. Com o tempo, começou a tomar a bola do adversário, a driblar em vez de sempre tocar para o companheiro de time quando confrontado com um zagueiro mais forte, a correr mais, a posicionar-se melhor, e a coroa de tudo isto: passou a marcar mais e mais gols. E, depois, passou a fazer gols bonitos. Sem falta modéstia e sem arrogância. Sabia que o esporte só funcionava em equipe. E, sobretudo, considerava que o futebol havia sido uma dádiva da amizade, não o contrário. Em suma, Saulo jogava apaixonadamente.

Assistia sempre aos jogos do seu Botafogo de Futebol e Regatas. Não lhe importavam derrotas ou vitórias, o importante era observar quão bonito jogavam os profissionais inspirados. Assistia vídeos no computador da escola e passou a idolatrar figuras como Garrincha, Nilton Santos, Didi, Gérson, Jairzinho. Expandiu seus horizontes para outras equipes, brasileiras e de outros países. Gostava de mostrar como havia aprendido a escalação de times do presente e do passado, a história das Copas do Mundo, e passou a sentir-se digno de estima quando notava que alguns passaram a prestar atenção quando falava sobre o assunto.

Criou coragem e tornou-se candidato a jogar na quadra da escola. Passou a ter amigos no colégio que frequentava. Posteriormente, passou a não mais fazer parte do grupo de meninos que tiravam a sorte para escolher as equipes. Um esclarecimento: bons jogadores raramente tiram a sorte para escolher os integrantes de sua equipe. Eles devem, querem, exigem, e no fundo anseiam, ser escolhidos. E a ordem de escolha dos integrantes na infância é como a mercado dos passes dos jogadores no futebol profissional. Sendo esta bolsa de valores muito instável, necessita de constante reafirmação por meio da escolha diária dos que entrarão em campo. O time campeão, naturalmente, só sai de campo quando perde. Por isso, para quem é ruim de bola, convém escolher. Quem escolhe bem não sairá de campo jamais, e talvez melhore seu desempenho rapidamente por meio da prática constante. Saulo, no início, buscava escolher os integrantes da sua equipe. Quando não o fazia, costumava entrar em campo na segunda partida (porque não era selecionado por ninguém). Em seguida, passou a ser o quarto ou quinto integrante escolhido para algum dos lados, até entrar gloriosamente no seleto grupo daqueles que sempre são eleitos, e que, por consequência, jamais se preocupam em tirar a sorte.

Nas proximidades da sua casa, único lugar que sua mãe deixava frequentar enquanto estava no trabalho, havia somente um garoto da idade dele que possuía uma bola de couro. Os meninos mais velhos se recusavam a partilhar a deles e não permitiam a entrada de “pirralhos”. E eis que aquela única bola acessível a seus pés furava subitamente.

Depois de dias, de semanas de tédio, Saulo constata que nenhum amigo conseguirá dinheiro para comprar outra bola. Roubar de alguém parecia-lhe um sacrilégio. Ele próprio não tinha dinheiro para adquirir uma, nem sua mãe podia dar-lhe uma agora. Resolveu agir. Iniciou uma pesquisa de mercado para saber o preço de uma bola razoável, que não estourasse ou adquirisse calombos na primeira semana. Pedro, o mesmo garoto que o havia chamado naquela já longínqua tarde (na infância, tudo parece longínquo depois de alguns dias, um ano assemelha-se mais à eternidade, e a morte parece um devaneio absurdo), comoveu-se com a convicção e persistência do amigo e decidiu ajudá-lo em sua missão. Por ter maior liberdade de movimento pela cidade (sua mãe trabalhava tempo demais num lugar muito afastado para poder controlá-lo em suas andanças), foi Pedro quem encontrou, num bairro mais afastado, a loja que oferecia o menor preço para o modelo de bola escolhido pelos dois.

Fizeram as contas e urdiram artimanhas e atividades que pudessem ser lucrativas. Pediram contribuições de pessoas próximas ou mesmo de passantes ou clientes de estabelecimentos vizinhos. Como não podiam ser contratados por conta de sua idade, passaram a prestar pequenos serviços para donos de pequenas empresas e para particulares. Pagavam contas, faziam entregas, limpavam o chão, recolhiam garrafas de bares. Com a confiança de algumas pessoas plenamente adquirida, passaram a estabelecer acordos mais amplos e estáveis. Começaram a levar para reciclagem objetos que não tinham mais serventia para esses mesmos adultos, após o conselho de um deles. Pedro, às vezes, tinha seus dias de desânimo, mas Saulo seguiu com uma vontade inabalável em direção a sua grande meta e prioridade. Sempre contava o dinheiro já conquistado, e nunca trocava as bolas quando alguém eventualmente perguntava quanto faltava para juntar. Alguns amigos, preguiçosos mas confiantes, contavam ansiosamente os dias para que alcançassem a quantia necessária. Até que, no final de mais um dia, Saulo e Pedro foram contar o montante total e descobriram que tinham o que era preciso. Como já era tarde e a loja, distante, tiveram que esperar até o outro dia.

Saulo descobriu o que era ansiedade naquela noite. Não conseguia dormir. Até segundos demoravam a passar. Quando cochilava, tinha pesadelos. Acordava e pensava que tinham aumentado o preço da bola e que não era mais possível comprá-la com o que tinham. Refletia um tempo, ainda confuso, e concluía que sonhara aquilo. Depois, que todas as bolas já haviam sido vendidas. Acordava sobressaltado, pegava a lata de dinheiro no fundo do armário para contá-lo novamente. Pegava no sono, vivia a agoniante sensação de que não conseguia andar em direção à loja, embora não houvesse nada que o segurasse nem qualquer defeito físico visível. O chão como que fugia dos seus pés. Acordou em pânico. A manhã não foi menos penosa. Não conseguiu engolir o café da manhã, não conseguiu entender as lições ditadas pelos professores, sequer conseguiu entender o que era discutido pelos companheiros de sala. Envelheceu um ano naquele dia.
     
Quando soou o sinal, Saulo desembestou em direção ao ponto de encontro marcado com Pedro. Este também tinha a expressão fatigada. Tiveram que tomar um ônibus, depois um trem, e finalmente subir uma longuíssima ladeira. Fizeram tudo correndo como se estivessem fugindo de algo. É certo que crianças têm dificuldades para andar em ritmo normal. Não entendem porque adultos insistem em hábitos como andar, especialmente quando estão atrasados e e poderiam simplesmente correr em direção a seu destino. Não entendiam tantas coisas do absurdo mundo dos adultos, que tampouco estes compreendem. Na carreira, alcançaram seu destino em pouco tempo.

Chegou na loja, Saulo perguntou ao proprietário pela bola. Ela estava no estoque. Consultou o preço, exasperado. O preço seguia o mesmo. Então, numa fala ao mesmo tempo triunfante e tímida, afirmou que iria comprá-la. O dono indagou se eles tinham tanto dinheiro com eles. Saulo, ainda mais confiante, tirou o dinheiro do bolso e mostrou-lhe. O dono contou as notas sob os olhares atentos dos meninos e propôs embrulhar a bola. De imediato, Pedro e Saulo disseram que não era preciso. Agarraram-na e saíram para a rua.

É difícil descrever o que sentiram depois que saíram da loja: sensações totalmente desencontradas, corações em polvorosa, sangue acelerado, cabeça pulsando, pernas tremendo. Por inércia, pelo efeito da adrenalina ou - mais poeticamente - pela emoção, os corpos deles ainda tremiam. Depois, tudo foi adquirindo um aspecto de tranquilidade. Haviam travado uma dura batalha e vencido.

Paz.

A pressa da ida deu lugar à necessidade de saborear aquele momento em sua plenitude. Caminhavam devagar, acariciavam a bola, sorriam-se mutuamente. Admiravam tanto aquele objeto que fizeram o acordo tácito de ainda não fazê-lo tocar o chão. Parecia inconcebível que aquela coisa tão valiosa, tão frágil, tão delicada, pudesse ser manchada, muito menos chutada, por qualquer pessoa que fosse. Tinham pavor de deixá-la cair. Seguravam-na com força. Não conseguiam olhar para mais nada. O mundo havia desvanecido por completo.

Arrebatamento.

Os passos silenciosos dos dois foram subitamente interrompidos por alguns estalos secos, ouvidos após um breve lapso de tempo. Olharam ao redor, vários transeuntes corriam desordenadamente. Ficaram alguns segundos atônitos, tentando entender o que ocorria. Encararam-se e resolveram correr. Pedro saiu em disparada em direção ao muro de uma das casas com a intenção de transpô-lo. No meio do percurso, olhou para o lado e percebeu que Saulo não o acompanhava. Olhou para trás e viu a bola quicando no chão, descendo lentamente o asfalto. Divisou Saulo mais adiante, deitado no chão.

Um segundo pode passar lentamente.

Algumas coisas mudam completamente em um segundo.

Saulo havia sentido uma pancada na barriga, seguida de uma leve pontada. Devia ser o susto de começar a correr subitamente. Mas logo sentiu-se fraco, perdeu o equilíbrio e deixou a bola soltar-se. Quando quis sair em sua direção, caiu. Olhou para a camiseta e percebeu que ela tinha uma mancha vermelha na lateral. Quando Pedro retornava, ele estava levantando a peça para tentar entender como tinha se machucado. Havia sangue saindo de um ferimento pequeno. Sentiu o cheiro de carne queimada. Pedro levantou-o, ajudou-o a caminhar para fora da rua. Pouco a pouco, as pessoas foram reparecendo na via e aproximando-se para inteirar-se do que havia sucedido. Pedro percebeu que também havia outras duas pessoas caídas a certa distância, com mais curiosos ao redor.

Saulo sentia dificuldade para respirar. Começou a tossir. Uma tosse úmida insuportável, que se intensificava. Parecia que estava se afogando. Embora alguns gritassem e fizessem sinais, e outros tivessem saído em busca de ajuda, a primeira ambulância levou mais de uma hora para chegar no local. Era difícil saber, quando o colocaram na maca para dentro do veículo, se Saulo continuava respirando. Pedro tentou entrar com ele, mas foi impedido por um dos paramédicos. O carro branco saiu velozmente logo depois de o acomodarem com uma máscara de oxigênio em seu rosto umedecido.

Pedro olhou ao redor, estava perdido. Havia um tumulto de gente ao redor de policiais. Olhou para a mancha no chão, quis afastar-se de lá. Começou a caminhar pela ribanceira e lembrou-se da bola. Procurou-a brevemente e não a encontrou. Pensou em ir embora, depois mudou de ideia e saiu atrás do objeto. Embora não soubesse precisar o tempo, calculou que devia ter ficado mais ou menos duas horas inquirindo pessoas e verificando todos os caminhos possíveis por onde a bola poderia ter rolado. Procurou alguém jogando futebol nas redondezas. Concluiu que a bola havia desaparecido e resignou-se. Tomou o caminho de casa, completamente catatônico.

Quando chegou ao bairro, quis depois saber o que havia acontecido com o amigo. Caminhou em direção a sua casa. Não havia ninguém. Alguns vizinhos disseram que sua mãe, quando recebeu a ligação da polícia, insistiu que era um equívoco, argumentando que seu filho nunca estivera no local da ocorrência. Em seguida, quando ouviu a descrição exata do seu filho, inclusive com as roupas que vestia naquele dia, saiu desesperada para o hospital. Alguns demonstraram preocupação por sua tia, que tinha desaparecido.

Já escuro, Pedro viu a mãe de Saulo na televisão. Ela gritava, desarticuladamente e entre soluços, que a violência daquela cidade tinha chegado a um nivel insuportável. Que ninguém esclarecera quais eram os responsáveis por aquilo tudo. Que ninguém no hospital lhe dera qualquer notícia de Saulo. Quando perguntada, declarou que ele era seu único filho. Seus olhos eram o abismo da noite sem lua e sem estrelas.       

De madrugada, Pedro não conseguiu dormir. Amaldiçoava o dia em que contou ao amigo da loja onde compraram a bola. Depois, recordou também que fora ele que havia chamado Saulo para jogar bola na rua pela primeira vez. Começou a contorcer-se na cama. Sua mãe encontrou-o encharcado e gritando na cama, e passou toda a noite em claro tentando inutilmente acalmá-lo.

sábado, 11 de agosto de 2012

Caleidoscópio

Era uma fila e eu rangia os dentes em silêncio. Não de frio mas de cólera, porque sua amiga havia furado a fila já duas vezes. Sua amiga era muito bonita e falava outra língua que não a de lá (os locais sempre gostam das línguas de países com moeda forte). Fazia frio na rua e eu, porém, fazia ainda mais frio e todos estavam devidamente com seus casacos e seus cachecóis perto de mim. E, então, subitamente, vocês foram impedidas de entrar para, quem sabe, evitar alguma revolta dos integrantes da fila (meu olhar ardia de desejo de derrubar todos as autoridades de todos os governos) e tiveram que voltar para trás de mim. Você era ainda mais bonita. Sua amiga disse "oi" (na verdade, um "hi" seguido de um "hola" naquela cidade babilônica), assim meio do nada, o que me surpreendeu e me desconcertou, com um sorriso que ela deve sempre usar e imediatamente derreter a resistência a qualquer coisa que ela tenha feito antes. Charme. E eu então dei "oi" de volta (na verdade, um "hola" seguido de um "hi", em defesa própria). Enquanto sua amiga sorria e continuava derretendo a neve ao redor da fila e dentro da minha cabeça (surgia uma brisa primaveril em meu córtex, eu podia sentir e tentava resistir, mas já era tarde), você me olhava com um ar curioso e um sorriso no canto dos lábios. Seus olhos transparentes penetravam lentamente, dolorosamente, prazerosamente, o canto dos meus olhos e o fundo da minha alma, e você nem havia dito palavra. Você é a dona da faca de Buñuel e Dalí. De que planeta você veio? Eu queria ser abduzido para nunca mais se ouvir falar de mim, salvo em jornais de quinta categoria com artigos sobre fenômenos sobrenaturais. Seus olhos pungentes, o sorriso da menina ao seu lado, aquilo tudo era uma avalanche de pedras jogadas contra mim. Eu ainda não tinha guarda-chuva. Mas já tinha sido feito prisioneiro. Você então fala. E você realmente não é daqui, assim como eu não sou daqui. Você nasceu em uma cidade que não está em mapa algum. Uma cidade que habitei em sonho nos últimos dez anos. Talvez. Depois, após algumas bebidas e alguns cigarros, no espaço agora aquecido, eu te encontro novamente e você me joga esse olhar que incendiou tudo dentro de mim enquanto eu caminho em sua direção para pegar algo no balcão. Eu quase encosto em você e seus olhos estão absolutamente fixos nos meus olhos. Até que chego perto, sorrio (charme), quase caio desacordado, mas te beijo no rosto, roço sua pele (casacos agora sobre cadeiras) e sinto a verdade do seu corpo inscrita em mim. Uma tatuagem.  Quem te deu os seus olhos, os seus cabelos desalinhados, os seus braços delicados? Caos.


O final da noite com você foi a manhã do dia seguinte. Aurora.

Seu desejo é minha prisão. Você me jogou com violência para fora de mim. Minha fortaleza, minha Helena, minha fortaleza teve o mesmo destino de Tróia. Faça o que tiver que ser feito. Eu o farei.  Sempre.

A felicidade é suja. Mundana. Me gaste e depois arraste os meus despojos sobre a terra. 

Há algo de incontrolável em você. Eu transbordo. Chove um pouco lá fora mas este apartamento está inundado, as paredes estão todas pegajosas e descascadas, o teto desabou, uma cachoeira sai da sala em direção às escadas contorcidas. Foi declarado estado de sítio em nossa quadra. Você é um rio. Toda vez que você chega, alguma coluna desmorona. Está tudo desconstruído. Nós moramos em ruínas fora do tempo. Há algo de incontrolável em mim. Você transborda.

Eu quero mais.

Você furou a fila que não existia e redesenhou os meus planos. Pane na Matrix. Houston, we. E depois... Mas nunca fui de ter medo. Sou tão forte e tão frágil.

Você me habita.

Agora não existe mais sapato em que caibam meus pés.

Não me lembro quando foi que decidimos não mais ter outras atividades e deixar de perder tempo. Eliminar a burocracia que existia na nossa vida. E houve uma paz tremenda, o silêncio do fundo da terra depois do terremoto. Nossa maneira de viver foi exatamente isto: à nossa maneira. Autêntica. Nosso ordenamento era caótico, nossa constituição não tinha artigos. Era só um caminhar juntos rumo a uma alegria tranquila, com nossas almas já esgotadas. Não falamos língua humana, logo nós que falávamos tantas fomos esquecê-las todas. A cena da lareira acesa, nós dois pesadamente nus embaixo do cobertor. Eras se passaram. Seu olhar, o seu olhar. Ah.

Que lástima a necessidade de explicar-se quando não há nada exprimível.

Se lembra quando você me perguntou sobre minha história e eu disse que minha história havia começado naquele dia? Hoje penso que estivemos fora do tempo, que tudo havia começado e também terminado ali. Naquele exato momento. Eu próprio não sei dizer se nossas ruínas têm séculos ou segundos. Aquela fila foi na festa de ontem, quando eu era jovem.  Dançamos músicas eternamente na moda. Estou cheio de marcas suas antigas que não cicatrizaram. Folheio nosso livro, todas as páginas estão em branco e vão se preenchendo à medida em que o leio.

Me recuso a contar sua história para as psiquiatras daqui. Você é meu segredo.

Revelei a fotografia que você tirou de mim. É um caleidoscópio.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Parolagem da vida

Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nula.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
Tudo que se perde
mesmo sem ter ganho.
Como a vida é senha
de outra vida nova
que envelhece antes
de romper o novo.
Como a vida é outra
sempre outra, outra
não a que é vivida.
Como a vida é vida
ainda quando morte
esculpida em vida.
Como a vida é forte
em suas algemas.
Como dói a vida
quando tira a veste
de prata celeste.
Como a vida é isto
misturado àquilo.
Como a vida é bela
sendo uma pantera
de garra quebrada.
Como a vida é louca
estúpida, mouca
e no entanto chama
a torrar-se em chama.
Como a vida chora
de saber que é vida
e nunca nunca nunca
leva a sério o homem,
esse lobisomem.
Como a vida ri
a cada manhã
de seu próprio absurdo
e a cada momento
dá de novo a todos
uma prenda estranha.
Como a vida joga
de paz e de guerra
povoando a terra
de leis e fantasmas.
Como a vida toca
seu gasto realejo
fazendo da valsa
um puro Vivaldi.
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida
em flor e formiga
em seixo rolado
peito desolado
coração amante.
E como se salva
a uma só palavra
escrita no sangue
desde o nascimento:
amor, vidamor!

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ausente


Francisco estava decorando a casa para que Beatriz a encontrasse exatamente do jeito que sempre sonhara. Passava grande parte do tempo percorrendo-a e fazendo listas dos desejos que ela havia manifestado antes de partir. E depois buscava colocá-los em prática. Tinha, por exemplo, replantado todas as flores que eram de seu gosto e retirado os quadros que ela não achava especialmente bonitos e substituído por novos, comprados numa galeria modernista no centro da cidade e que haviam custado mais que um mês de seu salário. Emoldurou cartazes com imagens que certamente a alegrariam imensamente quando os visse. Pensava em como ela diria: “Francisco, que coisa mais maravilhosa a nossa casa, vamos ser muito felizes aqui de agora em diante”.

Aqueles pequenos defeitos das paredes e do teto, que nunca o incomodaram, resolveu eliminá-los e contratou alguém para que não sobrasse mais sinal daquelas falhas e rachaduras que haviam lhe causado tantas perturbações. Tinham tido azar, realmente, mas o que importava agora é que tudo já estava superado. Os vazamentos da cozinha, as manchas no móvel da sala,  as janelas que rangiam, tudo havia sumido e não havia mais algo que não estivesse em perfeito estado. E se, ainda assim, Beatriz não quisesse mais ficar lá, não se importava: se mudaria de apartamento, construiria uma casa, passaria anos arrumando tudo de novo, desde que com ela.

Francisco queria aumentar ainda mais a surpresa que Beatriz teria em sua chegada. Deixou suas leituras usuais e seus programas de televisão e começou a ler livros sobre os assuntos que a interessavam, com o objetivo de impressioná-la quando ela viesse falar que era uma pena que eles não tinham os mesmos interesses para conversar por horas e horas sobre as coisas que mais a apaixonavam. Começou pesquisando na internet, leu alguns textos mais longos, assistira alguns filmes, frequentara cursos e até se pode dizer que passara a ser quase um especialista em alguns assuntos. Já tinha escutado inúmeras vezes todos os discos que ela deixara, sabia de memória a letra de todas as músicas. Assoviava algumas enquanto passeava a pé pela cidade.

Adotou uma gata siamesa e a chamou de Amélie, pensando que a agradaria. Sempre que Francisco sentia-se sozinho, Amélie ficava ao seu lado, ronronando e consolando-o.

Às vezes, porém, Francisco se sentia triste por Beatriz demorar tanto. Via que, pouco a pouco, as marcas que deixara nele iam se apagando da memória. Não conseguia mais lembrar-se exatamente da sua voz, por mais que a tenha escutado diariamente por anos.  Concentrava-se intensamente, mas não estava mais seguro de que o tom recordado tinha exatamente aquele seu timbre tão particular. As feições gerais do rosto se mantinham intactas em sua cabeça, mas os detalhes também feneciam gradativamente. Adorava as pintas no rosto dela, espargidas entre umas rugas tão superficiais que só de bem perto era possível perceber. Nesses momentos de consciência do inevitável esquecimento, abria os álbuns de fotografia e constatava que o rosto que havia reconstituído mentalmente não era exatamente aquele que constava dos retratos.  Reparava que nem ele próprio era agora o mesmo daquelas fotos tiradas pouco antes de deixar de conviver com a mulher que amava tão apaixonadamente. Não podia mais reviver a sensação de percorrer com os dedos a pele de seu braço tão delicado. Sentia uma nostalgia inacreditável de seu cheiro. De vez em quando, imerso em todas essas frustrações,  respirava com dificuldade, tentava tomar um banho e chorava embaixo do chuveiro.

Nesse incessante pensamento em Beatriz, Francisco foi progressivamente afastando-se das pessoas de seu convívio diário. Negava-se a conversar com os amigos de Beatriz, porque isso trazia ainda mais recordações e mais angústias. Por outro lado, não tinha alegria em encontrar seus próprios amigos, que buscavam fazê-lo pensar em outras coisas que não Beatriz. E só Beatriz importava. Havia que se preparar para seu retorno iminente.

Contudo, o tempo passava. Francisco buscava evitar este pensamento e se entregava a alguns atos desesperados. Um dia, encontrou uma escova para pentear que continha alguns fios de cabelo dela, e com medo de que a limpeza periódica de sua casa acabasse com os últimos resquícios do corpo de sua mulher, guardou este tesouro onde faxineira alguma pudesse matar o que havia sobrado dela. Outras vezes, Francisco ia ao guarda-roupa, onde tinha mantido todas as peças de Beatriz, e tentava obstinadamente sentir seu cheiro. Mas tudo o que vinha dos tecidos era um olor de mofo misturado com resquícios de amaciante.

Pensava sempre no que Beatriz estaria fazendo naquele momento. Estaria ela num parque, alimentando pássaros? Estaria ela arquitetando planos para o futuro? Estaria dançando alegremente em alguma festa? Estaria bêbada e soluçando em uma mesa de bar? Estaria cantando no meio da rua atraindo os sorrisos interessados de todos? Estaria se divertindo com seus novos ou velhos amigos? Teria um novo amor? Teria se esquecido dele? Estaria sofrendo de saudades? Estaria desenhando prédios num banco de praça? Estaria tendo reuniões com seus novos colegas de trabalho e clientes? Estaria chorando? Estaria sorrindo? Francisco variava entre as infinitas possibilidades e não cansava de imaginá-la sempre, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo, cada fração de tempo que lhe foi concedida viver.

A verdade, porém, é que Beatriz não estava fazendo nada do que Francisco imaginava. Ela jazia no lote 272 do Cemitério da Saudade, na periferia da cidade. Saíra perturbada de casa, dois anos antes, por conta de uma discussão que tivera com ele. Distraída, atravessou a rua em prantos e foi atropelada por um caminhão da prefeitura que percorria a rua a toda velocidade. Francisco, que correra atrás dela, vira tudo. Acompanhara-a na ambulância até o hospital e recebera a notícia de sua morte poucas horas depois. Durante seu funeral, parecia catatônico: não dizia nada, parecia não ver nada, entender nada. As pessoas, ao cumprimentá-lo, o viam desconsolado para além de qualquer cura. Depois de um tempo, passou a agir como se nada tivesse acontecido, e a anunciar e ansiar por sua volta.

Muitas vezes, Francisco se sentia tão pequeno, tão pequeno, tão pequeno. Não tinha mais vontade de trabalhar. Não conseguia comer nem dormir. Desejava punir-se. Presumia que tinha sido abandonado por ser uma pessoa ruim. Por ser fraco, por ser ignorante, por ser feio, por ser egoísta, por ser patético, por ser desprezível.

Periodicamente, saía de casa para escrever uns poemas curtos e desenhar paisagens urbanas, sempre com carvão ou grafite. Para ele, o mundo passara a ser em preto e branco.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Uma história equivocada

Não poderia mais haver dúvidas de que Sara estava grávida. Mal rompia o dia, ela acordava mais uma vez enjoada, depois de outra noite com sonhos intranquilos. Há alguns dias, já não pensava em nada além disso. Se houvesse alguém em casa com quem conversar, talvez pudesse esquecer e voltar a viver sua vida, ter assuntos variados como toda a gente. Não era o caso. Não desse dia.

Sara sai da cama preocupada, passa pelo corredor e decide tomar um banho. Há algum tempo, passou a reparar minuciosamente em todas as mudanças que seu corpo tinha sofrido nos últimos três meses. Ao tirar a roupa, verifica novamente em sua nudez que os mamilos estão definitivamente mais escuros e largos do que antes. Apalpa-os. Gostava de sentir seus seios macios contra seus dedos, especialmente enquanto se ensaboava, mas agora sente um pouco de dor quando os aperta com um pouco mais de força. Durante a ducha quente, perde-se uma vez mais em seus pensamentos e torce para que a água leve tudo embora, para que seus devaneios e fixações possam descer com a sujeira pelo ralo. Depois de desligar a ducha, ela sai do box, usa o vaso sanitário para urinar pela segunda vez desde que se deitou na noite anterior e parte para a cozinha, na outra extremidade do corredor.

Abre a geladeira e entrevê a comida deixada pela empregada no dia anterior, que lhe causa um embrulho súbito no estômago. Abre o congelador e acaba optando pelo sorvete que havia comprado na última noite, sem saber por que - não costumava comer doce, inclusive sorvete, desde os dez anos de idade, mais ou menos. Era evidente, não era? Só uma idiota como ela poderia levar tanto tempo para constatar o óbvio. Uma covarde. Só uma panaca completa poderia acreditar que aquelas pequenas manchas de sangue que apareceram irregularmente nos últimos três meses eram iguais às que sempre via desde que tinha onze anos. Três meses. Precisava conversar com alguém.

Eis que o telefone toca. Ela tem certeza de que é Ivan e que vai chorar ao telefone sem razão, mas atende e ouve a voz da mãe. Está tudo bem, sim. Não, não. Vou ficar por aqui hoje. Tenho que terminar alguns expedientes. Claro que sinto saudades de você, mãe, é que ando muito ocupada. Não estou estranha. Está tudo bem entre Ivan e eu, você sempre pergunta isso. Isso e, claro, se eu estou grávida. Se estou? Não, não estou, mãe. Sempre que tinha alterações súbitas de humor ou ia muito ao banheiro, sua mãe oferecia aquele olhar de quem procura enxergar a verdade no fundo dos meus olhos. Se sua mãe fizesse isso hoje, ela certamente se entregaria. Melhor ler um livro, tomar um café, fumar um cigarro. Mentira. Ela não era capaz de concentrar-se em livro algum, tem sentido asco do gosto de café e não tinha a audácia de fumar um cigarro fazia três semanas. Queria o colo da mãe, contar tudo e esperar que ela a consolasse enquanto acariciava seus cabelos longos e castanhos.

Ela liga o computador e comprova que a internet está infestada de páginas que evidenciam, sem nenhum espaço para dúvidas, que Sara está grávida. Algumas parecem ter o seu nome escrito no título, acima dos textos com os sintomas que a faziam sentir como a grávida mais típica que o mundo já conseguiu produzir, um verdadeiro clichê com barriga e pernas doloridas, pronta para irromper na aula de educação sexual da sétima série com olheiras profundíssimas para repreender adolescentes que não utilizam métodos contraceptivos. Como podia ter deixado isso acontecer? Não se lembrava de tomar pílulas todo dia. Droga de aula de educação sexual. Não serviu para nada. Merda.

Por que ela não contava a Ivan? Viviam juntos e eram cordiais um com o outro. Costumavam trocar suas impressões dos respectivos empregos, trocavam confidências e gargalhavam contando anedotas das pessoas que adoravam detestar. Ela o ama e ele a ama. Não consegue pensar na sua vida sem ele. Quanto tempo fazia já que estavam juntos? Quatro anos e oito, quase nove meses. Moravam juntos há um ano e três meses. Seus pais tiveram a Julia com um ano e meio de casados. Por todas as convenções, nada havia de condenável. Ivan vai ficar feliz, não vai? Ele certamente sorriria, diria “estou tão feliz, meu amor”. Com algumas exclamações. E depois o que? Não sabia. Ou talvez dissesse “acho que não era o momento”.  Lhe contaria um segredo. Aquele que jamais teve coragem de revelar. Ia contar o motivo da distância cada vez maior, que se sentia nas conversas cada vez mais monótonas e formalizadas. Nos silêncios cada vez mais longos. Ela não sabia dizer se aqueles silêncios eram um sinal de mais intimidade ou de distanciamento, e concluía que não sabia nada da vida. Ele certamente vai dizer “não estou feliz com você” e vai procurar o endereço de uma clínica de aborto e propor que depois disso devemos nos separar. Vai falar que se sente sozinho. Que “nós não somos mais o que costumávamos ser”. Que ela mudou muito. Ela mudou muito? Ficou velha, seu corpo não é mais tão bonito como quando se conheceram. Ela se divertia andando nua no quarto para que ele a olhasse e pensasse: “ela é linda”. Agora, prefere usar um pijama velho à noite. É cruel saber que ele já não gosta mais tanto do seu corpo quanto gostava no início. Afinal, ele a conheceu quando ela estava no auge de sua autoconfiança, quando via que outros queriam arrancar a sua roupa e vê-la assim pelada pelo quarto como ele sempre podia. Agora coloca roupas para perambular pelo apartamento. Queria ser jovem de novo e era cada dia mais velha.

Ele está sempre viajando a trabalho, sempre longe dela. Quando se conheceram, pensava que ia romper porque não conseguia ficar tão junto quanto ele tinha vontade. Ele queria casar, queria ter filhos, queria já ter netos se pudesse fazê-lo. Era tão seguro das decisões que ela talvez tivesse se casado porque ele tinha tanta certeza que dava para os dois. Ela tinha medo da rotina e depois odiou a rotina que de fato surgiu. Sentiu-se vítima de uma armadilha social. Tinha se casado cedo demais. Tinha vontade de fugir. Provavelmente Ivan, também. Mas ela não queria que ele fugisse. Ele é bonito, é inteligente, é charmoso. Muitas mulheres o cobiçam. Ela ia perde-lo, com certeza. Em contrapartida, às vezes sentia apenas um tédio enorme em sua companhia. Ela não sabe o que quer. Ela odeia não saber o que quer. Ela é uma coitada na vida. Uma imatura. Um caso perdido.

Mas um filho podia mudar tudo isso. Ia ser o fim da rotina. Ele vai parar de viajar a trabalho e vai dizer ao chefe “não posso sair tanto, tenho que cuidar da minha mulher, que está grávida”. E nossas conversas tomarão um novo rumo. Vamos ler livros sobre gravidez e sobre criação de filhos, ele vai admirar cada vez mais meu corpo e suas alterações, todo mundo vai (minha mãe, como vai me idolatrar, e meu pai, quando eu anunciar minha nova condição, os dois sorrirão em estado de graça admirando a minha barriga!). Ela termina de tomar duas taças de sorvete, volta pelo corredor de paredes brancas até o escritório, e tenta imaginar aquele cômodo com a parede azul, ou talvez rosa, coberta de papel de parede ou de adesivos espirituosos para crianças. Como ele - ou ela - vai ser feliz. Não precisam pedir dinheiro emprestado para dar-lhe uma ótima educação. Ela vai ter brinquedos, vai ser a criança mais amada do mundo. Será muito mais alegre do que ela, mais inteligente do que ela, menos panaca do que ela, vai viajar, vai conhecer o mundo todo, vai falar dez línguas, vai tocar seis instrumentos, vai ser linda e vai sempre se lembrar da mãe onde quer que esteja, e vai telefonar sempre para saber como ela vai. E ela será a mãe mais orgulhosa do mundo. Terão uma vida inteira juntas pela frente. E tudo vai começar aqui, neste cômodo. Sara fantasia os brinquedos espalhados pelo chão, a boca de lábios tão vermelhos e macios pedindo chupeta, falando as primeiras palavras - e a primeira palavra será indefectivelmente “mãe”! -, as fraldas estocadas na área de serviço, os contos de fadas antes de dormir. Vai começar o período mais feliz e autêntico da sua vida.

O nascimento de uma criança (“da meu filha!”) é sempre um acontecimento especial. O mundo não será mais o mesmo, será renovado porque haverá um ser (“o meu filho!”) único, diferente de tudo o que a humanidade tinha visto até agora, e por isso é preciso que se deposite todas as esperanças nele. Sua vinda será uma bênção, mudará o mundo mesmo que imperceptivelmente, e a existência dela toda será virada de cabeça pra baixo, e ela vai ser a mãe mais abobalhada do mundo. Será alegre por ter a honra de cuidar de alguém, de colocar todas as suas forças por um ser frágil não poderá se proteger sozinho. Se depender dela, ninguém causará nenhum mal a esse anjinho. Deslumbrava-se pensando nele, ou nela, com dois meses, com seis meses, com dois anos, com dez anos, com quinze anos, com dezoito anos... e se extasiava.

No meio de seu idílio, que deve ter durado algumas horas, seu celular toca. Ela retorna ao quarto e vê o nome do contato piscando na tela: “Dentista”. Decide não atender. Todavia, a chamada tem um efeito perturbador sobre seu estado de espírito. Todas as imagens vividas até aquele momento, os planos para o futuro, o anjinho que acalantará sua alma, são destroçados por aquela chamada do “dentista”, nome que encobria a verdadeira identidade da pessoa no outro lado da linha.

Era André quem tinha acabado de ligar. Não restava mais sombra daquela noite fria, nove meses atrás, em que ela havia conhecido André e iniciado um caso com ele. Uma noite de solidão e desesperança do casamento que acabava no bistrô, sozinha, ao lado de uma mesa com outra pessoa igualmente só. Depois, os dois no carro dele. Os olhos fechados. Lábios úmidos com lábios ardentes que esperavam o beijo. Violento, prolongado, inevitável, desesperado. As mãos passando pelos cabelos, descendo para a cintura, para as pernas. Outras mãos próximas ao beijo, os olhos sempre fechados: uma tentativa cega de tocar o próprio beijo. De senti-lo mais. A respiração profunda e os suspiros desencontrados. E tudo tão frio lá fora. Suas mãos mais frias, ainda. O calor de dentro. A visão embaçada dentro do ambiente com vidros mais embaçados ainda. A petrificação daquele momento. Novos rostos no mesmo beijo. A infelicidade mútua provisoriamente esquecida. O império absoluto e precário do desejo. A ausência do tempo. O mundo inteiro dissolvido. O caos interno. O sonho acordado. A inteira falta de pensamento. A falta da linguagem, dos debates, das discussões. Somente fluidos, pulsações, circulação, carinhos. O estranhamento feliz de perceber que, apesar de achar que o amor estaria enterrado e longe de sua vida por muito tempo, ele voltava assim tão mais inesperadamente, subrepticiamente, do que jamais costumava agora permitir-se pensar. A constatação de que algo profundo emergia e criava algo que iria prolongar-se por muito e muito tempo. A convicção de que era certo, no tempo e no lugar em que inexoravelmente deveria ocorrer. A vontade de explicar o que se passava naquele momento dentro dela. A completa falta de palavras.

Então, em um momento que não consegue precisar, a ilusão se dissolve. Ela acorda do sonho e abre os olhos. A promessa da aventura e do renascimento de sua personalidade submerge com o tempo e com o aparecimento de uma nova rotina. Uma rotina, todavia, marcada por desentendimentos cada vez mais frequentes e por cenas de ciúmes cada vez mais intoleráveis. E os atos de vingança e de rancor que ela jamais pensara poder protagonizar. Aquilo foi tornando-se tão intenso e tão difícil de conter ou ocultar que o afastamento foi inevitável. O casamento de Sara tornou-se, inesperadamente, um refúgio da sua pretensa história de paixão. O contrário do que esperava quando conhecera André e vira nele o refúgio de seu casamento. O segredo perdera sua aura de beleza e adquirira a cor do aborrecimento. O que não impedia certas recaídas como a que o dentista tivera agora, ao ligar para seu celular, provavelmente após ter dormido com alguém para convencer-se de que não precisava dela e para se vingar do fato de que ela nunca considerara seriamente separar-se do marido. Ela própria escolhera uma vida de hipocrisia que prometia a redenção e que agora só inspirava-lhe medo e insegurança. Tinha pena de si mesma e de sua fraqueza. A segurança de Ivan a humilhara, lhe causara aversão ao longo do tempo. Talvez por isso tenha fugido para uma tola fantasia de uma história tórrida que não haviam trazido nenhuma revelação, mas somente a reincidência do seu espírito na busca de algo que ela mesma não sabia dizer o que era. Desejava que aquela sensação incessante de falta a abandonasse de vez, mas sabia, no fundo, que era improvável.

Seu último encontro com o “seu dentista” havia ocorrido há dois meses, e dele não se arrependia tanto. O problema havia sido aquele de exatamente três meses atrás. Era a mancha que pesava sobre todos os seus planos para o futuro. Por isso, ela tentava fugir dessas lembranças. E poderia perfeitamente ignorar André pelo resto de sua existência, e esperar até que aquilo se tornasse um sonho ruim, difícil até de recordar. Mas André podia descobrir sua condição e persegui-la, obrigá-la a revelar o seu segredo e despedaçar tudo o que tinha planejado. E, mesmo que não o fizesse, poderia ela viver com a noção de estar ocultando a verdade de todos (inclusive da própria criança inocente) e fingir que seu marido não criava o filho biológico de outro? E se o menino nascesse loiro como André? Se tivesse aqueles olhos carentes e verdes? Podia tentar mentir, claro, e as pessoas podiam naturalmente enxergar uma semelhança inexistente no rosto do neném com o de Ivan por mera sugestão. Mas iria ela suportar o peso? Iria passar o resto da vida com falsas virtudes estampadas no rosto? Viver uma vida que não era a sua?

Por outro lado, o bebê poderia ser de Ivan. Ela poderia fazer um exame de DNA às escondidas, roubando por exemplo um fio de cabelo do marido no travesseiro, e confirmar uma paternidade legítima. Neste caso, não teria peso de consciência e poderia retornar ao conto de fadas que vivia há pouco. Manter a vida da classe média e mediana que desprezava quando era universitária e que agora abraçava com todo o ser. Ansiava por acreditar, como todos aparentemente acreditavam, no casamento com filhos, no almoço em família e nas conversas sobre o cotidiano de cada um dos comensais. No beijo de boa noite antes de dormir. Quem sabe até nas orações, nas cantigas de ninar, nas reuniões à beira da piscina do quintal com vizinhos e parentes. Mas, para ela, aquilo tudo também era uma mentira. As certezas de Ivan, a segurança de Ivan, a arrogância de Ivan, implicavam para ela uma mente obtusa e um comportamento pusilânime. Como poderia criar um filho com alguém que não mais admirava e que respeitava apenas exteriormente?

Era claro que aquela criança não podia nascer senão depois de uma série de confrontações com que Sara não podia lidar. Caso contasse a verdade, seria repelida pelos que a estimavam, até, ou talvez principalmente, por sua própria família. E teria que criar o filho sozinha. Mesmo que a perdoassem, entendia que não queria estar presa o resto da vida nem com Ivan, nem com André. Ela detestava tudo aquilo, tinha repulsa de si mesma. Uma criança não podia nascer no meio disso, era desumano. Sara não podia conceber que se castigasse alguém inocente pelos seus próprios pecados.

Já era noite quando Sara imergia nestes sentimentos e soluçava no sofá da sala. Tinha pesquisado sobre clínicas clandestinas de aborto e lido as histórias mais horrendas. Além disso, para encontrar uma clínica e torcer pelo melhor, era preciso indagar suas amigas sobre o assunto. Em suma, era indispensável contar a verdade a alguém. E arriscar que a conversa se disseminasse. E, depois das fofocas e das intrigas, quem sabe morrer exangue no banheiro de algum hotel, depois de profanarem o seu útero e darem várias estocadas em seu filho com um pedaço infectado de metal. Expelir os restos do seu crime (do seu anjo) na banheira ou no vaso sanitário.

E depois viver como se nada tivesse acontecido. Continuar mentindo, como já mentia agora. Sob qualquer perspectiva, sofreria uma condenação. Não havia sido capaz de amar sinceramente ninguém, muito menos a si mesma. Escondera de todos e de si mesma os pensamentos mais verdadeiros, muitos dos quais eram os mais belos, e outros, os mais reprováveis, os mais escandalosos. Por dentro dela havia tanta podridão. E agora havia também um bebê que estava se alimentando do lixo que ela carregava em suas entranhas, que estava imundo, sufocando e agonizando dentro dela.

Recorda os sonhos que tem tido. Sonhou diversas vezes que estava em um gramado cheio de crianças, filhas dos adultos que estavam lá (que se alternavam entre amigos, primos, conhecidos ou desconhecidos), brincando em algum parque. Em um dado momento do sonho, descobria que aquelas crianças eram na verdade filhos dela, e se desesperava por estar sendo negligente e por sua ignorância de sua própria condição de mãe. O sonho daquela última noite havia sido distinto. Sonhara que amamentava um bebê e que de seu peito emanava veneno, e que portanto estava assassinando o próprio filho. Não obstante, não parava de amamentá-lo. Permanecia assim, tranquilamente. Por mais que sentisse pavor da ideia, não afastava o filho, que chupava o líquido avidamente, até o momento em que acordava subitamente imersa em suor e em culpa.

Sara, esgotada, dorme no sofá. A tristeza profunda muitas vezes é tão intensa que joga a pessoa na única coisa que pode reparar uma dor espiritual lancinante: o sono. Dormir provê o descanso que possibilita o seguimento da vida, que muitas vezes é insuportável. Ou não, porque neste caso Sara acordou, depois de meia-noite, chorando e soluçando ainda mais forte, sem saber da razão. Olha o relógio. Sente o ar abafado, não consegue respirar e irrompe para a sacada, como que asfixiada. Admira o céu limpo e estrelado. Em seguida, fica um longo tempo com a cabeça virada para o chão, quase que em transe, sem enxergar realmente nada. Quando foca o cimento da calçada, ocorre-lhe então que bastava tirar os pés do chão do apartamento e todo o peso de sua cabeça desapareceria, e ela teria paz. Fica um momento calculando a altura do oitavo andar, sondando se uma queda a mataria instantaneamente. Sobe no parapeito e permanece equilibrando-se por alguns minutos. Não consegue saltar. Suas pernas estão trêmulas. Sente vergonha de não conseguir sequer extinguir a sua dor. Chora de novo sobre o tapete. Caminha para a cozinha em busca de calmantes. Se não houvesse o suficiente para aniquilá-la, ao menos haveria para dormir por horas ou até dias. Puxa uma cadeira da mesa e arrasta-a para apoiar-se e inspecionar as portas do armário.

Então, entre as canecas de chá, encontra uma faca de cortar carne que a empregada havia deixado ali. Tudo adquire um aspecto de inevitabilidade. Parece que toda a sua vida sucedera de modo que chegasse este momento. Não havia mais dúvidas sobre o que fazer. Sara tenta segurar a faca com firmeza, apesar da agitação de seu corpo. Não consegue sequer descer da cadeira onde se apoiou para examinar as prateleiras.  Tem que ser ali mesmo.

Por um brevíssimo momento, Sara tem a sensação de que aquilo não passava de uma crise, pensa em largar a faca e deixá-la cair no chão. Mas ela havia levado uma vida de irresoluções e a oportunidade de redimir-se estava agora em suas mãos. Examina a barriga e posiciona sua ponta na parte inferior do seu ventre. Permite-se um tempo para parar de soluçar. Depois, penetra lentamente a faca, até traspassar completamente o útero e dar o golpe de misericórdia ao inocente que finalmente expiraria dentro de seu organismo seco e inóspito.

Sara sente tonturas, perde o equilíbrio, cai da cadeira e tomba sobre o piso. Somente agora, com a queda, sente dor. Com o corpo todo em frenesi, consegue retirar a faca e supõe enxergar a saída de litros de líquido amniótico com o filho lambuzado, mas o chão vai se cobrindo apenas de um líquido vermelho escuro. Ela escuta um choro de neném, tenta mover-se para niná-lo mas não consegue e, então, suspira pela última vez.

Dias depois, a autópsia do corpo de Sara revela um útero inutilmente perfurado - e completamente vazio.