terça-feira, 18 de outubro de 2011

Início, meio e fim


H. está no meio de um parque olhando as pessoas tomando sol. Sentado em um banco, entre crianças brincando com babás e casais namorando, começa a escrever em seu caderno azul cheio de rabiscos que carrega dentro da mochila surrada e suja de terra:

“Minhas histórias não começam no meio, ou no fim, ou no início. Minhas histórias, ao contrário do que me ensinaram na escola, não têm início, meio e fim. Em outras palavras, não são histórias no sentido literal. A vida é cheia de histórias, mas nenhuma delas tem início, meio e fim, no sentido literal, porque o início, o meio e o fim sempre poderiam ser alterados. As histórias, os casos, os fatos, todos possuem um contexto que os circunda, ou seja, que poderiam ter começado antes ou terminado depois. E isso muda seu sentido. Por isso, cada um entende ou dá sentido às histórias da maneira que têm capacidade ou vontade para fazê-lo. As minhas, afinal, parecem sempre ter começado depois e terminado antes. Alguma mistura de preguiça, uma mania de episódios, de falas que chamam a atenção ou que ficam na minha cabeça e que as ditam. Isso pode ter a ver, quem sabe, com a minha história, que não sei qual é e que, por isso, não tem fim nem começo, pé nem cabeça.

As histórias estão na rua. Eu, que prefiro o papel, gosto mesmo de palavras, preto no branco, garranchos em cadernos, especialmente aqueles escritos às pressas ou fruto da imaginação de alguém que não sabe o que começou a escrever enquanto não termina. O fim é nada mais que o ponto em que alguém resolve parar de escrever, e isso é absolutamente aleatório. Como a morte. Como a vida. Começa do nada, termina assim sem mais nem menos. No meio, tentamos entender algo, o fio da meada, aquilo que mantém o leitor ali, desesperado para conhecer. Não há fio da meada, há somente a criação. Toda história é movida por algo mais fundo, que circunda o que se entenderá e o que não se poderá compreender. No fundo, bem no fundo, só há o desejo. O desejo que move a vida, que move a escrita, que move a leitura. E eu não sei exatamente o que eu desejo. Eu procuro. Eu procuro, somente. O quê?”.

Vem chegando V., um amigo, com seus cachecóis de sempre mesmo diante do sol. Seu estilo que tanto atrai a atenção, inclusive a de seus próximos. Abraço de amigos que se veem sempre.

- O dia está bonito.
- Queria te contar uma coisa. Uma coisa importante.
- Claro. Diga.
- De vez em quando eu fico pensando...
- Por favor, não venha com depressões hoje. Você pensando sempre dá em besteira! Eu, por exemplo, nunca vou querer ler nada do que você fica escrevendo aí nesse caderno. Não deve haver nada de aproveitável.
- Minha tese. Está me deixando maluco. Fico o dia todo em casa, lendo, escrevendo, não sei onde vai chegar. Acho que não vou conseguir terminar.
- Fica tranquilo, todo mundo que escreve tem essa mesma ideia, mas no final sempre dá certo.
- Não, o problema não é esse. Eu leio algo, e imediatamente depois esqueço o que li. Parece que não consigo me concentrar. Daí, digamos, eu consigo escrever, mas logo depois penso que talvez o que eu escreva não seja o que eu quero para mim, vou ficar preso nisso, numa tese que eu não sei se é verdadeira, por mais que eu consiga, quem sabe, defendê-la bem, e que depois vai me prender não só pela tese defendida como também pelo assunto que ela toca. É aterrorizador. Isso vai acabar definindo minha vida toda. Não sei se estou pronto para isso. Nunca consegui me prender a nada.
- Calma. Se você não quiser mais trabalhar com isso algum dia, você muda. Ninguém está preso a nada. O importante, agora, é terminar. Não fique pensando demais a longo prazo, porque aí não termina nada. Depois, ao menos, você consegue um emprego e consegue trabalhar na área.
- Aí é que está, “na área”. Sei lá se quero trabalhar nesta área!
- Você nunca trabalhou nessa área ou em área alguma e já está com medo? Você também gosta de complicar as coisas. Vou te arrumar um emprego lá no meu escritório como contínuo, e te garanto que você sempre vai mudar de área. Geográfica, topográfica, pelo menos. Nunca vai ficar na sua cadeira. Seu sonho realizado, mudar sempre de cadeira. Não na faculdade, mas na empresa, ao menos. Nenhum compromisso fixo, nenhum pensamento a longo prazo.
- Tudo seu é na brincadeira.
- Pois é exatamente por isso que sou seu melhor amigo. Sou o cara que te livra da sua própria loucura e dos seus problemas imaginários.
- É, isso é verdade. Eu sozinho consigo pensar na mesma coisa por dias a fio.
- Isso porque você acabou de dizer que não consegue se concentrar em nada por muito tempo.
- Só consigo me concentrar nisso, ou seja, na minha falta de concentração. Você entendeu o que eu quero dizer.
- Entender? Eu não entendo ninguém. Mas sempre respondo o que me perguntam.

Chega I., a namorada de V.

- Ois!

Beijo no rosto de H., beijo na boca de V.

- Soube de uma festa legal na casa de M.
- Vamos lá!
- Se eu for, não vou conseguir trabalhar mais hoje nem amanhã, por causa da ressaca.
- Pô, bebe menos que você consegue. Vai te ajudar a sair das suas paranoias e render mais amanhã.
- Vou ficar em casa.
- Você sempre com esse papo, né. Desde que fui apresentada a você, vi que essa sua barba malfeita era mais um indício de uma eterna dúvida interior do que de um estilo. Sempre aí, no meio termo, sem saber se se barbeia sempre ou se deixa crescer de vez. Vamos lá, dessa vez.
- Melhor não.
- Vamos tomar um café, então, que tal?
- Tá bem.
- Ótimo. Vamos lá.

Sentados no café na esquina do parque. Pedem três cafés para uma garçonete com cara de cansaço, mas muito simpática. V., então, declara:

- Enquanto o café não chega, vou ao banheiro. Me dá um beijo que eu vou sentir saudades.

Dá beijo em I, e sai.


- Eu tenho mais saudades de você, te vejo tão pouco.
- Como pode ser que eu goste tanto de você e dele?
- Somos iguais. É uma forma de amor torta que nos une assim.
- O amor deveria ser sincero, aberto, transparente.
- Há milhões de tipos de amor, e a nossa forma de amor é mais uma mistura confusa e inclassificável, mas que não deixa de ser amor. É uma pena e uma bênção que a vida seja maior e mais complicada do que as suas e as minhas ideias sobre ela.
- Eu não sei o que fazer.
- Simples. Não faça nada.

Pés se encostando embaixo da mesa. Pés depois distantes. O café tomado, as risadas, a sensação de contentamento, de estar à vontade.

Mais tarde, no mesmo caderno azul, com a mesma letra apressada:

“Não contei nada do que queria contar. O assunto muda e eu próprio não tenho coragem. E eu só queria perguntar se era errado dar um tempo. Viajar. Sumir para sempre (um pouco). Esperar o tempo passar para ventar em cima de tudo e, quando eu olhar de novo, estar diferente. Senão o mundo, ao menos eu. Nem isso consigo dizer. Preciso me afastar, pensar, pensar, longe de tudo. Ganhar perspectiva. É sempre isto, tudo parece  in-co-mu-ni-cá-vel”.

H. para de escrever e vai tomar banho para ir à festa com V. e I. Conversam, dançam e voltam de manhã para casa. Muitas gargalhadas. H. bebe demais, tem uma ressaca de querer se esconder num quarto escuro. Naquele domingo chuvoso, toma mil cafés, fuma um maço de cigarros e pensa que tem que mudar sua vida.

Na segunda-feira, acorda bem disposto e pensa que está atrasado em todos os prazos possíveis e imagináveis já estabelecidos para terminar sua tese. Passa o dia escrevendo alucinada e concentradamente na biblioteca da universidade, com breves pausas na lanchonete, onde encontra alguns colegas da turma de doutorado. O que havia passado nos dias anteriores era como um filme mudo antigo, com os letreiros passando depois do "the end". 

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