Caros senhores, bem-vindos. Fiquei surpreso, a princípio, com o convite deste notável escritor para discursar na celebração do lançamento de seu novo livro. Jamais escrevi obra literária alguma, não sou escritor no sentido mais estrito do termo. Certo é que escrevi alguns livros em minha área, psicologia, que, embora relativamente citados, somente poucos desinformados e amigos generosos leram. Talvez meu amigo escritor pense que, por ter escrito livros sobre a psique humana (ou, alguns diriam, a alma), eu pudesse dizer algo sobre os personagens que povoam suas obras. Infelizmente, a riqueza de possibilidades interpretativas de suas obras me escapa, sou um psicólogo limitado, tive contato somente com as vidas das pessoas que passaram por meu consultório. Cada livro de meu amigo tem mais personagens do que tive a chance de analisar em toda minha vida profissional.
A verdade é que, poucos nesta sala devem saber, tenho a honra de ter acesso a um dos espíritos mais privilegiados da vida cultural de nosso país, sendo eu analista do homenageado. Embora não tenha odireito de dizer pormenores de nossos inúmeros encontros, o fato é que a narrativa de nosso autor sobre sua própria vida configura literatura. A trama tecida dentro do espírito deste homem é grandiosa a tal ponto que muitos psicólogos invejariam a posição que ocupo.
E não é esse o dever do escritor? Transformar tudo em matéria literária? Pois a capacidade de meu companheiro nesta área chega a ser assustadora em alguns momentos. A precisão com que descreve cada detalhe, cada ato, cada acontecimento de sua vida já faz entrever do que será capaz com a pena em seu poder. Caso tivessem acesso ao que ouço e procuro analisar, alguns poderiam compreender melhor sua preferência por longas descrições de cenas, de mínimos atos, que muitas vezes estendem-se por muitas páginas.
Alguns críticos são incapazes de captar a importância que o autor dá a tais descrições e acabam por classificá-las como inúteis e sem propósito na trama e, continuam, dizem que suas obras são menores, já que, sem estes trechos, a trama em si é desvelada como banal.
Embora esteja tão fora de moda nos círculos intelectuais, pode-se traçar um paralelo importante entre a obra e a vida do autor. Não pretendo proceder a isso da maneira que se faz habitualmente, relacionando fatos marcantes de sua vida a temas constantes em sua carreira. Pretendo fazer, diversamente, um paralelo entre seu estilo e a maneira pela qual encara sua própria existência. Alguns dos doutos senhores poderão não perdoar-me por utilizar a psicanálise de maneira tão livre para entender algo de literatura, mas seguirei em meu propósito.
Pois bem, voltando à crítica literária, da qual praticamente nada entendo, pode-se observar, no discurso do escritor sobre sua vida, elementos de seu estilo literário. De fato, pode incomodar a importância significativa que o escritor atribui a acontecimentos sem importância evidente, em suas histórias. No entanto, mal sabe o leitor que o produto final é produto de longa labuta do autor em diminuir e eliminar a maior parte de suas longas descrições. Em meu trabalho analítico, posso garantir que o autor fornece ainda maior riqueza de detalhes em cada um dos episódios que protagoniza. Atribui a cada um dos elementos insignificantes de sua vida uma riqueza de floreios que deixaria a muitos surpreendidos.
Insisto, os livros que escreve são muito contidos em comparação ao que o escritor faz de sua vida. O leitor não tem acesso à importância que nosso escritor dá a cada uma das catástrofes desprezíveis que permeiam sua existência patética, uma tragédia sem o elemento essencial do pathos. O protagonista pensa sempre estar elaborando planos geniais quando, na verdade, não consegue fugir da banalidade de que sofre praticamente todas as suas criações. Daí surge a megalomania que muitos percebem em seus personagens, quase sempre transitando num mundo indiferente a suas ações pretensamente grandiosas. Certos leitores, enganosamente, entenderam haver por trás de suas narrativas fina ironia que, garanto, nunca foi intencional. Somente quem pode ouvir a repetição insistente de narrativas em círculo onde o narrador pensa haver evolução pode compreender que não é essa a intenção do autor, cuja vida é cheia de obstáculos imaginários que não são ultrapassados por sua própria incapacidade de enxergar além dele mesmo. Esta cegueira individualista de que seus personagens também são vítimas.
As análises sobre suposta mímese não são compatíveis com o fato de que não pode haver mímese do nada, do sem assunto, do não-ser. Não se pode falar da representação do vazio, como se pode perceber nas vidas dos personagens, que parecem não ter referencial dentro do próprio mundo imaginário em que vagam. A falta de perspectiva total, aparentemente proposital, não passa da falta de capacidade do próprio autor de unir estruturas e criar um sentido único, como um deus que não consegue entender a falta de sentido de sua existência, que ele imagina ser inauguradora de um novo tempo.
O estilo do escritor, em suma, decorre de seu pensamento, de sua visão de mundo. O modo como descreve e preenche páginas não passa de sintoma disso. Pode-se dizer que houve união, neste caso, entre linguagem e pensamento. Somente um ser tão inconsciente de si poderia ter angústia de ser influenciado por outros, já que revela-se incapaz de enxergar algo além de si mesmo. Doutos literatos aqui presentes, não há que se falar em hermenêutica intertextual, em diálogo algum. Aqui, há só a eterna repetição de monólogos entre personagens e obras que pensam estar falando entre si. Existe aqui, somente, a auto-referência, insistente e sistemática.
Podemos atestar, como outros já fizeram antes de mim, que o autor não consegue escapar de suas experiências na construção de suas obras. Se é que se pode chamar de experiência o eterno orbitar-se ao redor de si próprio. A certeza de que se é o centro do mundo, o próprio sol, de que sua ausência poderia causar um colapso no universo. Essa incapacidade (perdoem-me, mais uma vez, por usar a psicanálise) de ultrapassar a infância e atingir a maturidade, esta falta de consciência de que o mundo é independente do self. Eu tive oportunidade de conferir isso por anos e anos a fio e não posso mais me conter. Por isso não me venham, nobres senhores, argumentar com estéticas da recepção. Catarse, o caralho. Eu... bem... interrompo por aqui. Muito obrigado.
(O palestrante retira-se bruscamente do recinto e não se dispõe a fazer quaisquer esclarecimentos sobre a tese apresentada).
A verdade é que, poucos nesta sala devem saber, tenho a honra de ter acesso a um dos espíritos mais privilegiados da vida cultural de nosso país, sendo eu analista do homenageado. Embora não tenha odireito de dizer pormenores de nossos inúmeros encontros, o fato é que a narrativa de nosso autor sobre sua própria vida configura literatura. A trama tecida dentro do espírito deste homem é grandiosa a tal ponto que muitos psicólogos invejariam a posição que ocupo.
E não é esse o dever do escritor? Transformar tudo em matéria literária? Pois a capacidade de meu companheiro nesta área chega a ser assustadora em alguns momentos. A precisão com que descreve cada detalhe, cada ato, cada acontecimento de sua vida já faz entrever do que será capaz com a pena em seu poder. Caso tivessem acesso ao que ouço e procuro analisar, alguns poderiam compreender melhor sua preferência por longas descrições de cenas, de mínimos atos, que muitas vezes estendem-se por muitas páginas.
Alguns críticos são incapazes de captar a importância que o autor dá a tais descrições e acabam por classificá-las como inúteis e sem propósito na trama e, continuam, dizem que suas obras são menores, já que, sem estes trechos, a trama em si é desvelada como banal.
Embora esteja tão fora de moda nos círculos intelectuais, pode-se traçar um paralelo importante entre a obra e a vida do autor. Não pretendo proceder a isso da maneira que se faz habitualmente, relacionando fatos marcantes de sua vida a temas constantes em sua carreira. Pretendo fazer, diversamente, um paralelo entre seu estilo e a maneira pela qual encara sua própria existência. Alguns dos doutos senhores poderão não perdoar-me por utilizar a psicanálise de maneira tão livre para entender algo de literatura, mas seguirei em meu propósito.
Pois bem, voltando à crítica literária, da qual praticamente nada entendo, pode-se observar, no discurso do escritor sobre sua vida, elementos de seu estilo literário. De fato, pode incomodar a importância significativa que o escritor atribui a acontecimentos sem importância evidente, em suas histórias. No entanto, mal sabe o leitor que o produto final é produto de longa labuta do autor em diminuir e eliminar a maior parte de suas longas descrições. Em meu trabalho analítico, posso garantir que o autor fornece ainda maior riqueza de detalhes em cada um dos episódios que protagoniza. Atribui a cada um dos elementos insignificantes de sua vida uma riqueza de floreios que deixaria a muitos surpreendidos.
Insisto, os livros que escreve são muito contidos em comparação ao que o escritor faz de sua vida. O leitor não tem acesso à importância que nosso escritor dá a cada uma das catástrofes desprezíveis que permeiam sua existência patética, uma tragédia sem o elemento essencial do pathos. O protagonista pensa sempre estar elaborando planos geniais quando, na verdade, não consegue fugir da banalidade de que sofre praticamente todas as suas criações. Daí surge a megalomania que muitos percebem em seus personagens, quase sempre transitando num mundo indiferente a suas ações pretensamente grandiosas. Certos leitores, enganosamente, entenderam haver por trás de suas narrativas fina ironia que, garanto, nunca foi intencional. Somente quem pode ouvir a repetição insistente de narrativas em círculo onde o narrador pensa haver evolução pode compreender que não é essa a intenção do autor, cuja vida é cheia de obstáculos imaginários que não são ultrapassados por sua própria incapacidade de enxergar além dele mesmo. Esta cegueira individualista de que seus personagens também são vítimas.
As análises sobre suposta mímese não são compatíveis com o fato de que não pode haver mímese do nada, do sem assunto, do não-ser. Não se pode falar da representação do vazio, como se pode perceber nas vidas dos personagens, que parecem não ter referencial dentro do próprio mundo imaginário em que vagam. A falta de perspectiva total, aparentemente proposital, não passa da falta de capacidade do próprio autor de unir estruturas e criar um sentido único, como um deus que não consegue entender a falta de sentido de sua existência, que ele imagina ser inauguradora de um novo tempo.
O estilo do escritor, em suma, decorre de seu pensamento, de sua visão de mundo. O modo como descreve e preenche páginas não passa de sintoma disso. Pode-se dizer que houve união, neste caso, entre linguagem e pensamento. Somente um ser tão inconsciente de si poderia ter angústia de ser influenciado por outros, já que revela-se incapaz de enxergar algo além de si mesmo. Doutos literatos aqui presentes, não há que se falar em hermenêutica intertextual, em diálogo algum. Aqui, há só a eterna repetição de monólogos entre personagens e obras que pensam estar falando entre si. Existe aqui, somente, a auto-referência, insistente e sistemática.
Podemos atestar, como outros já fizeram antes de mim, que o autor não consegue escapar de suas experiências na construção de suas obras. Se é que se pode chamar de experiência o eterno orbitar-se ao redor de si próprio. A certeza de que se é o centro do mundo, o próprio sol, de que sua ausência poderia causar um colapso no universo. Essa incapacidade (perdoem-me, mais uma vez, por usar a psicanálise) de ultrapassar a infância e atingir a maturidade, esta falta de consciência de que o mundo é independente do self. Eu tive oportunidade de conferir isso por anos e anos a fio e não posso mais me conter. Por isso não me venham, nobres senhores, argumentar com estéticas da recepção. Catarse, o caralho. Eu... bem... interrompo por aqui. Muito obrigado.
(O palestrante retira-se bruscamente do recinto e não se dispõe a fazer quaisquer esclarecimentos sobre a tese apresentada).
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