- Por favor, vocês têm que me
ajudar a encontrar meu irmão. Sinto tantas saudades dele. É um menino muito
bom. Ele não é doente, ele não é louco. Eu juro. Não está bem, só isso, está um
pouco perdido. Eu sei que ele não quis desaparecer. E eu tenho medo, ele não
tem condições de ficar tanto tempo sozinho. Alguém pode ter se aproveitado
dele. Ele é muito jovem. Ai, meu deus. Tudo bem, tudo bem. Eu vou contar mais
ou menos o que aconteceu. Foi uma fatalidade, quer dizer, foi só um acaso. Acho
que tudo começou com uma discussão em sala de aula que a diretora depois transmitiu
aos nossos pais. Não. Pensando bem, acho que tudo começou um pouco antes. Sim,
sim. Me desculpe, é difícil para mim. A diretora chegou um dia na casa dos meus
pais e perguntou se meu irmão estava doente. Não, me confundi de novo.
Desculpe. Eu ia contar a conversa que tive com ele antes disso. Foi o seguinte:
ele me contou que tivera uma estranha e forte sensação pouco depois do almoço.
Ele estava andando pela rua quando, de repente, pisou numa casca de banana e
por pouco não se espatifou no chão. Disse que, primeiramente, quase morreu de
rir da situação. Onde já se viu, na vida real, alguém escorregar numa casca de
banana? Isso era coisa de desenho animado, de cartum barato de jornal, de programas
de televisão ruins no sábado à noite. E foi então que ele fez uma observação
que me intrigou. Agora, depois de tudo o que ocorreu, as coisas se encaixam.
Disse que, na sequência, começou a se perguntar se ele não era um personagem de
alguma história. Primeiro, começou a imaginar que as inúmeras câmeras de
circuito interno na rua poderiam ser, na verdade, uma simples desculpa para que
o filmassem continuamente para algum programa de entretenimento para pessoas
mais sábias e menos ingênuas do que ele. Mas logo desistiu dessa ideia, depois
de perceber que ninguém o olhava de soslaio, que não havia câmeras que o
seguiam. Em outras palavras, o mundo era indiferente a ele, e o pensamento que
havia tido logo o envergonhou, por ter tido a ingenuidade de se achar especial
quando, na verdade, não passava de mais um dos bilhões de habitantes deste
mundo. Ele disse, pelo menos, que valeu a risada e que nunca se esqueceria da
sensação de ser um personagem de ficção. Disse ainda que sentiu um calafrio
quando pensou nisso. Agora, sinceramente, acho que foi bem aí, foi aquela casca
de banana jogada por um idiota sem educação, que tem coragem de jogar lixo no
meio da rua que fez o meu irmão se perder. As pessoas podiam ter mais noção do
que fazem. Há alguns dias atrás, quase pisei sem querer numa barata no meio da
calçada, de tantas infestações na rua hoje em dia. E ninguém tem consciência
das consequências que isso pode acarretar. Logo os chineses vão começar a catar
baratas nas ruas da nossa cidade para cozinharem o jantar. Que nojo.
- Nem sabia que ele era de família
rica. Conheci ele na rua. Achei estranho um menino de rua tão branquinho, com
rostinho tão saudável, barba rala, morando na rua. Achei que era drogado fugido
de casa ou abandonado pela família. Mais um perdido pro crack. Depois descobri
que não. Ele ficava morrendo de medo de alguém conhecê-lo, ficava perguntando o
tempo todo se as pessoas eram enviados dele. Dele, quem? Do pai? Acho que nem
ele sabia responder. Depois que conversava mais, se acalmava. Falava que tinha
tido uma revelação. Era gente boa. Isso de ser iluminado, de ter revelação,
esse tipo de coisa nem me chamou a atenção, eu tenho muitos conhecidos da rua
que falam que são iluminados, que compreendem tudo e que a gente não sabe de
nada, que não tem condição de compreender. Mas estão morando na rua que nem eu.
Mas, como eu disse, ele nunca ficava no mesmo lugar. Perambulava pela cidade
inteira, deve ter passado por todos os bairros que existem aqui. Esse medo dele
era mesmo muito forte. Acho que, nessa altura, já deve ter pego um ônibus e
deve estar bem longe daqui. Ele tinha uns olhos brilhantes. Morador de rua, em
geral, costuma ter os olhos bem perdidos. Ele, não. Ele tinha uns olhos
diferentes.
- Sempre soube que esse menino ia
se perder. Sempre o achei meio sinistro. Especialmente depois da minha conversa
com a sua professora de história. Eu não vi a discussão, mas me senti obrigada
a reportar isso aos pais do garoto. Hoje em dia, com esses massacres que a
gente vê nas escolas pela televisão, que ficaram tão comuns em outros países,
eu me sinto na obrigação de verificar como estão todos os alunos. A nossa
escola se preocupa com o bem estar de todos. Eis o ocorrido: a professora de
história estava discorrendo sobre religiões e decidiu perguntar, como mote para
a aula, a religião dos integrantes da classe. As respostas dos alunos não
tinham nada de fora do comum, ela disse. Depois, questionou se havia alguém que
não acreditava em deus ou que era agnóstico, e dois estudantes se manifestaram
nessa posição. Acho estranho haver jovens assim hoje em dia, mas todos são
livres para escolher, especialmente na nossa escola, que é muito liberal, mesmo
que isso possa implicar algo ruim depois da vida deles. Pois justamente o
Andrei não se enquadrava em nenhuma das perguntas, tinha sido o único a não
levantar o dedo em nenhuma das questões. Ela, então, decidiu perguntá-lo que
crença professava. Ele respondeu que não acreditava em deus algum, nem que deixava
de acreditar. Achava que o problema maior era se nós éramos manipulados. A
professora passou a discorrer algo sobre manipulação dos meios de comunicação,
mas ele a interrompeu dizendo que não era a isso que se referia. Ele queria
saber se nós éramos manipulados por algo acima de nós. Perguntou o que era
exatamente destino. Acrescentou que tinha horror a frases como “tudo acontece
por uma razão”, “tudo tem um sentido maior”, que nós não estávamos aqui à toa.
A aula se perdeu por aí, provavelmente, com todos discutindo ao mesmo tempo se
estávamos aqui por acidente ou se havia uma razão por trás de tudo. O debate
havia sido arruinado. A professora me contou que o achava interessante,
inteligente. Diferente!, ela disse. Eu achei melhor conversar com os pais dele
para perguntar se ele estava agindo normalmente fora da escola. Você sabe,
esses massacres. Eu me preocupo, eu tenho que me preocupar. Os pais andam
processando as escolas, os professores, até mesmo os zeladores. Se a gente toma
medidas disciplinares contra os jovens, também entram na justiça pedindo danos
morais. Se eles se dispersam, se reprovam em alguma matéria, transferem-no
imediatamente para outra escola. E também nos processam, nos denunciam, nos
caluniam na internet. Assim, não vejo outra opção a não ser conversar com eles
sobre os filhos, antes que venham em cima de nós. Tem pai que nem sabe direito
o último corte de cabelo do filho. Os dele até que sabiam, mas não educaram
direito. Agora sumiu, quer dizer, ninguém sabe onde está!
- Ele me deu uma dica que mudou
minha vida. Eu pedia dinheiro na rua, não conseguia arrumar emprego. Já viu,
sargento, com esse meu lábio estragado aqui ninguém quer me empregar. Também
não tenho estudo. Pedia esmola na rua e o que eu ganhava quase não dava para
comer. Dormia na praça ali no centro, que foi o lugar onde conheci o rapaz. Ao
ver meu estado, me deu umas roupas limpas e disse que eu tinha que pedir
dinheiro com roupas que me fizessem parecer gente fina e rica, sabe. E eu
pensei e falei pra ele: porque iam dar dinheiro para alguém que já parece ter
dinheiro, que coisa mais maluca! Ele me respondeu que a lógica era essa, que as
pessoas costumam dar dinheiro para pessoas parecidas com ela, do mesmo grupo. Quem
pode dar dinheiro tem dinheiro, então tem que parecer que tem dinheiro pra
poder ganhar dinheiro deles. Ele me mostrou como era. Durante uma semana,
eu acompanhava ele em semáforos
espalhados pela cidade. Ele enchia o cabelo de tinta e de farinha, dizia que
precisava de dinheiro por causa de um trote dos calouros da faculdade. E
ganhava muito! Fazia mais em uma hora do que eu fazia em um mês! Todo mundo
dava dinheiro pensando que ele era um playboyzinho que tinha que arrecadar
dinheiro pra pegar suas roupas de volta na universidade com os veteranos. Como
eu sou mais velho, passei a vestir uma camisa limpa e ajeitada, uma calça bem
passada e dizia que tinham roubado minha carteira e que eu precisava de
dinheiro pra tomar um táxi de volta pra casa. Rapaz, comecei a ganhar notas de
20 pra cima. E eu quase nunca ganhava nem moeda de 1! Hoje alugo uma casinha
que é uma beleza, e compro muitas roupas ajeitadas pra continuar. Tenho pena
dos pedintes normais, que usam uns farrapos de dar dó e ficam o dia todo
implorando por umas míseras moedinhas de centavos. Eles não sabem que gente que
necessita de verdade não ganha dinheiro por questões ideológicas do povo que
tem dinheiro sobrando. Mas isso eu não espalho. O segredo é a alma do meu
negócio. Até vou fazer plástica na boca e, espero, ter ainda mais sucesso.
- Sei que outras pessoas devem me
julgar mal, mas sempre foi enriquecedor dar aulas ao Andrei. Suponho que a
diretora já tenha mencionado o episódio das religiões na aula, já que, da
maneira mais inesperada, meu relato a levou a chamar os pais dele ao colégio
para esclarecimentos, encontro do qual eu tive que participar. Naquela ocasião,
eu já pensava que estavam preocupados por motivos equivocados. A questão
central daquela conversa não era se Andrei acreditava em Deus ou se essa
eventual dúvida na sua cabeça significava algum estado de espírito depressivo
ou, quem sabe, perigoso. O que me chamou a atenção foi que ele manifestou repulsa à ideia de que as pessoas não
vivem à toa, que exista um sentido, um propósito maior para tudo isso que
chamamos de vida ou de história. Isso eu nunca tinha visto antes em sala de
aula. Enfim, notei que ele mudou muito naquele período. Tornou-se mais
disperso, olhava para o lado o tempo todo. Para evitar que piorasse seu
rendimento, pensei em chamá-lo para conversar durante um recreio, mas deixei
isso para lá e agora me arrependo de não ter feito isso. O fato de Andrei ter
tomado conhecimento da ida dos pais à escola deve ter precipitado ainda mais
suas atitudes posteriores.
- Can you translate that? Oh, you speak English.
Yes, he applied for a visa. He was under age, so we told him to ask his parents
to sign the forms he had filled in, but he never showed up again. I was told he
went to other Embassies as well. That is all am aware of, all I can testify.
- Meus pais vão saber disso? Não?
Vocês prometem? Tá bem. Pô, eu matei umas aulas e cheguei a conversar com ele
algumas vezes naquele boteco de sinuca da esquina da escola. Ele era até bom de
sinuca, mas eu era mais bem treinado. Um dia ele veio com um papo de que estava
cansado de aulas e tudo isso, que não queria ser mais como todo mundo. Eu penso
a mesma coisa, tá ligado. Esse negócio de ir pra escola, depois trabalhar,
casar, ter filhos, netos, só pensar em dinheiro, essa merda toda, não tem nada
a ver. Todo mundo igual, todo mundo padronizado. Eu sou diferente, sou
original. Sou mais eu. Pior que isso só ser policial pra vigiar se tá todo
mundo se comportando direitinho, segundo as regras, tá ligado, sem querer
ofender, no maior respeito. Ele disse que ia fugir da própria vida. Achei um
papo suicida, daí troquei uma ideia com ele e vi que ele não queria se matar. A
gente jogava sinuca, sei lá, eu me lembro disso. Estava tocando Placebo, tinha
tudo a ver. Enfim, sei lá. Acho que ele fumava maconha, tá ligado. Eu nunca
fumei, nem sei como é.
- Um dia, chegamos em casa. O
quarto dele estava praticamente igual. Achávamos que ele tinha saído de casa
para ver a namorada. Ele era muito apaixonado. Posteriormente, notamos que ele
não voltava, e decidimos ligar para a casa dela. Ela tampouco sabia de nada.
Depois de algumas horas ligando para alguns amigos, parentes, sem notícias, nos
desesperamos e entramos em contato com vocês, para nos ajudarem. Já faz meses
que ele sumiu. Eu não aguento mais isso, eu não entendo como foi acontecer. Eu
não entendo, não entendo, de verdade. Ele sempre foi amado pela família. Demos
de tudo o que ele podia precisar.
- Ele me disse que não sabia mais
se me amava para sempre. Começou a me dizer que não gostava de pensar que tinha
nascido para mim. Eu achava que tinha nascido para ele. De verdade. E disse
isso a ele e chorava quando ele dizia que ele não tinha nascido para mim. Era
tão cruel, eu achava que ele dizia isso de maldade ou só para me testar. Eu
acho isso, ainda, que nós estamos predestinados. Eu sinto isso. Sinto que ele
se lembra de mim. Mulher sente essas coisas. Mas não sei se vou esperar para
sempre.
- Alucinação. Alucinação completa.
Ele dizia que a vida o perseguia. Quero dizer, que tipo de conversa é essa? Ele
disse que havia um plano de fazer com que todo mundo fosse um personagem de uma
história que era escrita, ou pensada, ou imaginada, ou tramada, ou era
assistida, sei lá, por alguém e da qual ninguém conseguia escapar. E que ele
sentia que algo mais forte do que ele o forçava a voltar a viver a vida de
sempre, mas que ele tinha consciência disso e que ia fugir. Que nada na vida
dele seria imutável, que nada estava assentado. Que ele era livre, que ele era
o autor da vida dele. Se você perguntasse o nome dele, ele alucinava. Começaram
a chamá-lo de Noia. Mas, para te falar a verdade, ele não agia tanto como louco.
Era só essa ideia fixa que ele tinha. Era uma coisa arraigada bem no fundo
dele. Teve um papo de casca de banana, mas não me lembro direito disso. A gente
riu muito. A filosofia da banana! Estudava em escola cara, parecia sabido. Mas
era bem pirado, sempre preocupado com a possibilidade de alguém estar espiando.
Sim, tinha algo a ver com possibilidades, com sorte. Que azar ele teve. Tem
lanche aqui? Estou com fome.
- Todo dia a gente conversava até
tarde, antes de ele voltar para a casa dele. Ele me deixou um presente pouco
antes de sumir, um colar com o símbolo do infinito.
- Andrei? Ele tinha documentos com
outro nome, mas a foto confere. Tinha cabelo meio desgrenhado, dizia que iria
viajar durante um tempo. Que só voltaria quando tivesse certeza de que tinha
realmente escolhido tudo o que tinha acontecido a ele. Era bastante articulado.
Impossível cogitar que tivesse fugido de casa ou fosse dado como louco. Eu
gostei muito dele, mas nem endereço de e-mail me passou. Fiquei apaixonado, mas
ele alegou que só era gay aquela noite, que depois era outra coisa. Fiquei
triste. Mas foi sincero. Eu sempre admirei a sinceridade. Ele queria morar numa
cidade bem diferente. De preferência, um país diferente. Disse que estava
buscando o outro. Não entendi, daí ele me disse que não acreditava na busca de
si, que era apenas mais uma prisão. Ele ia buscar o outro. Foi um acontecimento.
Ele tinha esses olhos brilhantes e sinceros.
- Não sei o nome, mas é
esse mesmo da foto. Conversamos no bar. Acho que era líder de uma seita na
cidade vizinha. Tenho certeza de que foi ele quem roubou minha carteira aquele
dia.
5 comentários:
o Andrei parece ser um cara interessante!! Muito bom!!
Mathias, no início pareceu até irmãos karamazov, mas depois pareceu ser você e depois pareceu ser todo mundo.. acho que eu tô despertando o Andrei dentro de mim também..e nem escorreguei numa casca de banana.. muito massa, avise de novo no próximo post..
Também achei muito legal, meio caleidoscópico, com relatos sobre vários ângulos, observações subjetivas e objetivas dos personagens e verossimilhança que impressiona. Matéria rica pro Italo, como psicanalista, traçar um perfil psicológico dos personagens...Muito bom, Matheus...um abraço afetuoso!
Todos nós conhecemos alguns Andrei na vida. Ou temos alguns dele dentro de nós. Pode não ser com esse nome, mas certamente a fotografia sempre nos fará lembrar de algum momento da vida dele. O texto é vibrante e segura o leitor até o final. Gostei muito. Parabéns.
Achei os personagens interessantes, intensos, dando um pouco de nós, ou de todo mundo, me senti aqui e acolá, durante a narração . Bravo ! Excelente !
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