Como conciliar as idéias libertárias de Sartre e Rousseau, de Byron e Nietzsche, com a idéia de algo tão aprisionador quanto regras de convivência? A etiqueta era símbolo da hipocrisia, da necessidade absurda de imaginar-se parte de um grupo por partilhar modos semelhantes à mesa. Finalmente, a etiqueta é também um símbolo de exclusão e, portanto, era anti-democrática: não participavam do grupo os não-iniciados na arte de bem manejar talheres, de saber os vinhos apropriados a cada prato, das conversas agradáveis durante uma xícara de café ou enquanto tomavam um sorbet para melhor apreciar o requinte que se seguiria.
A etiqueta ainda é para muitos o símbolo dos ideais antigos de nobreza e de sua dissimulação nos palácios, é contrária à autenticidade e aceitação que marcam as sociedades democráticas. É a contraposição ao comportamento do artista, que busca manifestar o seu interior e não ser podado pelo dever-ser do outro.
O jovem esclarecido, com esses ideais, integra-se ao mercado de trabalho, integra-se a outras famílias (de namorados, de colegas). O jovem esclarecido tem necessidade de sentir-se aceito nesses novos círculos, que não conhecia. O jovem esclarecido quer que os outros o reconheçam como parte do grupo, independentemente de seus pais, e observa que existem regras que outras pessoas seguem e que ele não segue. Em sua infância, não havia jantares de gala, não havia convites indicando o tipo de roupa adequado à ocasião, nem convivência com pessoas com esse tipo de preocupação.
Sua infância havia sido muito feliz, na medida de possível, e talvez essa felicidade tenha a ver com o fato de não ter sido repreendido por falta de modos, e por ter convivido com pessoas extremamente espontâneas nas comemorações de que participou. A etiqueta não havia feito falta em sua vida e, sinceramente, deve ter sido melhor que ela não existisse naquele tempo.
Agora, nota que não se comportava como deveria, ou ao menos como esperavam dele em uma série de situações. Ele percebe que havia pessoas que correspondiam a tais ideais, que havia pessoas que se comportavam conforme esperava-se delas, e que tal comportamento agradava bastante, especialmente às pessoas mais velhas, com quem ele pouco convivia.
Ele observa, a contragosto, que sempre teve acesso a esse mundo e que nada o impediu de conhecê-lo, contrariamente aos despossuídos ao qual sempre se sentiu mais próximo. Não podia fingir que era absolutamente alheio a isso tudo. Ele era próximo dessas pessoas concretas que se vangloriavam de sua etiqueta para excluir os demais, para menosprezar aqueles não-iniciados. Ele era cúmplice disso, embora não fosse tão iniciado quanto alguns amigos.
O que o manteve alheio a esse saber foi sua arrogância. Diante da ignorância a respeito do assunto, ele preferiu dar de ombros, abominar toda a humanidade por saber algo que ele não podia admitir desconhecer. Por praticar algo do qual ele era incapaz. O seu orgulho próprio era encoberto pela arrogância suposta dos outros.
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A pessoa acima, dissimulada em terceira pessoa, tem algo de mim. Talvez represente mais gente, mas não posso seguir a hipocrisia de fingir que seja alguém ideal. A etiqueta mais moderna, ou a pós-moderna, não permitiria. Por isso, passo a admitir minha precária condição usando a primeira pessoa.
Naturalmente, eu sabia algo sobre essas regras de convivência, porque convivo com outras pessoas. Com o tempo, deixei de agir exatamente de acordo com minha vontade tirânica. Eu passei a controlá-la para o bem geral, e essa contradição gerou meu mal-estar na civilização. Preciso expressá-lo. Mesmo que isso não siga as atuais regras de etiqueta.
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Admitir ler manuais de etiqueta é como admitir ler livros de auto-ajuda: há algo de humilhante nisso. Os livros de etiqueta não estão destacados na estante da sala, não estão embaixo dos vidros das mesas de centro das salas de apartamentos de classe média. Esses novos livros eróticos (que agora são tão soberbamente exibidos como sinal de modernidade) estão nos recônditos dos armários. Sobretudo, não se fala sobre essa leitura. Por quê?
Em primeiro lugar, pela contradição colocada acima. A modernidade foi construída a partir da relevância do indivíduo e decorrentes ideais de espontaneidade, originalidade e criatividade. No entanto, a etiqueta representa o oposto desses ideais, por exigir um comportamento contido, regulado, uniforme. Algo semelhante à idéia de comunidade que exigia antes da ascensão do liberalismo. A etiqueta, nesse sentido, é reacionária. Ela lembra que, embora tenhamos enforcado o último nobre nas tripas do último padre, algo dessa sociedade ainda resta. Pior, ela permanece nos estratos mais favorecidos, na nobreza moderna. A etiqueta é um sinal de distinção.
O discurso sobre etiqueta, portanto, é contraditório. Tenta-se resolver essa contradição defendendo-se a “etiqueta natural”. Diz-se que não há nada mais belo do que ver alguém portar-se civilizadamente do modo mais natural. Assim, a etiqueta ideal é aquela que já nasce conosco, que já está presente no berço. Deseja-se que um dever-ser obviamente heteronômico seja visto como algo natural, ou seja, como autonômico. Não há naturalidade alguma em uma criança usando vários talheres durante as refeições. O absurdo desse discurso é tamanho que, na maioria das vezes, prefere-se o silêncio.
Outra maneira de tentar atenuar é oferecer regras dizendo que podem ser quebradas “segundo o bom senso”. Ora, há várias regras que não são ditadas pelo bom senso e que, no entanto, seria falta de bom senso infringi-las. Não há bom senso em não partir folhas depois dos talheres em aço inox. Não há bom senso em usar a mão com menos habilidade para manejar este ou aquele instrumento. Grande parte das normas construídas no processo civilizador decorre de aspectos alheios à racionalidade. Logo, infringir com bom senso é uma regra que não pode ser seguida. Além disso, o dever-ser perde o sentido quando se nega sua própria condição, dizendo-se que ele pode não ser. A etiqueta é espécie de direito, e exige uma comunhão minimamente cega às normas, para que possa ser eficaz. Como não se admite o caráter normativo da etiqueta, mais uma razão para preferir-se o silêncio.
Embora a etiqueta tenha função social, ela é apresentada tão contraditoriamente que não consegue perder a timidez por não saber o que é ou que papel tem no nosso tempo.
Enquanto isso, seguimos conversando durante as refeições, sem mencionar a satisfação de nos sentirmos iguais à mesa e nos distinguirmos de outras pessoas por pequenos detalhes de comportamento. Continuamos a vangloriar a nossa elegância natural, adquirida depois de longas lições e duradoura prática, quiçá reforçadas com a leitura de alguns livros escusos no vão da parede.
Ora, não falemos de política. Ah, sim, este vinho está maravilhoso. Não precisava ter se incomodado em trazer, querida. Há tempos não tinha uma noite tão agradável.
Um comentário:
ai. eu prefiro as crianças!!
Sempre me perguntei porque a ordem não poderia ser contrária. A gente poderia nascer velho, ficar adulto (cheio de firulas - insiro aqui a argth, etiqueta), ficar jovem, aborrecer total, quebrar tudo, e de repente, no fim da vida, sermos crianças. simples e "sem bagagem", como as crianças.
Beijos!
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