H. está no meio de um parque olhando as
pessoas tomando sol. Sentado em um banco, entre crianças brincando com babás e
casais namorando, começa a escrever em seu caderno azul cheio de rabiscos que
carrega dentro da mochila surrada e suja de terra:
“Minhas histórias não começam no meio, ou
no fim, ou no início. Minhas histórias, ao contrário do que me ensinaram na
escola, não têm início, meio e fim. Em outras palavras, não são histórias no
sentido literal. A vida é cheia de histórias, mas nenhuma delas tem início,
meio e fim, no sentido literal, porque o início, o meio e o fim sempre poderiam
ser alterados. As histórias, os casos, os fatos, todos possuem um contexto que
os circunda, ou seja, que poderiam ter começado antes ou terminado depois. E isso
muda seu sentido. Por isso, cada um entende ou dá sentido às histórias da
maneira que têm capacidade ou vontade para fazê-lo. As minhas, afinal, parecem
sempre ter começado depois e terminado antes. Alguma mistura de preguiça, uma
mania de episódios, de falas que chamam a atenção ou que ficam na minha cabeça
e que as ditam. Isso pode ter a ver, quem sabe, com a minha história, que não sei
qual é e que, por isso, não tem fim nem começo, pé nem cabeça.
As histórias estão na rua. Eu, que
prefiro o papel, gosto mesmo de palavras, preto no branco, garranchos em cadernos,
especialmente aqueles escritos às pressas ou fruto da imaginação de alguém que não sabe
o que começou a escrever enquanto não termina. O fim é nada mais que o ponto em que
alguém resolve parar de escrever, e isso é absolutamente aleatório. Como a
morte. Como a vida. Começa do nada, termina assim sem mais nem menos. No meio,
tentamos entender algo, o fio da meada, aquilo que mantém o leitor ali,
desesperado para conhecer. Não há fio da meada, há somente a criação. Toda
história é movida por algo mais fundo, que circunda o que se entenderá e o que
não se poderá compreender. No fundo, bem no fundo, só há o desejo. O desejo que
move a vida, que move a escrita, que move a leitura. E eu não sei exatamente o
que eu desejo. Eu procuro. Eu procuro, somente. O quê?”.
Vem chegando V., um amigo, com seus
cachecóis de sempre mesmo diante do sol. Seu estilo que tanto atrai a atenção,
inclusive a de seus próximos. Abraço de amigos que se veem sempre.
- O dia está bonito.
- Queria te contar uma coisa. Uma coisa
importante.
- Claro. Diga.
- De vez em quando eu fico pensando...
- Por favor, não venha com depressões
hoje. Você pensando sempre dá em besteira! Eu, por exemplo, nunca vou querer
ler nada do que você fica escrevendo aí nesse caderno. Não deve haver nada de aproveitável.
- Minha tese. Está me deixando maluco.
Fico o dia todo em casa, lendo, escrevendo, não sei onde vai chegar. Acho que
não vou conseguir terminar.
- Fica tranquilo, todo mundo que escreve
tem essa mesma ideia, mas no final sempre dá certo.
- Não, o problema não é esse. Eu leio
algo, e imediatamente depois esqueço o que li. Parece que não consigo me
concentrar. Daí, digamos, eu consigo escrever, mas logo depois penso que talvez
o que eu escreva não seja o que eu quero para mim, vou ficar preso nisso, numa
tese que eu não sei se é verdadeira, por mais que eu consiga, quem sabe,
defendê-la bem, e que depois vai me prender não só pela tese defendida como também
pelo assunto que ela toca. É aterrorizador. Isso vai acabar definindo minha
vida toda. Não sei se estou pronto para isso. Nunca consegui me prender a nada.
- Calma. Se você não quiser mais
trabalhar com isso algum dia, você muda. Ninguém está preso a nada. O
importante, agora, é terminar. Não fique pensando demais a longo prazo, porque
aí não termina nada. Depois, ao menos, você consegue um emprego e consegue
trabalhar na área.
- Aí é que está, “na área”. Sei lá se
quero trabalhar nesta área!
- Você nunca trabalhou nessa área ou em
área alguma e já está com medo? Você também gosta de complicar as coisas. Vou
te arrumar um emprego lá no meu escritório como contínuo, e te garanto que você
sempre vai mudar de área. Geográfica, topográfica, pelo menos. Nunca vai ficar
na sua cadeira. Seu sonho realizado, mudar sempre de cadeira. Não na faculdade,
mas na empresa, ao menos. Nenhum compromisso fixo, nenhum pensamento a longo
prazo.
- Tudo seu é na brincadeira.
- Pois é exatamente por isso que sou seu
melhor amigo. Sou o cara que te livra da sua própria loucura e dos seus
problemas imaginários.
- É, isso é verdade. Eu sozinho consigo
pensar na mesma coisa por dias a fio.
- Isso porque você acabou de dizer que
não consegue se concentrar em nada por muito tempo.
- Só consigo me concentrar nisso, ou
seja, na minha falta de concentração. Você entendeu o que eu quero dizer.
- Entender? Eu não entendo ninguém. Mas
sempre respondo o que me perguntam.
Chega I., a namorada de V.
- Ois!
Beijo no rosto de H., beijo na boca de V.
- Soube de uma festa legal na casa de M.
- Vamos lá!
- Se eu for, não vou conseguir trabalhar
mais hoje nem amanhã, por causa da ressaca.
- Pô, bebe menos que você consegue. Vai
te ajudar a sair das suas paranoias e render mais amanhã.
- Vou ficar em casa.
- Você sempre com esse papo, né. Desde
que fui apresentada a você, vi que essa sua barba malfeita era mais um indício
de uma eterna dúvida interior do que de um estilo. Sempre aí, no meio termo,
sem saber se se barbeia sempre ou se deixa crescer de vez. Vamos lá, dessa vez.
- Melhor não.
- Vamos tomar um café, então, que tal?
- Tá bem.
- Ótimo. Vamos lá.
Sentados no café na esquina do parque.
Pedem três cafés para uma garçonete com cara de cansaço, mas muito simpática. V.,
então, declara:
- Enquanto o café não
chega, vou ao banheiro. Me dá um beijo que eu vou sentir saudades.
Dá beijo em I, e sai.
- Eu tenho mais saudades de você, te vejo
tão pouco.
- Como pode ser que eu goste tanto de
você e dele?
- Somos iguais. É uma forma de amor torta
que nos une assim.
- O amor deveria ser sincero, aberto,
transparente.
- Há milhões de tipos de amor, e a nossa
forma de amor é mais uma mistura confusa e inclassificável, mas que não deixa
de ser amor. É uma pena e uma bênção que a vida seja maior e mais complicada do
que as suas e as minhas ideias sobre ela.
- Eu não sei o que fazer.
- Simples. Não faça nada.
Pés se encostando embaixo da mesa. Pés
depois distantes. O café tomado, as risadas, a sensação de contentamento, de
estar à vontade.
Mais tarde, no mesmo caderno azul, com a
mesma letra apressada:
“Não contei nada do que queria contar. O
assunto muda e eu próprio não tenho coragem. E eu só queria perguntar se era
errado dar um tempo. Viajar. Sumir para sempre (um pouco). Esperar o tempo
passar para ventar em cima de tudo e, quando eu olhar de novo, estar diferente. Senão o mundo, ao menos eu. Nem
isso consigo dizer. Preciso me afastar, pensar, pensar, longe de tudo. Ganhar
perspectiva. É sempre isto, tudo parece
in-co-mu-ni-cá-vel”.
H. para de escrever e vai tomar banho
para ir à festa com V. e I. Conversam, dançam e voltam de manhã para casa.
Muitas gargalhadas. H. bebe demais, tem uma ressaca de querer se esconder num
quarto escuro. Naquele domingo chuvoso, toma mil cafés, fuma um maço de
cigarros e pensa que tem que mudar sua vida.
Na segunda-feira, acorda bem disposto e
pensa que está atrasado em todos os prazos possíveis e imagináveis já estabelecidos
para terminar sua tese. Passa o dia escrevendo alucinada e concentradamente na
biblioteca da universidade, com breves pausas na lanchonete, onde encontra
alguns colegas da turma de doutorado. O que havia passado nos dias anteriores era como um filme mudo antigo, com os letreiros passando depois do "the end".
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