Escrever, escrever
até se perder
E se encontrar
em outro lugar.
Essays
Ceci n'est pas un blog.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
Ex abrupto
O Calango tinha despirocado de
vez. Tinha perdido a conta de quantas vezes tinha dito aquilo. Tinha prevenido
até a Gabi. Mas “não, ele era muito exagerado”. Estava “puta passando mal”.
Agora, quem ia lá verificar se ele tinha surtado ou se estava vivo hoje? Não
atendia o telefone de jeito nenhum. Porra, Calango. Aquela calça já não entrava
mais nele. Tinha que diminuir a cerveja. Ou poderia diminuir os petiscos. Como
todo mundo podia ter achado normal uma pessoa ficar enfurnada em casa três
meses seguidos? Se é que ficou. Ninguém se deu ao trabalho de saber. O cara
tinha largado o emprego e passado a trabalhar online nesse treco de webdesign,
somente para ganhar o suficiente pra continuar adquirindo café, cigarros,
maconha e pizza no delivery em
quantidades suficientes para sobreviver. Alguém tinha que interditar aquela
profissão de webdesign, que permite a
um cara esquisito ganhar dinheiro suficiente para viver à parte da sociedade, só
na base de entrega a domicílio. E interditado o Calango, especialmente. Que só
assistia seriados baixados na internet toda noite, a noite toda.
Alguns chegaram a visitar o cara.
Só no início, é claro. Depois, todo mundo sumiu. Quando ele aparecia, o Calango
ficava lá, olhando pro lado, assistindo televisão e falando umas paradas sem
sentido. O cara estava pirando, mas sempre na maior calma. Queria sair? Não.
Tinha uma temporada nova de um seriado norte-americano qualquer pra assistir.
Queria ir ao cinema? Não. Tinha trampo. Bar? Não. Nada. O cara até arrumou o
telefone de um lugar que entregava cigarros em casa. E todo mundo achando
tudo aquilo muito normal. Alguém devia era pegar a lista com os nomes dos caras
que pedem para entregar cigarro na casa deles e mandar para alguma instituição
psiquiátrica. Para fazer um tratamento preventivo. Mas sempre que ele
comentava, era um “pô, Roneba, deixa o cara” ou um “deixa de viajar”. Era o
mesmo papinho da ex dele. “Não é que você esteja super trabalhando, meu
querido”. Caralho. O cara estava definhando e ninguém achava esquisito.
Ele precisava ligar imediatamente
o computador. Sua cabeça estava quase explodindo. Não fazia muito sentido ter
acordado ali na cama dele (travesseiro com fedor de cigarro) depois daquilo.
Gosto ruim na boca (de cigarro na língua e na gengiva), uma caca nas mãos
(cheiro de tabaco e de nicotina). Parecia que havia sonhado com uma mulher
afogada. Ou atropelada. Era tipo uma ressaca sem que tivesse rolado álcool na
noite anterior. Será que aquela história da ex do Calango era verdade? Mas aí
ele não teria ficado em casa aquela noite. O computador lento de tão abarrotado
de músicas e filmes e livros que ele não escutava nem via nem lia. Cheiro de
pasta de dente na boca de manhã era bom. Ele podia agora cuspir o nojo e a
angústia. Tinha de tomar banho naquele banheiro onde deveria haver uma placa
avisando: “inapropriado para visitas”. Inapropriado até para o morador. No
entanto, depois do café da manhã, viraria outra pessoa. A cachola com ideias
mais claras. Precisava de café.
Mas não tinha café na casa. E não
existia nada pior do que nescafé. Ou, pensando bem, pior do que nescafé, por si
só, era tomar o resto do pó do nescafé que a ex-qualquer-coisa tinha deixado na
casa dele uns 9 meses antes. A escrota tinha ido embora, já estava namorando de
novo, e ele continuava com o pó de nescafé dela
no armário da cozinha (além de duas blusas misturadas com suas cuecas, na
gaveta de cima do guarda-roupa, dos produtos de maquiagem espalhados pelo
banheiro inabilitado há meses para visitas – e para moradores - e do cheiro
dela, que impregnava a casa inteira). Nescafé era uma porcaria, mas ele ia
tomar porque precisava de café, embora aquilo não pudesse ser considerado café.
E aquela porcaria nem despertava ninguém. Ainda por cima um nescafé com o
cheiro da Aline. Lembrou da sua viagem pro Chile. Lá, ele tinha que pedir “café
café”. “Café”, pura e simples, era nescafé, pura e simples, por mais incrível
por possa parecer. Nescafé. Como uma nação inteira podia achar que nescafé poderia
ser equivalente a café? E ainda tinha os Estados Unidos. Se brincar, o café
americano do Starbucks era ainda pior que nescafé. Ele tinha discutido isso com
a ex-qualquer-coisa (ele falava assim, às vezes, e às vezes até pensava assim,
mas sempre se lembrava que a ex era a Aline: a não-mais-sua Aline) várias
vezes. Saudade da máquina de espresso. Ele deveria ter ficado com ela. A Aline tinha
levado tudo o que havia de melhor na casa, mas tinha largado o nescafé. Que
deixa esse gosto desgraçado na boca. Na hora do vamos-ver, de dividir as
coisas, não ouviu defesa alguma do nescafé. E esse barulho insistente? Cadê
aquele celular (nove chamadas não atendidas), que não parava de tocar? O
celular, claro, estava entre as almofadas do sofá furado e inapropriado para
visitas onde ele havia dormido.
- Alô! Quem? Ah, fala, Batata.
Putz... Sério? Caralho... Puta que pariu... Então é isso mesmo... Estirada na
rua? Eu ainda não estava certo dessa parada desde que eu acordei... Foi.
Agorinha. Pode crer... Agora tô aqui lembrando: tentei falar com ele de
madrugada, mas ninguém atendia. Mas o Calango também não atende o telefone de
ninguém já faz uns dois meses. Será? Cara, tenho medo de especular. Não tô
sabendo de nada. Mas também não duvido. Vou me arrumar por aqui e vou dar uma
chegada na casa dele. Tá por dentro de algo sobre a família dele? Alguém chegou
por aqui? Se ele tem algo a ver com isso? Você acha? Puta merda. Ele disse
isso? Não, não sei. Não sei de nada. Eu vou lá agora mesmo, bicho. Melhor eu
checar o cara. Falou.
Precisava dar uma olhada no
computador. A notícia estava disseminada. Coitada da Luiza. Era tão linda. Não
que fosse pior por ela ter sido tão linda. Mas ela era. Linda, digo. Coitada.
Às vezes, era meio convencida, mas até que era gente boa. E linda, além do mais.
Largada no meio da rua, daquele jeito horrível... A Elis havia dito que tinha
acontecido no início da subida da avenida Humaitá. Mais ou menos à 1h da manhã.
Todo o pacote da morte de jovem do sexo feminino em uma avenida deserta no meio
da madrugada. E já haviam começado as correntes: as de ódio aos criminosos e as
de pensamentos positivos para a alma da Luiza e para a família e para os
amigos. Ele odiava correntes. Alguns já estavam postando teorias e insinuações sobre
o Calango. Mais uns minutos e começaria o linchamento moral. Filhos da puta. Tinha
que sair, mas não queria dar de cara com ninguém no ônibus. Resolveu encher os
pneus da bicicleta que ele não usava havia dois anos.
Saiu para a rua meio ansioso, mas
com um único desejo imediato: não encontrar ninguém conhecido. Poderia até
mesmo cruzar com o assassino da noite anterior. Isso não lhe traria, afinal,
nenhuma angústia. As caras são, afinal, sempre as mesmas. Ouvia o barulho
incessante das buzinas. Ele poderia, talvez, cruzar com uma namorada antiga
(desde que não fosse a escrota da Aline). Não veria sequer uma marca,
provavelmente sequer uma lembrança, de que ela já tivesse lhe dado um beijo
algum dia. Percebeu uma velha com um cachorro, na calçada. Estava lá, agora,
passeando calmamente com o cachorro cagando pela calçada inteira, enquanto o
marido estaria tendo um ataque fulminante do coração. Seria bom ver um
acidente. Poderia tirar sua cabeça daquilo. No dia anterior, tinha morrido um
ciclista, atropelado. Mas nem repercutiu. “Acidente”. Mas o negócio da Luiza
seria diferente. Não tinha sido“acidente”. E ela era jovem. E linda. E até
gente boa, na opinião de alguns. Mas, acima de tudo, ela era rica. Alguém ia se
ferrar. Chegara a seu destino. Um prédio velho, com cor de lata de lixo velha.
Como faria ele pra subir com a bicicleta naquele prédio sem elevador?
Três lances de escada. O porteiro
tinha dito que ele estava. Mas ninguém atendia. Ele ia ter que descer as
escadas. Merda.
- O Carlos não está atendendo a
porta. Toquei a campainha várias vezes. Bati na porta. Esperei uns 10 minutos,
e nada. Certeza que ele está no apartamento?
- Vou falar uma coisa pro senhor.
Certeza que ele está aí. Ele entrou faz pouco tempo. Pode ser que esteja
dormindo. Passou a madrugada inteira fora. Vou falar pro senhor porque sei que
o senhor é amigo dele. Mas a polícia veio aqui perguntando por ele e levou ele
pra delegacia. Foi o porteiro do turno anterior que me contou. Depois eu fiquei
sabendo do negócio da namorada dele. Era uma moça bonita que só, mas nunca mais
tinha visto ela aqui no prédio. A notícia está se espalhando rápido. Tem
morador aqui que está com medo. O senhor sabe se saiu mais alguma coisa na
televisão? Veio uma mulher aqui perguntando por ele, parecia jornalista, mas eu
achei que era melhor não dizer coisa nenhuma. Vai que. Mas ele está lá, sim.
Ele voltou faz umas 2 horas. Eu posso interfonar lá pro senhor.
O típico porteiro fofoqueiro.
Conta tudo pra todo mundo e diz que só está comentando aquilo com você. Ele
deve estar com medo. Ninguém entende uma coisa dessas. Mas todo mundo começa a
julgar imediatamente. E todo mundo adoraria dar uma opinião e aparecer no
jornal.
- Se você puder interfonar...
- É... Senhor Carlos? O seu
amigo, o Ronaldo (é este o seu nome, né?), está aqui embaixo... - O porteiro,
então, olha pra mim, com uma cara interrogativa, quase de súplica, e diz com a
cara enrugada: – O seu Carlos disse que o senhor pode subir.
Subiu de novo e viu a porta
semiaberta. Depois que entrou no apartamento, o Calango, sem dizer nada,
assomou com uma cara de quem não dormia havia um mês. Deu um “oi, cara”, olhou
para os dois lados do corredor depois que ele entrou na sala, e fechou a porta
a chave. O apartamento estava encoberto de fumaça de cigarro. O cheiro era de
incenso misturado com tabaco. Que lixo. Estava ainda pior que o apartamento
inapropriado dele. Aquele apartamento não via uma faxina havia pelo menos seis
meses, a julgar pelo aspecto dos restos de comida sobre a pia da cozinha. A
televisão, como sempre, estava ligada. Perguntou como ele estava.
- Você viu o que aconteceu? Todo
mundo já sabe? No jornal? É... Eu estava aqui, de boa, quando me interfonaram
dizendo que a polícia estava lá embaixo querendo subir pra falar comigo. Pra
você ver como eu estava por fora de tudo, a primeira coisa que eu fiz foi
apagar o baseado que estava meio aceso na mesinha de centro e jogar fora toda a
maconha que eu tinha aqui em casa pela privada. Enquanto eu puxava a descarga,
já tinham começado a bater forte na porta, mandando eu abrir. Depois de entrar,
os dois guardas começaram a gritar comigo, perguntando o que eu tinha feito nas
horas anteriores. Mal comecei a falar, eles me perguntaram da Luiza. Surtei.
Não tinha sacado porra nenhuma. Me fizeram umas perguntas sobre facas, sobre
estupro, e já me deram logo uns 3 tapas bem fortes na cara, me levaram pro
corredor do prédio e revistaram todas as minhas coisas. Sem mandado, sem porra
nenhuma. Depois de uns 15 minutos, me levaram pra delegacia. Fiquei
praticamente a noite inteira lá. De passagem, vi o irmão da Luiza, estava com a
cara inchada, conversando com outros policiais. Mas foi tudo muito rápido. Depois,
me interrogaram por horas. Perguntavam sempre as mesmas coisas, várias vezes.
Eu não tinha nenhum álibi. Insistiram muito na escada de incêndio. Como o
porteiro disse que não tinha me visto saindo, concluíram que a única maneira de
eu ter deixado e entrado de volta no prédio seria por ali.
O Calango gostava de usar aquela
saída por fora quando ia comprar cerveja ou cigarros no meio da noite. Para
evitar algum vizinho que pudesse estar puto com o barulho da música e da
conversa alta. Às vezes, era até exagerada a frequência com que usava uma
escada de incêndio cujo estado era, pra dizer o mínimo, precário. Mas não era
horar de fazer nenhum comentário. Era tudo muito desconfortável. Não sabia se
devia dizer algo. E o Calango desse jeito maluco beleza dele, acendendo e apagando
o mesmo cigarro várias vezes, até resolver continuar a história.
- Ainda não consigo acreditar que
a Luiza tenha morrido. Isso só ficou claro pra mim depois de muito tempo na
delegacia. Eu continuava com a cabeça no lance do baseado, dos vizinhos, sei
lá. Até que me veio, tipo assim como uma martelada na cabeça. Eu não consigo
deixar de pensar como ficava o tempo todo pensando que minha vida poderia estar
bem melhor se ela nunca tivesse existido, ou se eu nunca a tivesse conhecido. E
eis que. Me sinto culpado. É como se tivesse acontecido algo que eu estivesse
desejando loucamente por meses. Foi a primeira coisa que passou pela minha
cabeça. Depois de ter pensado isso, me desesperei. Vi que nunca mais poderia ver
a Luiza na vida. Eu ainda pensava bastante nela. Gostava muito, só que ao
contrário, entende. Foda. Ela era... – ele senta no sofá manchado por diversas
cascas de comida e com alguns rasgos, como se ali morasse um gato invisível –
...ela era linda. Sei que todo mundo acha que eu ainda não tinha conseguido superar
o fim do relacionamento. Mas eu estava de boa aqui. Um maluco recém-solteiro,
em geral, vai a todas as festas, bebe mais do que devia e passa a vida entre a
bebedeira e a ressaca, ficando com todas as pessoas que vê na frente. Como eu
não fiz isso, pensam que enlouqueci. Louco é quem pensava que eu estava dando
pala aqui.
Enquanto ouvia os devaneios do
Calango, achou melhor fumar outro cigarro (a história de fumar tinha
definitivamente ido pro pau). Mencionou que alguns amigos dele (não ele, é
claro) poderiam estar bolados com ele, talvez de forma exagerada. Mas que era para
o bem dele.
- Enquanto eu estava na delegacia,
só queria ir embora. Depois que saí, saquei que o pior ainda estava por vir.
Meu celular estava abarrotado de mensagens me xingando de filho da puta pra
pior. Você não tem ideia de como estava meu perfil do facebook, que eu já
deletei. Uma carta anônima cheia de ameaças foi passada por baixo da porta do
meu apartamento. Nem sei como o cara entrou no prédio. Eu já sou culpado para
todo mundo. Eu estava na viagem de ir ao enterro dela, mas agora estou certo de
que seria linchado se aparecesse por lá. Estou com medo de que algum morador
venha até aqui pra me matar. O pior é que eu entendo essa parada. É muita dor.
Só espero que esse sofrimento todo não se transforme em ódio contra mim.
Engraçado como as expectativas da gente mudam rápido. Eu queria ser acolhido
pela família dela, e agora só espero que não me matem. Até ontem, eu tinha
vontade de ficar mais sozinho. Agora, isso não é mais questão de escolha: eu
estou irremediavelmente sozinho. Não tenho ninguém. Você foi o único que falou
comigo, além dos meus pais. Estão providenciando um advogado. Ainda bem que, de
tanto ter ficado em casa, elaborei um esquema que me permite quase não sair pra
manter uma parada básica de sobrevivência. Peço quase tudo via internet ou pelo
telefone. Te contei que eu descolei o telefone de um serviço de entrega de
cigarros? Acho que vou perder todos os freelas que tinha arrumado. Vou ver se
pego emprestado algum dinheiro com meus pais. Enfim, rodei.
Decide acender outro cigarro. O
Calango fuma um atrás do outro. Mantém os olhos para baixo, como se estivesse
procurando alguma coisa naquele chão imundo. Então, começa a tossir para limpar
a garganta.
- Você não tem ideia. Pelas
mensagens que recebi, as pessoas estão convencidas de que a Luiza foi
estuprada. Só que, depois de horas de interrogatório, um policial deixou
escapar que não havia evidência alguma de violação. Mas, para todo mundo, eu
sou assassino e estuprador. Você acha que isso vai mudar? Eu duvido. Se
disserem que não houve estupro, vão dizer que eu subornei a polícia. Se nunca
descobrirem quem a matou, vão sempre apontar para mim como o escroto que
conseguiu enganar todo mundo. Eu já me ferrei, de qualquer maneira. E pior que
ainda me sinto mal por reclamar. Quem se ferrou de verdade foi a Luiza, que não
merecia aquilo. E a família dela. Houve um momento em que os policiais quiseram
me mostrar o corpo dela. Eu me recusei a ver. Depois de ter saído da delegacia,
fiquei pensando no cadáver dela. A imagem está encravada no meu cérebro. É uma
punição. Eu desejava secretamente que ela não existisse mais, e agora que ela
morreu, eu tenho que sofrer as consequências por ter sonhado tanto com isso. Faz
sentido.
Não fazia nenhum sentido. Ele
estava surtado. O que ele mais desejava naquele momento era que o avião com os
pais do Calango pousasse na cidade nos próximos minutos e tentasse conter
aquela bomba relógio. Vai que ele tentasse o suicídio, por exemplo. Ou que
fizesse uma confissão sem ter cometido o crime. Tinha ânsia de retirar todos os
objetos cortantes daquele apartamento. O caos, no entanto, era espantoso. Era
preciso encontrar uma faxineira antes mesmo de contratar um advogado. E aquele
monte de lorotas que ele estava falando ali. Ou ele era um completo idiota, ou
estava mentindo descaradamente sobre essa história de dizer que tinha superado
a história com a Luiza. Era o único que não percebia o óbvio. Tinha medo de
deixá-lo sozinho com a cabeça pirada daquela maneira. Por outro lado, tinha
medo também de ficar sozinho com ele e ficar com a cabeça pirada daquela
maneira. Precisava sair para pensar um pouco. Aquele ambiente estava irrespirável.
Inventa uma desculpa, de que os pais dele estavam esperando-o em casa, e se
despede do Calango. Ele diz “beleza”, e abre a porta. Enquanto percorre o
corredor do condomínio, percebe que o Calango confere novamente os dois lados
do corredor, antes de trancar a porta do apartamento.
O Calango usava aquela escada de
incêndio todo o tempo. Estava se sentindo culpado demais. Tão culpado que
aquilo podia ser indicativo de algo. E se ele de fato tivesse surtado e matado
a Luiza? E se ele nem se lembrasse de ter feito isso? Ou, pior, e se ele
fingisse estar surtado para poder sair impune? Mas ele não tinha conversado
nada direito com ele. Tinha permanecido lá, só ouvindo, com cara de retardado.
E pensar que, ainda há poucos
meses, costumavam sair “de casal”. Calango com a Luiza, ele com a Aline. A
Luiza, claro, com sua atitude ligeiramente superior, mas disfarçada de
“pessoa-que-gosta-de-passar-umas-dicas-legais”. E a Aline com sua mania de
nunca deixar passar nenhuma fala que pudesse ser um ataque disfarçado a ela, o
que basicamente era qualquer coisa que a Luiza falasse. Não era à toa que ele
rapidamente se acostumara a estar sem a Aline. Menos aos domingos. Ela aparecia
com uns filmes surpreendentes. Ele não poderia, por exemplo, divulgar sua lista
de filmes preferidos porque ela certamente veria e comentaria algo do tipo “fui
eu que mostrei todos pra você”. Ela era insuportável. Não entendia como podia
ter durado tanto tempo. Mas já quase não pensava mais nela. Não estava como o
Calango, fumando baseados e assistindo seriados enlatados, com a barba por
fazer, eternamente em
casa. Não. Estava socializando em bares, em festas, em todo
lugar. Uma vida saudável. O número de contatos de sua agenda era 60% maior que
três meses antes. Ela, como era de se esperar, começou a namorar logo depois. Ele
nem ligou. Ele não sentia saudades. Não sentia saudade alguma. Talvez, quem
sabe, um domingo ou outro. Se a Aline morresse, subitamente, ele não passaria
por um colapso mental. Definitivamente, não seria o principal suspeito do crime.
Este papel agora caberia ao novo namorado. Ele estava livre.
A não ser que todo mundo achasse
dele o que pensavam do Calango. Que ele não tivesse superado a relação com a
ex-qualquer-coisa. Seria possível? Ele definitivamente não estava despirocado
como o Calango. Definitivamente não pensava mais na Aline. Definitivamente,
não. Mas, e os outros? Era possível que todos achassem que ele era o único a
não enxergar o óbvio? Não... Nada a ver. Nada. Não tinha nada a ver pensar
naquilo. Tem que pensa agora no Calango. E no caso da Luiza. O caso da Luiza
era mais importante agora.
Mas não podia fazer nada com
relação à morte da Luiza. Tinha acabado de falar com o Calango. Amanhã,
voltaria à casa dele, para ver se a família havia chegado. E para ver se ele
colocaria o parafuso de volta. Naquele exato momento, porém, estava em frente a
casa da Aline (Aline, não: ex-qualquer-coisa). Não custava nada interfonar. Afinal,
mostraria a ela e a todos que poderia perfeitamente ser amigo daquela menina que
levara a máquina de espresso mas deixara o nescafé. Precisava mostrar a todo o
mundo. E a ela, especialmente. Estava decidido. Ele deixou a bicicleta
acorrentada no poste habitual, tentou remover um pouco do cheiro de tabaco da
roupa, comprou um chiclete no quiosque do Chico (“há quanto tempo, Roneba!”) para
tirar o bafo, sentou-se por cinco minutos nos degraus da escada na entrada do
edifício. Após certa hesitação, apertou o botão do interfone do apartamento
304. E começou a suar e tremer. Não esperava isso. Certamente, era por medo do
gênio dela. Por isso. Não sentia saudade alguma dela.
Ela atendeu o interfone. Depois
de perguntar duas vezes quem era e reconhecer a sua voz, perguntou se ele
queria subir. Ele disse: “quero, sim”, de uma maneira bem tranquila,
descompromissada. Enquanto esperava o elevador, perguntou-se várias vezes se
deveria estar ali. Mas convenceu-se de que havia tomado uma excelente decisão.
Não podia deixar que acontecesse com ele o que havia ocorrido com o Calango. O
que ele se dizia, enquanto o elevador subia, era que, com ele, seria diferente.
Logo, ela precisava saber, por ele, que tudo estava perfeitamente bem. Era
melhor dar só uma olhadinha no espelho e praticar antes de tocar a campainha: “Olá,
Aline! Tudo certinho?”
terça-feira, 7 de maio de 2013
Lapso
Estou
tentando correr o máximo que posso. Sei que, se parar, alguma coisa muito ruim
vai acontecer. Algo horrível. Estou me cansando, no entanto acelero cada vez
mais. Alguém está atrás de mim. Eu o vejo sem necessidade de olhar para trás. Está
perto. Cada vez mais perto. Tem a cara contorcida. Parece furioso. Parece a
personificação da maldade. O que eu fiz? Certamente fiz algo. Meu deus, ele não
pode me alcançar. Por favor, não o deixe me alcançar. Não posso me exaurir. Eu
corro, corro, corro. Corro por uma rua que não conheço. Tenho medo de acabar
num beco sem saída. Se aparecer um muro, um obstáculo qualquer, o que irá
acontecer? Prefiro não saber. Melhor não pensar nisso. Ele, por outro lado, não
parece cansar-se nunca. Ele anda e aparenta estar à mesma velocidade que eu,
que estou no limite de minhas forças. Espere. Acho que há outros. Eu sei, sem
espaço para dúvidas, que fiz algo hediondo. Por isso preciso continuar. Para
que não me punam. Por que eu fui ser tão negligente? Serei objeto da vingança mais
abjeta. Começo a me debater. Sei que padecerei dores pavorosas. Por que não
consigo me lembrar do que ocorreu antes? Meus pés vacilam. Estou com medo. Não
vejo saída alguma.
Escuridão.
Estou
escalando uma montanha. Ao meu redor, enxergo inúmeros cumes altíssimos, todos
encobertos de neve. Um senhor me diz, numa língua que compreeendo - embora
nunca a tenha escutado antes - que estamos quase chegando. Faz muito frio.
Sinto a lufada de um vento cortante.
Estamos, os dois, completamente agasalhados, salvo por parte do rosto, que
assume um aspecto vermelho ardente. Descubro, sem a necessidade de qualquer
espelho, que estou velho. O (outro) velho recorda que seremos os primeiros
homens a chegar ao cume daquele monte. Estou na cordilheira de um país de nome
impronunciável, cuja língua falo fluentemente. Apesar de não me lembrar, estou
consciente de que estamos subindo gradualmente há várias semanas. Para evitar
eventuais contratempos e garantir nossa sobrevivência em caso de emergência, estamos
racionando água e comida. Nossas forças não chegam a uma fração do que tínhamos
no início, após muito tempo de preparação. Então, como recompensa por todos os
esforços, vejo que falta pouco. Nos elevamos um pouco mais, com a ajuda de
cordas. Damos poucos passos e, finalmente, chegamos. Porém, ocorre algo
inesperado, ao menos para mim. No topo daquela montanha, para minha surpresa, estão
todos os meus amigos. Eles anunciam que estavam nos esperando há muito tempo,
para comemorar aquela grande vitória. Afinal, sua vida de explorador do mundo
adquiria um novo status, e ninguém poderia deixar-me sozinho em momento tão
importante. Estão todos muito contentes. Diferente de mim, eles têm a mesma
idade de sempre. Trouxeram bolo, bebidas, petiscos. Acho que é meu aniversário.
Dão início à festa. Todos conversam com entusiasmo. Olho ao meu redor: a vista
é maravilhosa.
Escuridão.
Ah,
eu me lembro dela. Não me recordo, talvez, do início de tudo. Lembro-me,
contudo, do rosto dela. Ela exibia um sorriso constante. Tinha o rosto gracioso.
Parecia contente por algo que eu havia feito. Eu estava apaixonado. Era óbvio
que ela também estava bastante apaixonada. Ela sorria agora bem perto de mim.
Seus olhos sorriam, entrecerrados. O rosto todo dela, e o corpo, sorriam.
Havíamos tido um passado feliz. Estávamos em um quarto. Talvez o meu, talvez o
dela. Nesse quarto, isto era o mais importante, nos sentíamos em casa. Estávamos
sentados na cama. A luz era cálida e esbatida. Havia alguns livros numa estante
ao lado que eu conhecia, mas que não eram meus. Ou talvez fossem. Nós dois
havíamos lido aquelas histórias, isto era certo. Escutávamos nossas músicas
preferidas. Ah, eu me lembro. Era como se fosse agora. Ela me contava histórias
divertidas do seu passado. Era uma pessoa boa. Eu podia sentir que ela era uma
pessoa boa. Eu só havia desejado isto a vida toda: uma pessoa boa. E ela era. Tão
simples. Embora fosse extraordinariamente interessante, exalava uma humildade
única. Subitamente, eu desatava a chorar. Chorava com a história engraçada. Embora
fosse paradoxal, ela imediatamente compreende. Eu estava feliz. Estou. Ela me
deita, para que eu me acalme e pare de chorar. Pare de chorar. Você está feliz.
Sim, eu estou. Você sabe. Eu sei. Deita. Obrigado. Por tudo. Ela passa a mão no
meu cabelo. Seca minha pele úmida com um beijo. Em seguida, ela se deita comigo.
Abro novamente meus olhos, e revejo seus olhos: abertos, atentos. Eu só via os
seus grandes olhos. Ela, então, encosta-se completamente em mim. Seu corpo inteiro em mim. Descubro que
estou sem roupa. Ela, igual, nua. Sinto somente, mais nada sinto além disso:
sua pele inteira encostada no meu corpo. Esfregando-se em mim. Uma sensação boa.
Ela fricciona sua pele à minha. Meu corpo inteiro estremece. Ela se aperta cada
vez mais forte contra mim. Ah, eu me lembro. Eu me recordo como era dentro
dela. Me lembro de nós dois colados. Aquela sensação causada pelo suor entre as
epidermes. Meu corpo inteiro tenso. Tudo molhado de lágrimas e de suor. O
quarto inteiro. Está chovendo dentro do quarto. Meia-luz. Ela se estremece. Ela
continua. Nós estamos maravilhosamente encharcados. Dois minutos. Três minutos.
Cinco dias. Não para. Não cessa. Seus olhos olham diretamente os meus. Tão
perto. Eu sinto algo. Sinto que algo vai acontecer. Um sensação boa. Tento me
controlar, mas é muito forte. Algo está acontecendo. Não vou conseguir segurar.
Explodo. Seus olhos eram malícia em estado puro. Eu desmaio.
Escuridão.
Suspeito
que aquele cômodo ficava na casa de minha avó na minha infância. Abro a porta e
dou de cara com o corredor daquela velha casa em que meus pais me deixavam durante
as férias. Saio procurando o pomar no quintal do fundo do lote. Fico com medo
de passar mal por comer tantas goiabas, como havia feito em férias imemoriais.
Minha avó reitera que eu não posso comer tantas goiabas. Ela me avisa vai fazer
aquele biscoito de que gosto tanto. Guarde-se para os biscoitos, ela diz.
Parece que ela, aquela garota daquele quarto úmido, não existe mais. Embora eu
guarde ainda o gosto dela. Ou, talvez, ela ainda não existisse. Mas eu a
procuro. Passo o dia procurando o meu futuro dentro de meu passado. Sinto que
não adianta perguntar por ela. Ninguém entenderia. Subitamente, porém, naquela
rua quente daquela pequena cidade do interior do país, eu a revejo (embora, de
certo ponto de vista, eu estava vendo-a pela primeira vez). É uma criança, mas
seus olhos a denunciam. Percebo que ela ainda não me conhece. Eu vou atrás
dela. A mãe dela me vê e diz-lhe que eu quero brincar com ela. Ela brinca
comigo. Nós aproveitamos grande parte da tarde, naquela idade em que uma tarde
é quase uma eternidade. Em algum momento, todas as crianças que antes não
estavam lá subitamente aparecem e formam uma roda para ver um menino que caiu e
machucou o joelho no asfalto. Ela está bem à minha frente. Sem dar por mim,
acaricio as costas dela. Ela vira, admirada, para mim. Eu faço um esforço para
explicar que fiz aquilo sem querer, mas não consigo pronunciar uma palavra.
Apenas a miro, boquiaberto, muito mais perplexo do que ela com minha atitude. Ela
sorri e me beija no rosto. Eu começo a flutuar. Você me segura e me coloca de
volta no chão. Ninguém percebe. Imediatamente, todos voltam a brincar. O menino
com sangue no joelho se levanta. Fico olhando a marca vermelha no asfalto. De
repente, meu pai, que estava de férias numa praia muito distante, inexplicavelmente
aparece na minha frente e diz que é hora de voltar para a casa da minha avó.
Ela – a garota do futuro - nem olha para trás enquanto eu me afasto. Digo a meu
pai que vou me casar com ela. Ele gargalha. Admito que ele não pode não
entender que eu a conheço de antes, do futuro. Porém, ele devia ter consciência
disto. Ele é adulto. Ele devia saber de tudo. Minha avó havia preparado
biscoitos muito saborosos. Minha avó faz muitas coisas gostosas. Fazia tempo
que não comia aqueles biscoitos. Minha avó não sabe que está morta. Foi bom ver
minha avó de novo.
Escuridão.
Tenho
medo de morrer sozinho, caminhando por esta rua escura. Não há ninguém. Sinto
que posso morrer. Sinto uma solidão enorme. Desconfio que não existe mais
ninguém. Eu ando sozinho por uma rua que não acaba. Passo por quadras e mais
quadras desoladas, edifícios muito altos e depredados, escolas abandonadas,
hospitais vazios, jardins murchos. Somente alguns postes iluminam os espaços.
Estou procurando alguém. Não sei precisar se alguém específico, ou se só um
alguém qualquer. Acho que me sinto solitário nesta cidade arruinada. Seria bom
encontrar alguém e perguntar porque não há mais ninguém. No entanto, ninguém
aparece. Eu sigo caminhando.
Escuridão.
Surjo
no meio de uma festa. O local está abarrotado de gente. Pessoas empurrando por
todos os lados. Não sei com quem eu fui a esta festa. De repente, ela aparece.
Acho que é a mesma garota molhada da chuva do quarto. Porém, com um aspecto
físico diferente. No entanto, por alguns pequenos sinais perceptíveis somente
para mim, concluo que é definitivamente a mesma garota. Tem outro corpo. Deduzo
que estamos juntos há bastante tempo. Tenho a impressão de que moramos no mesmo
apartamento. Ela decide sair do meio do turbilhão e me conduz a um lugar mais
vazio. Acho que não estou apto a dizer nada porque a música está muito alta. Ela
me conta que precisa conversar comigo. Eu não consigo pronunciar palavra. Eu
não me sinto, não consigo me ver. Só ela existe ali. Não há mais ninguém na
festa, a não ser uma pessoa, que nos observa à distância. Ela então me diz à
queima-roupa que está ficando com aquele sujeito mais à frente. Que decidiu
ficar com ele e separar-se definitivamente de mim. Que eu tenho que entender.
Que está apaixonada por ele. Que ela não me ama. Talvez nunca tenha me amado. Ela
diz que já não volta mais para casa. Ele a chama. Ela vai até lá. Ele diz-lhe
algo ao pé do ouvido, e aproveita a ocasião para beijar-lhe levemente o lóbulo.
Então, os dois se beijam na boca apaixonadamente. Na minha frente. À
queima-roupa. Ela sussurra algo no ouvido dele. Depois, volta e me aconselha a
ir embora para não ser ainda mais humilhado. Que ela vai ficar com ele na festa.
Eu tenho vontade de lhe perguntar porque ela está fazendo isto comigo. Mas não
consigo dizer nada. Ela vai embora. Ela o beija de novo. Nota que eu ainda
estou por lá. Me dirige um olhar de desprezo. Ri com escárnio. Eu não sei para
onde ir. Nem sei dizer exatamente onde moro. De repente, a festa está cheia de
novo. Ela me encara pela última vez e o
beija de novo, nitidamente para que eu testemunhe aquilo, depois morre de rir
de algo (de mim?) e some no meio da multidão.
Escuridão.
Desperto-me
sobressaltado por uma série de visões bizarras que tive durante o sono. Decido
contar a todos aquele sonho. Depois de escutarem atentamente, conhecidos meus explicam
que minha narrativa não reflete exatamente o que sonhei. Eu tento argumentar
que estou certo de que foi exatamente daquela maneira. Eles retrucam que, muito
simplesmente, eu não havia entendido e que eu não me lembrava de algumas
partes. Todos haviam assistido ao sonho e concordam que minha história não era
fiel. Disseram que uma parte era formada por referências a uma infância que eu
nunca havia vivido. Meu psicanalista expõe que está de acordo com todos eles. Sinto
uma grande frustração. Todo mundo havia entendido meu sonho melhor do que eu.
Vencido, sou obrigado a concordar. Embora aquela anuência implicasse admitir que
o sonho não era exatamente do modo como eu rememorava. Mas todos estão tão seguros.
Sinto que sempre compreendo menos do que deveria. Mas está tudo bem, dizem. Todos
sorriem complacentemente. Não consigo entender. Contudo, fico contente por me esclarecerem
exatamente o que eu sonhei. Eu não me recordo direito dos sonhos. Todos se
lembram dos meus sonhos, menos eu.
Escuridão.
Estou
caminhando pela calçada de uma nova rua. Uma garota desconhecida começa a puxar
assunto a meu lado. Continuamos vagando pela cidade. Seguimos assim por alguns quarteirões.
Depois de algum tempo, chegamos à porta do que suponho ser minha casa. Convido-a
a entrar. Ela aceita. Entramos. A claridade do exterior é substituída por uma
luz muito fraca. Depois de passar por alguns cômodos insuficientemente
iluminados, descubro uma mulher reclinada no sofá da sala de televisão. Está
usando aquela típica roupa usada que geralmente se usa dentro de casa. A mulher
levanta-se. Dirige-se à visitante, apresenta-se e a recebe carinhosamente. Em
seguida, me abraça e me dá um beijo. A característica mais marcante da moça do
sofá é sua leveza, em todos os aspectos. Relembro-me do dia anterior, em que eu
a tinha carregado com insólita facilidade pela casa inteira. Ela, por sua vez,
toda enroscada em mim. Como
estava antes retorcida no sofá, com sua roupa confortável, no momento em que eu
havia chegado naquela (minha) casa. Ela gostava que eu a levasse para todo
lugar, para ficar constantemente apoiada em mim. Parecia que ela até
mesmo costumava dormir em meus braços durante essas perambulações. Após um
tempo, ela tira um bebê de um berço onde ele dormia. Era uma menina de cerca de
seis meses. Ela mostra sua filha à visitante. Enquanto isso, eu me deito no
sofá, exatamente no mesmo lugar em que ela estava antes. Aquela área exalava o olor
do perfume dela. Depois que a visitante a acaricia desajeitadamente, a mãe
deita a menininha de bruços em cima de minha barriga, sobre a qual ela se
aconchega ainda melhor do que no berço. Não sei se ela era minha filha. Mas
sinto que pode ser ou que aquilo não é importante. Ela dorme silenciosamente
sobre minha barriga. Parece que sou feliz. Não sei que fim leva a visitante.
Sinto só uma harmonia enorme. Me sinto parte de uma espécie de sentimento
comum.
Escuridão.
Acordo
e procuro freneticamente o despertador. Levo um tempo para fazer as contas e
compreender que não estou atrasado. Me levanto da cama e me dirijo ao banheiro.
Enquanto escovo os dentes, pressinto que algo que está errado. Volto para
verificar o relógio uma vez mais. Passaram-se várias horas. Como? Talvez eu não
houvesse conferido o despertador direito da primeira vez. Termino de escovar os
dentes e confiro novamente o mostrador do alarme. Realmente, havia perdido o
horário. Saio de casa desesperado, em direção ao lugar onde estão sendo
realizadas as provas que eu não poderia de maneira alguma perder. Uma vez lá, me
explicam que eu também havia perdido os exames do dia anterior. Então, eu havia
dormido dois dias? Infelizmente, parecia ser o caso. Agora, eu haveria de
esperar o próximo ano e tentar de novo. A funcionária, desconcertada, tampouco
pode compreender como eu poderia haver dormido por dois dias e sequer me dado
conta do acontecido. Volto para casa desolado, ainda sem poder explicar aquelas
circunstâncias.
Escuridão.
É
de conhecimento universal que existe um botão vermelho que aciona o fim do mundo.
Não estão muito claras as razões pelas quais ele foi concebido e (algo ainda
mais misterioso) rigorosamente construído. Após certas deliberações, acordou-se
que ele estaria a cargo de um órgão similar ao Conselho de Segurança das Nações
Unidas. Tenho plena consciência deste fato quando sou abordado na rua por certo
conhecido, que empunha um jornal e, aos brados, afirma que divergências entre
os representantes daquele órgão poderiam levar a que alguém o acionasse. Nem
dou ouvidos a tamanho absurdo. Não fazia sentido que uma organização
internacional iniciasse o funcionamento de um mecanismo que levasse à nossa
completa aniquilação. Contudo, alguns dias depois, novamente caminhando pela
rua, avisto algumas manchetes em diversos jornais anunciando que o botão havia
sido pressionado, por diferenças irreconciliáveis entre os diversos membros da
comissão do fim do mundo. As ruas, apesar de tudo, continuavam apresentando seu
aspecto cotidiano. Ninguém parecia estar especialmente nervoso. Eu compro o
jornal com o revisteiro e procuro confirmar com ele se era verdade o que estava
noticiado. Ele assente. Complementa depois que todos os jornais da televisão já
haviam antecipado a notícia na noite anterior. Sua voz anuncia sua própria
morte com grande tranquilidade. Não sei com quem conversar. Tudo segue seu
curso, menos o meu coração. Não encontro ninguém conhecido. Sinto-me
absolutamente perdido na rua durante o início do fim do mundo.
Escuridão.
Volto
a ser perseguido. Continuo tentando correr. Não assimilo como posso correr
tanto sem conseguir afastar-me de meu carrasco. Olho para ele e tento
lembrar-me de onde o vi antes. Talvez seja aquela pessoa da festa. Ou talvez
algum antigo amigo. Acho que aquela garota tem algo a ver com isso. Devo ter
feito algo que a chateou. Eu já tinha visto que ela tinha pendor à vingança. Ou
talvez seja o oposto. Talvez ele esteja furioso por ela estar comigo. Talvez
ele fosse amante dela. Talvez ainda seja. Talvez eu seja o amante dela. E ele,
o marido. Talvez eu a tenha roubado dele. Talvez ele não goste que eu siga
existindo. Sinto que fiz algo muito errado do qual ele anseia se vingar. No
meio da corrida, começo a sentir minhas pernas dormentes. Também o chão parece
estar cada vez mais pegajoso. Dou passos cada vez mais curtos e mais lentos. Se
seguir assim, ele vai me alcançar. Começo a fazer um esforço descomunal para
correr, mas não consigo. Aparentemente, também vou chegando ao fim do caminho.
Parece haver um penhasco poucos metros à frente. Pouco a pouco, algo
irresistível me impede de seguir. Não consigo mais dar um passo. O homem
furioso e seus companheiros se aproximam. Eu estou afundando na terra. Quando
tudo indica que eu vá, na melhor das hipóteses, morrer com dores insuportáveis,
quando estou no auge do despero, quando meu coração martela no peito enquanto
vejo meus algozes se aproximando, quando estou suando aos borbotões e meus pés
continuam anestesiados e afundando na terra, exatamente aí neste momento,
enfim, tudo subitamente desaparece e aquele mundo é imediatamente substituído
por outro.
Luz.
.
segunda-feira, 25 de março de 2013
Um conto de faz de conta
Era uma vez um comboio que
chegava a um lugar muito distante, um lugar diferente de todos os outros
lugares que tinham existido. Aquele comboio aproximava-se lentamente de uma
rampa que indicava o final do percurso da estrada de ferro. Os vagões do
comboio eram destinados ao transporte de animais, mas estavam cheios, repletos
mesmo, de pessoas. As pessoas eram bem magrinhas, tinham a pele bastante
ressecada e pareciam exaustas.
A paisagem daquela terra era admirável.
Parecia um reino encantado. Havia algumas construções de madeira espalhadas e,
no centro, um edifício em alvenaria com uma grande chaminé. Seus arredores eram
cobertos de vegetação natural. Era um campo típico de clima temperado, com suas
árvores e caminhos forrados de pedras. Era uma noite de inverno e fazia muito
frio. A temperatura era de 15 graus negativos. Nevava. Apesar do friagem, os
anfitriões estavam todos do lado de fora, diligentemente preparados para a
chegada daquele comboio. Diversos funcionários aguardavam junto ao trem a
abertura das portas por onde sairiam as pessoas.
Então, enquanto a neve caía
lentamente sobre os chapéus dos oficiais, as portas se abriram e os visitantes foram
ordenados, aos gritos, a sair dos vagões. Para que não se demorassem, começaram
a receber cassetadas na cabeça, nas costas, nas pernas. Logo saíram todos muito
apressados, tentando desajeitadamente desviar-se das investidas, que pareciam
vir de todos os lados. Os vagões, então, foram esvaziando-se. Algumas pessoas, todavia,
permaneceram dentro do comboio, apesar do grande incentivo oferecido pelos
golpes. Estavam prostradas pelo chão. Foram, então, retiradas pelos empregados
e levadas para um canto.
Aqueles que estavam em fila foram
instruídos a deixar seus pertences do lado direito. Uma montanha de malas,
caixas, sacolas e outros objetos formou-se instantaneamente. Os oficiais
explicaram que os artigos deveriam ser amontoados cuidadosamente, para que chegassem
ilesos ao local onde todos estariam hospedados. E eles obedeceram. Depois,
voltaram à fila, onde havia uma pessoa que inspecionava os recém-chegados. Era
um médico. O doutor separava aqueles que estavam mais saudáveis e fortes
daqueles que estavam menos saudáveis e fortes. Os primeiros eram instruídos a
retirar-se da fila. A grande maioria seguia em frente.
Seguindo em frente, havia um
barracão de madeira onde deveriam entrar as mulheres. Os homens eram orientados
a rumar para o flanco exterior da construção. Todos os entes do gênero feminino,
do lado de dentro, e todos os entes do gênero masculino, do lado de fora, eram
orientados a tirar a roupa ali mesmo, apesar de não haver nenhum sistema de
calefação.
Naquele momento, o medo começou a
apoderar-se dos visitantes. Muitos começaram nervosamente a pedir explicações.
Os empregados locais, porém, permaneciam impassíveis. Existiam muitos boatos,
boatos terríveis, boatos inimagináveis, sobre o que acontecia com as pessoas
que eram encaminhadas até o final das linhas de trem. E todos os homens e
mulheres começaram a exasperar-se, a falar cada vez mais alto, até que a
situação culminou em um alvoroço de gritos de desespero. Sem hesitar, os
oficiais e seus auxiliares iniciaram um regime de pesados golpes e pontapés
para convencer os mais indisciplinados. Mas eles permaneceram imóveis,
petrificados. Redobraram-se, pois, os esforços de persuasão. Os gritos de dor
confundiam-se com os gritos de desespero. Esta desordem deve ter perdurado por
alguns minutos.
A neve do piso tinha adquirido
uma coloração vermelho-escura quando surgiram os oficiais que dirigiam aquele
empreendimento. Diante do caos que encontraram, pediram a todos que se
posicionassem organizadamente para ouvir o que tinham a dizer. Mandaram os
homens que estavam do lado de fora a entrar no barracão para ouvir o discurso. Quando
já estavam todos reunidos, o Comandante, que tinha o aspecto de um príncipe em
uniforme de gala, enunciou sua fala com a eloquência de um grande retórico:
- Sei que muitos de vocês fizeram
uma viagem de dois a três dias continuamente em pé e que estão bastante
cansados. Talvez, por isto, estejam com o pensamento confuso. Entendo que
muitos estejam reclamando de sede, pois foi impossível oferecer-lhes água no
caminho. No entanto, não consigo compreender os temores que alguns aqui possuem
sobre como vamos tratá-los. Por isso, vim aqui esclarecer de uma vez por todas
nosso cronograma. Como todos sabem, estamos em um momento muito aflitivo (não
são só vocês que estão em dificuldades, nós também estamos). Por isso,
absolutamente todos os recursos com que possamos contar serão apreciados. Esta
é a razão de vocês terem sido transferidos para cá. Podem estar seguros disso.
Tenho certeza de que todos aqui podem ser úteis. Vejamos. Você, por exemplo, na
segunda fila, qual o seu ofício?
- Sou alfaiate, Senhor.
- Pois estão, precisamos de sua
ajuda para confeccionar e reparar os uniformes de nossos soldados.
O alfaiate sorri, satisfeito. O
Comandante continua sua inquirição:
- Você, de cabelo negro ao fundo,
o que você faz?
- Sou enfermeira, Comandante.
- Pois você é mais necessária do
que nunca. Necessária agora mesmo, para ajudar na recuperação dos incontáveis
feridos e doentes, e para dar conforto aos que sofrem. – O Comandante passa os
olhos pela multidão, aponta outro homem, baixo e de barba espessa, e pergunta:
- E você, à direita?
- Eu era contador, Senhor.
- Pois você pode nos ajudar na
organização deste campo. Precisamos de todos vocês. Peço que abandonem estes
temores que não têm sentido algum. Reflitam melhor. Ainda que vocês suponham
que não tenhamos nenhum apreço por vocês, por que não aproveitaríamos sua
capacidade de trabalhar? Está na hora de parar de acreditar em contos de fadas,
em estórias onde todos, reis e súditos, não passam necessidades. Aqui, no mundo
real, as pessoas sofrem e necessitam de cuidados. Não podemos desperdiçar força
de trabalho. E vocês estão chamados a participar destes esforços. Eu insisto:
nosso tempo, de grandes necessidades, exige a participação de vocês, e não
vamos deixar que ninguém se esquive de suas tarefas. Ao trabalho!
A enfermeira e o contador gracejam,
confortados.
O Comandante acrescenta:
- Mais uma coisa: as crianças e
idosos podem ficar sob a tutela de seus responsáveis. Agora, por favor, exijo a
colaboração de vocês, ou serei obrigado a tomar medidas disciplinares.
Os avós, as mães e os filhos
respiram aliviados.
O Comandante adverte, em seguida:
- Há uma grande epidemia de tifo.
É bem provável que vocês tenham piolhos pela cabeça e pelo corpo, especialmente
após esta viagem. Para evitar que se contaminem os demais ocupantes, que estão
sadios, todos vocês precisam passar por um processo de desinfeccção. Somente
assim poderão ser acomodados e iniciar o trabalho.
O Comandante faz um sinal para
seus companheiros. Imediatamente, alguns sabonetes e toalhas são distribuídos aos
presentes.
- Vocês terão que compartilhar os
poucos recursos de que dispomos. Agora, repito: colaborem. Para que sigamos
corretamente o procedimento e vocês possam tomar seus banhos, tirem a roupa
imediatamente. Disponibilizamos água e café para vocês naquele barracão ali,
após a área de limpeza. Vocês estão tornando tudo mais lento do que o previsto
e vão ter que, lamentavelmente, tomar seu café frio.
Todos começam a despir-se. Os
mais fortes ajudam as crianças e os idosos a despojar-se de suas roupas. As
pessoas, agora nuas, tiritam de frio (a temperatura agora havia baixado para 17
graus negativos com o avançar da madrugada). As roupas se acumularam em um
canto da área de recepção e foram retiradas pelos funcionários. O Comandante agradece:
- Agora, sim. Apressem-se para
tomar o café. Acabam de avisar-me que os galões de água foram reabastecidos.
Vocês serão agora escoltados para a área de desinfecção.
Os homens e mulheres são conduzidos
à área de limpeza. Há placas indicando banheiros. Há sinais com instruções
sobre como limpar-se devidamente. Advertências sobre o perigo de contaminação
por terríveis moléstias. Algumas cadeiras também são disponibilizadas para
descansar enquanto os empregados terminam de limpar o banheiro. Depois de
alguns minutos, todos são orientados a entrar pela porta de metal. As pessoas
vão ocupando o cômodo, preenchido por diversas duchas. Com o fim de economizar
tempo e recursos, é preciso sempre lotar a câmara para que todos os presentes passem
pelo processo ao mesmo tempo.
Já dentro das câmaras, entram novos servidores
locais para aparar os longos fios de cabelo de parte dos visitantes,
especialmente das mulheres. Explicam que aquilo faz parte do trâmite de
eliminação dos piolhos. Algumas mulheres, muito apegadas a suas madeixas,
assentem com lágrimas nos olhos. Todos temem destacarem-se, de alguma maneira,
por uma particular falta de asseio. Os cabeleireiros recolhem rapidamente as
mechas que se espalharam pelo piso e abandonam a sala.
Os funcionários que os haviam
escoltado à câmara diligentemente fecham a porta de metal antes de iniciar o
processo de desinfecção. Naquele momento, era perceptível o absoluto silêncio dentro
da câmara em que estavam trancados. Todos olharam para cima, esperando que a
água começasse a correr pelas chuveiros logo acima de suas cabeças.
Subitamente, todas as luzes são
apagadas. Naquele breu abrupto, começam a ser escutados gritos de terror, cada
vez mais altos. Ouve-se, então, alguns ruídos de latas batendo no chão, que
indicam o início do procedimento anunciado. As pessoas começam a debater-se
umas contra as outras no escuro, em desespero. Algumas
começam a pedir ajuda. Os gritos aumentam. Havia um grande tumulto de ruídos de
corpos contra o chão. Os gritos aumentam ainda mais. Alguns, porém, são
abafados. Depois, começam a diminuir. O
barulho reduz-se cada vez mais, até cessar completamente.
Então, depois de cerca de vinte
minutos de imenso alvoroço, as pessoas sossegam completamente. Uma serena paz
finalmente voltava a governar aquele lugar, um lugar diferente de todos os
outros, que mais parecia um reino encantado. Todos os funcionários aguardavam
em seus lugares a retirada dos calmos visitantes. Suas atribulações estavam
finalmente extintas. Todos estavam sossegados. Eles seriam dirigidos em seguida
para um local muito mais aquecido, para descansar em companhia dos visitantes
que haviam chegado antes e dos que chegariam depois.
sexta-feira, 15 de março de 2013
O Grande Líder
Em estado de total imobilidade, cinco
homens em terno e gravata estão postados ao redor do cadáver de uma mulher
luxuosamente vestida. Sua pele pálida contrasta vivamente com seu vestido cor
de púrpura. Os traços finos, intactos, marcam a beleza de uma pessoa muito
jovem, ainda que morta. Seu vestido harmoniza-se perfeitamente com a
suntuosidade da sala. O ambiente é todo iluminado por um grande lustre de
cristais italianos azuis e brancos, que transmitia seus tons ao piso em
jacarandá forrado com tapetes persas e às paredes em estilo francês cobertas
parcialmente por tapeçarias exóticas. O cômodo é conhecido como Salão Azul do
Palácio da Nação.
O mais alto dos presentes, o
Grande Líder, faz um sinal e três deles se retiram. Durante alguns minutos, o
Grande Líder fita intensamente o corpo de sua falecida esposa como que para
ordená-la que se levantasse. O Correligionário, então, após limpar a garganta,
toma a palavra:
- Peço perdão pela insistência, Grande
Líder, mas o Povo espera sua decisão a respeito das cerimônias fúnebres. Há uma
multidão fora do Palácio ansiosa pela oportunidade de despedir-se de Nossa
Guia.
O Grande Líder senta-se em uma
das poltronas próximas ao ataúde. Permanece calado. Levanta-se novamente e olha
para seu assessor:
- O Povo sofre, eu sei, mas eu
também sofro. Testemunhei de perto a deterioração do estado de saúde da minha
esposa, tão nova, tão jovem, recusando-me a acreditar que uma enfermidade que
parecia de início uma febre pudesse chegar ao que agora é irremediável. Ela era
15 anos mais jovem do que eu. Há apenas seis meses, eu pensava que o amor que do
Povo por ela era tão intenso que ela seria minha sucessora. Deus sabe o quanto
ela amava o Povo de volta. Quantas vezes, desafiando ordens médicas, ela não se
postou na janela do hospital para saudá-los e acalmá-los. Eu sempre lhe propunha
ir em seu lugar para oferecer-lhes uma palavra de alento, mas ela insistia que
ela própria deveria fazê-lo, por consideração a eles. Eu, desgraçadamente, por
amor a ela, assentia. Até o dia em que ela não pôde mais levantar-se, e perdesse
a razão, depois os sentidos, até expirar na cama ao lado da qual estava sentado
há dois dias. Apesar de não entender até hoje por que levaram-na tão cedo, de não
aceitar o que me parece ainda uma injustiça, de não compreender nada dos
desígnios divinos, tenho agora que tomar uma decisão imediata sobre sua
despedida. Não obstante o farei, uma vez mais, em nome de meu amor por ela e do
amor dela pelo Povo.
O Correligionário assiste com pesar
a exposição do Grande Líder. Junta suas mãos à frente da cintura, depois atrás
das costas, exasperadamente. Quando concluída a fala, olha mudo para o assoalho.
O Grande Líder continua:
- Você está somente fazendo o seu
trabalho. Não tem que ouvir lamúrias minhas. Desejo apenas ter mais algumas
horas a sós com ela. Quero velá-la esta noite. O Povo compreenderá. Faça todos
saberem que o corpo dela poderá ser visitado a partir de amanhã, por três dias,
após os quais será realizado seu enterro, segundo as formalidades do protocolo
oficial.
Mesmo após assegurar-se de que o
Grande Líder havia terminado, o Correligionário ainda hesitou por alguns
segundos. Em seguida, limpou novamente a garganta e balbuciou:
- Senhor, há rumores, rumores que
provavelmente indicam um anseio do Povo, de que o Grande Líder mandará
embalsamar o corpo de Nossa Guia para que possa visitá-la em momentos de grande
nostalgia ou de sérias incertezas sobre sobre o destino da Nação. Ainda segundo
estas esperanças, Nossa Guia jazeria no Salão Adjunto do Palácio da Nação, para
permitir o acesso de visitas e, sempre que o Senhor julgasse conveniente, ele
seria reservado exclusivamente para Vossa Excelência.
- Estou ciente destes murmúrios. Não
é a primeira vez que me informam sobre este ruído incessante. Nem mesmo é a
primeira vez que você me traz este assunto. Sou obrigado a concluir que nesta obstinação
está subentendido um conselho: Vossas Senhorias pensam que seria mais
conveniente mandar embalsamar o corpo de minha mulher. Muito bem. Pois eu lhe
convido a contemplar o cadáver dela. Ela está ainda mais bela, depois de ser cuidadosamente
maquiada e vestida por ordens de vocês, do que momentos antes de falecer,
quando seu organismo ainda resistia, quando respirava com dificuldade, quando
gemia de dor, quando ainda tinha o rosto todo crispado pelo sofrimento. Olhe
para ela. Eu te asseguro: ela não possui agora sequer a metade da beleza que
tinha antes de eu descobrir que andava ocultando os sintomas daquela moléstia.
Olhe para ela, eu te ordeno. O Povo irá adorá-la ainda mais depois de conferir
a sua beleza insuportável, que não passa de um sopro da era quando eu a
conheci. Sua beleza só podia ser comparada à sua generosidade. Ninguém tem mais
consciência da perda que todos sofremos do que eu. E é justamente esta
consciência que me impele a dizer que, apesar da aflição que inunda meu coração,
é preciso esquecer para seguir em
frente. Se o corpo de minha mulher seguir indefinidamente em
exibição no prédio vizinho, de onde tirarei forças para liderar o Povo,
consciente do vazio de minha vida sem ela? Não. Por mais que eu me martirize
agora, evitando o contato com quem mais amei nesta vida, creio que somente a
aceitação desta perda me permitirá seguir vivendo neste mundo da qual ela se
ausentou tão prematuramente. Minha decisão, portanto, está tomada.
O Correligionário pede permissão
para retirar-se do cômodo. O Grande Líder assente e dá-lhe as costas para
novamente fitar o corpo iluminado e imóvel de sua consorte.
*
Após o encerramento de uma
reunião ministerial, o Grande Líder regressa a seu gabinete, acompanhado do
Correligionário. Assina alguns papeis que este lhe entrega enquanto vai também
tomando nota de alguns assuntos pendentes mencionados há pouco. O Grande Líder
percebe que o Correligionário tem um ar apreensivo. Apanha uma pasta e
pergunta:
- Algo lhe preocupa, meu caro?
- Senhor, por dever de ofício e
pela confiança em mim depositada, sinto-me na obrigação de informá-lo sobre algumas
inquietações que pairam no espírito do Povo. Já faz algum tempo que passaram a
comentar sobre sua proximidade cada vez maior com a Secretária de Assuntos Privados.
- Você se refere à Martha?
- Receio que sim. Circulam fotos
do Senhor sorrindo para ela após o café da manhã oficial com o Líder do País
Vizinho, correm testemunhos sobre caminhadas pelo jardim da Residência Oficial,
e crescem agora boatos sobre a presença dela no Retiro da Nação durante as
férias do Senhor.
- Não tinha conhecimento de que o
Povo estava tão preocupado com minhas amizades.
- Na verdade, os rumores são de
que sua relação com a Secretária de Assuntos Privados ultrapassa os limites de
uma mera amizade. Alguns consideram até que o Senhor estaria apaixonado por
ela. Eu próprio - e peço antecipadamente perdão se estiver cometendo alguma indiscrição
– reparei que o Senhor tem passado mais tempo com a Secretária, e que
ultimamente o Senhor tem andado menos sério, mais sorridente. Ouso dizer, se o
Senhor não considera meu comentário inoportuno, até mesmo mais jovial. Tendo em
conta sua alta exposição pública, suponho que estas mudanças sejam perceptíveis
até mesmo para pessoas de fora do círculo mais íntimo do Senhor. Senhor, insisto
que eu não quero intrometer-me em seus assuntos privados. Minha intenção é
apenas informá-lo sobre quaisquer desdobramentos políticos e sociais que possam
ocorrer.
- Entendo. E quais seriam, então,
seus pensamentos sobre o assunto? O Senhor acha que eu tenho o direito de me
apaixonar, caso estas suposições estejam corretas?
- Desculpe-me... Quer dizer, o
Senhor, claro que... Todos têm direito a sua vida privada.... Bem, todo mundo tem
o direito de se apaixonar. É impossível dominar completamente as paixões. É
algo humano. Ultrapassa a mera vontade.
O Correligionário toma um momento
para refletir. Depois, limpa a garganta e avança:
- Muitos filósofos, no entanto,
nos aconselham a refletir antes de deixar-nos dominar pelas paixões. Mas o
Senhor, nosso Grande Líder de nossa grande Nação, certamente possui a sabedoria
necessária para ponderar sobre esta questão. Meus pensamentos poderiam
parecer-lhe muito simplórios.
- Caro Correligionário, peço-lhe
humildemente que seja sincero comigo. O Senhor estava do meu lado durante o
funeral da minha esposa, há nove anos. Desde então, acompanhou-me em quase
todas as minhas atividades oficiais. Trocamos impressões sobre inumeráveis
assuntos, inclusive pessoais. O que o Senhor pensa sobre a possibilidade do
Grande Viúvo da Nação apaixonar-se quase dez anos depois da morte de sua esposa?
O Senhor acha que eu estaria traindo a memória dela?
- Não, claro que não, Senhor. Quer
dizer que o Senhor confirma que está apaixonado? Perdão pela intromissão. Não
me concerne, não me concerne em absoluto. Senhor, eu me preocupo com as reações
do Povo a esta notícia, caso haja mesmo uma notícia. Enfim, o Senhor compreende
que, depois que o corpo de sua esposa foi embalsamado e passou a ser exibido no
Salão Adjunto do Palácio da Nação, a adoração a ela aumentou
extraordinariamente. Nunca esteve, aliás, tão forte. Tivemos que mudar todo o
esquema de segurança para permitir que uma multidão crescente entre diariamente
para contemplá-la, reverenciá-la e até mesmo chorar e suplicar diante dela. O
Senhor tem acompanhado o alvoroço em torno dos rumores sobre o atendimento de
orações e a realização de milagres. O Povo agora divide-se entre as designações
Nossa Guia, Santa Guia e Santa do Povo. Ademais, depois que ela faleceu, tornaram-se
célebres várias imagens do Senhor chorando diante de seu mausoléu. O Povo passou
a admirá-lo também por sua devoção e por sua lealdade a ela. Todos sabem o quanto
o Senhor padeceu pela morte dela.
- E o Povo acha que eu devo
seguir de luto? Seguir padecendo?
- Eu acho que, diante destas
circunstâncias, o Povo poderia ter dificuldades de conceber que o Senhor possa
amar alguém de novo. Quer dizer, se o Senhor amou a Nossa Guia, idolatrada como
nunca pelo Povo, porque trocaria a memória dela por uma relação com outra
pessoa? O Povo pode ter dificuldades para assimilar. Pode ter interpretações
equivocadas. Minha avaliação é a de algo desta natureza poderia colocar em
risco as conquistas alcançadas até o momento e as esperanças depositadas no
Senhor durante todo este tempo. Poderia haver algum tipo de comoção pública ou até
mesmo casos de violência.
- Obrigado por suas importantes
palavras, Correligionário. Após ouvi-las, estou convencido de que você se
equivoca ao considerar-me um sábio. Não havia considerado nada do que você
agora me revela.
- Peço desculpas por ter
ultrapassado minha competência, Senhor. No entanto, peço sua permissão para
fazer uma última ponderação. Independentemente da decisão que o Senhor tomar,
cabe considerar desde logo a segurança da Secretária de Assuntos Privados.
Desde o início destas especulações, as opiniões do Povo sobre ela estão cada
dia mais severas. Muitos reclamam, quando pouco, sua demissão do cargo. Julgo
que, persistindo estas insinuações, será necessário armar um esquema de segurança para ela.
- Vou refletir sobre suas observações.
Agradeço-lhe a sinceridade.
*
Ao redor da cama do Grande Líder
encontram-se o Médico Oficial, o Correligionário e o Secretário de Assuntos Privados.
O Grande Líder pede que o Secretário tome nota de tudo. Dirige-se então ao
Correligionário - agora conhecido como Novo Líder da Nação – para mencionar
importantes decisões sobre assuntos de Estado. Em seguida, o Grande Líder, com
olhos trêmulos, dá suas últimas instruções:
- Eu quero ser enterrado após a
minha morte. Não quero que meu corpo seja embalsamado para ficar exposto em
algum prédio público. Tenho, além disso, outro pedido. Rogo encarecidamente que
retirem o corpo embalsamado de minha esposa do Salão Adjunto para que eu seja sepultado
ao lado dela. Ainda poderão peregrinar para vê-la, apenas deverão dirigir-se a
partir de agora ao seu túmulo. Mas eu suplico: por favor, nos deixem descansar em paz. Diga ao Povo que o
espírito dela e o meu estarão sempre com eles. Prometa-me que fará isso.
Dois dias depois, o Novo Líder
anuncia ao Povo os desígnios do Grande Líder.
O enterro do Grande Líder
acontece quatro dias depois e é acompanhado por uma multidão inédita na
história desta grande Nação. A cerimônia conta com todas as homenagens dignas
de um grande herói. Incontáveis cidadãos optam por assistir ao Ato Oficial ao
lado do Salão Adjunto do Palácio da Nação, pois havia rumores – que todos
queriam conferir de perto - de que os olhos embalsamados de Nossa Guia poderiam
derramar lágrimas em razão de sua morte.
Após a cerimônia, o turbilhão de gente foi pouco
a pouco deixando o Cemitério dos Patronos da Nação. O ruído cada vez mais
distante dos passos foi sendo substituído pelo silêncio ao redor de seu túmulo.
O Grande Líder, porém, não descansa sozinho. O Grande Líder está no coração do
Povo.
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