As grades da varanda, onde se passava após subir uma íngreme rampa, que dificultava a entrada dos carros. Meu pai e sua mania de sempre ter Monza, e que me fazia pensar que o Monza era o melhor carro do mundo, e Chevrolet, a melhor marca. O asfalto da frente, o terreno baldio ao lado, onde inventávamos guerras com mamonas, onde imaginávamos um campo de futebol só pra gente, mas nunca concretizado. O terreno baldio era meu esconderijo secreto, mesmo estando à vista de todos. Eu me escondia dentro de um semi-arruinado suporte para caixas d’água, e lá me sentia um coronel de meu próprio mundo. Eu ruminava amores secretos, eu sonhava o dia em que seria o mais forte e o mais belo, quando meus amores platônicos se declarassem delicadamente a mim, e meus amigos reconhecessem que, afinal, eu teria algum valor.
O muro era alto do lado da minha casa, e baixo do lado daquele lote vago, e eu o pulava dos dois lados. Encontrávamos insetos, bichos, até cobra já vimos, e eu morria de medo de cobra, mas me recusava a arredar o pé daquele espaço, o meu espaço. Perto de lá, os prédios públicos, tão parte de minha vida mínima. Do lado oposto, uma rinha de briga de galos, que insistia em ficar ali, e que recebeu minha visita mais de uma vez. Aquele cheiro de granja, aquelas marcas de sangue, e as pessoas, suadas, gritando, animadas. Meu pai dizia que era errado, e que tinha de fechar aquilo. Então, eu achava que era errado, só era curioso.
As idas ao clube, os primeiros “melhor amigo”, as conversas ao meio-fio, até anoitecer. As histórias de perdas de virgindade, com meninas mais velhas. O meu sonho de perder e ganhar nova vida com aquelas que conhecia, da minha idade, que namoravam os mais velhos. A inveja dos meninos mais velhos, a ânsia de ser logo mais velho e alto e forte. A recusa em ser adulto, triste, usar calça ou, pior, terno. A idéia de que o mundo inteiro se resumia àquela cidade onde eu morava e que, portanto, eu não precisava sair de lá. Mas meu pai mudava, coisas de trabalho, a vida vai ser melhor, você vai ver. Eu não gostava de trabalho, nem de escola, que era, para mim, uma preparação para o pior. E não gostava de que meu pai fosse aquele que me fizesse ser “filho do juiz”, e torcia para que houvesse muitos juizes logo nesse mundo.
Jogar bola todo dia, dibrar todo mundo antes de chegar no gol, sem ninguém estrovando. Brigar de vez em quando, e ver o tremor imenso que vem depois, batendo ou apanhando. A vontade de ser menino, a vontade de entender o mundo das meninas e adivinhar o que pensam. Como será beijar aquela que eu adoro e nem imagina. Gostar de alguém só depois de todo mundo dizer que você gosta, e você inventa de gostar, morre de gostar, e começa a espalhar por aí que gosta. Os nomes estranhos. Meu nome estranho, sem xará na escola. Sem amigos com pais com idéias parecidas com as do meu pai. Lula vai roubar sua casa, ele vai colocar 10 pobres na sua, você vai ficar sem quarto. Piano é coisa de viado, já te disse. Ninguém gosta de ler, é chato.
Mas as revistas de cinema lá, após inúmeras revistas em quadrinhos. A primeira masturbação, achar aquilo estranho, ter medo, conversar com o pai, ele rir e dizer que todo mundo fazia, até o tio Ítalo, e que depois, sem dizer porquê, um dia, pára. Não era errado. Meu pai dizia masturbação, mas nas quadras de futebol, todo mundo batendo punheta pra lá e pra cá. Eu não xingava, não xingava quase nada. Era feio, mas ninguém gostava das idéias dos meus pais, e eu já estava era me desligando de muitas delas. Todo mundo entende nós vai, não precisa dizer vamos. Cara de decepção e raiva na mesa do almoço.
Coleção “para gostar de ler”, para meu filho, pelo amor de deus, gostar. Phantom System e Nintendo. Futebol. Pizzaria Gota de Mel. Bicicleta. Festas com refrigerante e salgados. Para sair, dinheiro somente para um refrigerante e um salgado. Edjane, Chadia e nomes diferentes. Todo mundo chamava Juliana, Mariana, Rodrigo e Pedro. Não entendia meu nome, veio da parte errada da Bíblia, veio na época errada para nomes. Não queria ter nome com “A”, pois vinha primeiro na chamada. Seria bom, talvez, Marcos, quem sabe.
Eu me lembro tendo aulas caseiras de teoria musical. Comprarem uma flauta doce para mim, fácil de tocar. Eu tocar umas musiquinhas que pareciam exercícios, e querer tocar mais. Quero tocar como minha tia, umas músicas difíceis. Daí, toco parte de Noturno n.º 9, do Chopin. Eu gostava de Beethoven e Chopin, além das músicas que tocavam nas boates que eu não conhecia e não poderia ir. Eu toco o Noturno n.º 9, só um pedaço, e penso que as coisas estão melhorando. Eu penso que já tinha um melhor amigo, que eu era apaixonado pela menina que diziam que era apaixonada pelo filho do juiz com cara de índio, que alguns me escolhiam antes na seleção dos times, que tinha vergonha de a professora dizer que eu era bom aluno mas gostava. Eu pensava que o Noturno n.º 9 resumia tudo, aquele pedaço, bastando alternar posições nos dedos e soprar como era devido. Ele estava esperando eu descobri-lo. Foi atrás das grades da varanda, a rua com carros e casas e meus pais, tudo à vista, com a coleção de livros e discos em capa branca. Era aquela minha tristeza e ansiedade, sorriso e contentamento. Esse Noturno segue tocando dentro de mim.
Um comentário:
Nossa, me lembro muito bem daquela época.Fiquei super triste quando vcs foram embora pra Goiania,fiquei lamentando o ano inteiro porque o Matheus foi embora, vc fazia uma falta danada, vivia pedindo pros meus pais para irmos até Goiania mas nunca dava certo, a Claudine então, morria de saudades da Raquel.Bons tempos aqueles.Chadia
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